Crónicas : 

O nevoeiro - ou uma história de guerra

 
Não havia combate; pelo menos daquele tipo que envolvesse troca directa de tiros, mas estávamos na guerra, sem dúvida. O ar pesava de tanta humidade, juntamente com uma serenidade abusiva, que era tudo menos reconfortante. A selva, de tão verde, feria a percepção de outras cores que pudessem existir; ainda que a cor de sangue, que o medo pressente, também estivesse presente e assombrasse ainda mais o nevoeiro constante. As árvores alcançavam uma altitude perfurante e as copas teimavam em rendilhar o tímido sol. Folhas de arbustos galgavam sobre a terra ferrosa e tapavam marcas de pegadas e rastos de pneus. Era tudo demasiadamente estático e a selva africana era senhora da sua incontornável presença sobre o caminho que a cortava.

Ali andávamos nós naquele chão que levava de volta ao quartel. E a marcha lenta amedrontava as consciências, porque parecia prometer que dali não sairíamos vivos. Penso que todos imaginavam que mais tarde ou mais cedo alguém pisaria uma mina ou seria atingido por uma bala vinda da vegetação. E esta ansiedade era estupidamente insuportável. Entretanto, o descanso durante as patrulhas impunha-se premente, porque a sede e as picadas dos miruís - os pequenos mosquitos - castigavam e causavam delírios de febre que ajudavam à loucura anestesiante e recalcada que prevalecia.

Numa tarde luminosa, em que uma aberta solar venceu as nuvens, transportávamos um prisioneiro que fora denunciado por um qualquer habitante local, ou até mesmo por alguém do próprio movimento terrorista. Não sei. O protocolo foi até certo ponto seguido; afinal este tipo de operação já fazia parte da rotina desta guerrilha pontual, morna e logística. O suspeito tinha sido arrancado violentamente de um esconderijo nas proximidades, e nesse momento foi estranho sentir o pânico que ele esboçava na atitude; aqueles olhos piedosamente arregalados penetravam que nem espadas na minha compaixão. Mas o pior veio a seguir. A detenção provocou, entre alguns de nós, uma agressiva reacção - diria mesmo animalesca; e gerou-se um frenesim de proporções assustadoras que culminou com o som seco de uma coronhada. O sangue derramou-se logo ali no capim. E enquanto uns concediam permissividade ao ódio, como que mostrando a verdadeira essência humana, outros questionavam a imoralidade do acto e do cenário surreal. Enfim, eu acredito piamente que este conflito profundo de personalidades, nesse dia, salvou a vida de um homem.

Para o bem da estabilidade colectiva, o padrão normal de descompressão - e após mais um incidente perturbante - repetia-se no convívio entre nós companheiros de armas. Para extravasar a tensão contida, as conversas tinham que ser absurdas, os silêncios raros e cada excesso necessário e urgente. No meio de risadas sonoras, cerveja barata, fumo de tabaco e jogos de cartas, pousávamos de novo aquartelados; no conforto possível do nosso mais recente lar. Apenas os embriagados olhos ajudavam a ver bondade nos rostos circundantes, pelo menos até que o sono por fim vencesse por mais uma noite.

Na manhã seguinte, e ainda a neblina tirava a visibilidade da paisagem, entrei sozinho no jipe. Trajando apenas calções, chinelos e no ombro a pistola-metralhadora, meti a primeira, derrapei e arranquei. Para os mais novatos tal à vontade no meio daquela insegurança parecia uma completa insanidade; mas talvez fosse apenas mais uma necessidade de não me importar com a situação e de não pensar em nada. Como estava encarregue das provisões alimentares, o caminho das compras teve como destino a aldeia. Pelas comunidades por onde passava as crianças corriam atrás do veículo em movimento. Clamavam efusivamente pelos rebuçados que habitualmente eu lhes trazia. Os gritos de alegria e a correria juntavam-se a um exército de pequenas mãos empoeiradas que se erguiam repetidamente, prontas a disputar avidamente a doce oferenda lançada ao ar.

No seguimento do rodo quotidiano possível, fazia-se mais uma noite quente e na caserna alguns soldados divertiam-se a picar as solas dos pés dos prisioneiros que estavam detidos no andar superior. Utilizavam-se das baionetas das espingardas enfiadas através das frechas de madeira do soalho. Os gritos de dor arrepiavam e eram acompanhados de gargalhadas doentias. Imediatamente, claro, opus-me à barbárie, mas alguém apressou-se a enfrentar-me. Começava um duelo de convicções há muito esperado. Numa rápida troca de palavras, um golpe de punho é desferido por mim; que só me antecipei, em defesa, perante o inevitável. No instante seguinte, ele tentava chegar cambaleante à arma de serviço, ao que instintivamente reagi chegando primeiro à minha, que estava mais perto; no meu coldre sobre a minha cama. Apontei-lhe friamente o cano e tudo pausou num silêncio suado. A plateia militar que se havia formado dividida em gritos de incentivo conteve apreensiva a respiração, e tudo ficou dependente de um gesto brusco. Nada aconteceu. Arrefeceram-se os ânimos, os rostos tensos do pelotão relaxaram, e simultaneamente o corpo de um 2º sargento - que assistia mudo ao confronto - desfaleceu e caiu estrondosamente no chão. Foi como se tivesse sido jogada uma toalha ensanguentada ao tapete; e a luta terminou.

Na verdade, os efeitos do ambiente eram subtilmente nefastos, e o nevoeiro estava dentro e fora dos nossos pensamentos. Existiam sim inimizades, que tão facilmente surgiam como também surpreendiam e se perdiam. Para comprovar, no fim da comissão, acabei por ser alvo de um esquema fraudulento interino. Faltavam provisões no inventário e eu era o principal responsável, embora não fosse o culpado. Apenas assinei induzido e de boa fé um documento que não deveria ter assinado. Espontaneamente, porém, a reacção da camarata fez-se sentir e revelou-se forte e emotiva. Sem que eu pudesse prever, um dos soldados retirou da mochila duas rações de combate - porque era hábito serem guardadas para recordação - e num gesto de camaradagem entregou-me as preciosas latas. Foi o rastilho para que todos os outros o seguissem na atitude. Inclusive o meu mais recente inimigo, que de pose rígida e silenciosa cumpriu da mesma maneira o seu dever de irmandade. Por alguns momentos o olhar entre nós prolongou-se, recebi a oferta, acenamos ligeiramente com as cabeças, apertamos as mãos e nunca mais o vi.

 
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Enviado por Tópico
Ombuto
Publicado: 25/07/2018 19:28  Atualizado: 25/07/2018 19:28
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 Re: O nevoeiro
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