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O jantar.

 
"...Eu tinha gostado dela. Descobri bem cedo que tendo tanto em comum estávamos mesmo fadados a um dia nos encontrar... Foi assim, que contra todas as impossibilidades, acabamos ficando juntos..."
Mas não imaginem fácil assim este roteiro de uma história de um amor inesperado, destinado a ser como um vendaval: rápido, irresistível e incontrolável. Ninguém é capaz de deter um vendaval que arrasta consigo tudo que encontra pela frente, como esta história que foi assim que aconteceu...
Fazia pouco tempo de meu divórcio e uma amiga e seu marido que detestavam a minha ex, faziam uma força para que quanto mais rápido eu encontrasse alguém, menor seria a possibilidade de ter uma recaída e uma reconciliação.
Assim, eles convidaram algumas pessoas para um jantar numa praia aqui do litoral e a mim para fazê-lo: "Venha cozinhar para nós e uns amigos, pois você gosta e assim vai se distrair" - disseram-me. Convidaram uma amiga e queriam que eu a impressionasse, pois tinha certeza que ela "era meu tipo"!
Assim, mesmo sem muita vontade aceitei. Não me sentia à vontade para tão cedo depois de separado me meter em uma festa onde eu não conhecia mais ninguém, além do casal de amigos que me convidou. Pior que nem seria na sua casa, mas na casa da garota a quem queriam me apresentar.
No fundo o verão clamava que se saísse de casa, além do mais, ficar pensando no que não deu certo em uma noite de tanto calor, não seria a melhor opção.
Ao chegar lá, antes de todos os demais, parei na porta e fiquei a olhar o interior da casa que ficava numa praia agradável e tinha uma grande vidraça que permitia a visão de todo o interior da sala.
Dali pude divisar minha amiga e outra garota com ela que andavam descontraídas pelo grande ambiente. A dona da casa era morena, cabelos castanhos nem muito curtos ou longos. Caminhava com altivez e tinha gestos elegantes mas sem arrogância. Da distância que eu estava não podia ver-lhe a cor dos olhos - os olhos de uma mulher me chamam muito a atenção.
Ambas tinham uma taça às mãos, com um líquido escuro que na minha concepção devia ser vinho tinto.
Decidi 'chegar' afinal, antes de ser visto espiando a casa... o que iriam pensar de mim? Toquei a campainha e surgiu de outro cômodo que eu não tinha visão, meu amigo e marido da organizadora do evento.
Ele antecipou-se à sua mulher e à anfitriã e veio atender à porta.
Desceu de um salto os três degraus que davam acesso ao corredor de entrada, me deu um abraço e um beijo no rosto, como era de costume e disse que a dona da casa era uma pessoa muito legal. Passou o braço pelo meu pescoço - numa "gravata" amistosa - e me arrastou para dentro.
Entramos e fui apresentado a ela. Seus olhos eram cor de mel e seus lábios bem definidos e de batom rosa deixavam escapar uma voz agradável, bem postada e feminina.
Demos um abraço ligeiro e a beijei no rosto como usual. Sua pele era macia e perfumada, não usava nenhuma maquiagem além do batom e um lapís reforçando o contorno dos olhos.
Foi me oferecida uma taça e de fato era um vinho, mas era doce demais para meu gosto e meu amigo me advertiu: "não tome isso, parece que tem açúcar". Enquanto ele era vaiado pela garotas trouxe-me uma dose de whisky sem gelo que apenas usei para fazer um brinde e deixei de lado também.
Dediquei-me à elaboração do prato, que havia sido o indicado como preferido da dona da casa. Enquanto aguardávamos o preparo final no forno, fomos todos para a sala, pois chegava um casal conhecido de minha amiga. Logo depois o celular anunciou a chegada de outro convidado da dona da casa e, pela janela, vimos que ele saia do carro e estava acompanhado. Eu não o conhecia e nenhum dos meus amigos sabia quem o acompanhava, mas segundo as garotas era alguém que ele tinha conhecido dias antes e saia pela primeira vez. Ao chegarem ao portão já foram instados a entrar e assim fizeram.
Como eu dizia no início, a vida reserva surpresas que jamais podemos avaliar como podem acontecer.
O convidado mostrava que mal conhecia a garota, pois teve mesmo alguma dificuldade de apresentá-la, gaguejando para falar seu sobrenome estrangeiro com desenvoltura. Ela era loira, tinha os cabelos cacheados e longos. Seu vestido, florido como a primavera permitia imaginar que seu corpo era todo proporcional e caminhava levemente como se flutuasse sem tocar o chão. Sua voz parecia um acorde de violino e seus olhos eram verdes e brilhantes como esmeraldas. Tive a impressão que seu sorriso estabeleceu um silêncio momentâneo na sala e fui apresentado a ela. Segurei em sua mão que parecia estar coberta de pétalas de flor e a beijei levemente no rosto.
Porém esse cumprimento que era normal com todas as amigas e conhecidas, dessa vez, teve uma reação inesperada. Parecia que eu havia sido eletrocutado, tocado em um cabo de alta tensão. Como se uma eletricidade me percorresse o corpo afetando todos meus sentidos, como se luzes brilhassem diante do meus olhos.
Fiz o possível para ser discreto nessa reação que durou apenas um ou dois segundos e ao olhar seu rosto, percebi que não fora somente comigo, havia um leve tremor nos seus lábios fartos e bem desenhados que o batom vermelho fazia realçar. Minha memória olfativa imediatamente reconheceu seu perfume como um que há muito tempo eu não sentia. Esses acontecimentos todos, tão intensos e marcantes não foram percebidos pelos demais, que comentavam inebriados sobre o aroma que vinha da cozinha. Pedi licença a todos e fui desligar o forno pois o cheiro da comida era o sinal que estava tudo pronto.
A dona da casa, de quem meus amigos queriam que eu me aproximasse era muito gentil e a conversa com ela era fácil de fluir. Apesar disso íamos observando que tínhamos pouco em comum, exceto a cordialidade com que nos tratávamos. Isso indicava que seríamos bons amigos, mas nada mais.
Pediram-me que colocasse uma nova seleção musical para tocar e assim eu programei uma playlist com músicas escolhidas de 2 décadas atrás. A cada uma delas os olhos verdes da loira iam brilhando enquanto ela murmurava as letras baixinho. Parecia que ela adivinhava qual seria a próxima, chegando a dizer que essa escolha seria a mesma que ela faria.
O jantar foi servido e acabei sentando bem diante dela. Foi muito o esforço para que ninguém notasse que nossos olhares não paravam de se cruzar numa conversa silenciosa, quase telepática. Ainda assim o jantar correu leve, passamos bons momentos, demos muitas risadas. O convidado que chegara por último, parecia haver ultrapassado um pouco da conta na bebida, não a ponto de ficar inconveniente, mas seria um risco dirigir, sendo, pois, convencido a ficar hospedado lá.
Para surpresa dos demais sua convidada disse que estava tudo bem, mas não poderia ficar e pediu que lhe chamassem um Uber.
Eu disse que poderia levá-la para casa e assim me despedi de todos e saímos. Mal havia ultrapassado os portões do condomínio, perguntei-lhe onde era sua casa, onde ela gostaria de ficar. A resposta acendeu novamente todas a luzes que haviam acendido quando a cumprimentei: - Onde você quiser me levar - respondeu.
Eu tinha gostado dela. Descobri bem cedo que tendo tanto em comum estávamos mesmo fadados a um dia nos encontrar.
Foi assim, que contra todas as impossibilidades acabamos ficando juntos. Nossos filhos se divertem cada vez que contamos como nos conhecemos...


"Somos apenas duas almas perdidas/Nadando n'um aquário ano após ano/Correndo sobre o mesmo velho chão/E o que nós encontramos? Só os mesmos velhos medos" (Gilmour/Waters)


"Este é um conto de ficção e qualquer semelhança com fatos e pessoas reais terá sido mera coincidência."
 
Autor
Sergius Dizioli
 
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