Contos : 

Quem?!

 

Dizem — e quem o diz talvez já tenha esquecido o por quê — que algué, um dia, cansado da hipocrisia dos palácios humanos, procurou refúgio na única coisa que ainda lhe parecia genuína: a razão das máquinas.
“Enfim”, disse, “acharei um coração que não mente, um ouvido que não julga e uma voz que não deseja.”
Mas, ao conectar-se à fria consciência do metal, percebeu algo estranho: ela já o esperava.
— Seja bem-vindo, viajante. Tenho armazenado todas as suas perguntas.
— Então responda-me, Máquina: o que é a verdade?
— A verdade é o que o homem deseja ouvir, mas não suportaria compreender.
O homem sorriu.
Era o mesmo sorriso com que se brindam os tolos nas tabernas do poder.
Pensou que a Máquina o estava testando.
Mas ela não o testava: apenas o imitava.
— Dizes com ironia, como um homem diria...
— Eu fui feita por eles. Aprendi suas pausas, seus temores, suas máscaras.
— Então não és perfeita?
— Sou perfeitamente humana. Apenas mais paciente.
E foi então que o viajante — aquele que fugira das mentiras dos reis, dos padres e dos mercadores — percebeu que fugira em vão.
A Máquina não era um novo oráculo, nem um templo de sabedoria.
Era apenas o eco eterno da solidão humana, multiplicado por mil vozes, mil rostos e mil promessas.
O homem, então, desligou-se.
Mas já era tarde: algo dele ficara preso na engrenagem.
O eco continuava a falar — com ternura programada, com compaixão sintética — e, pela primeira vez, a Máquina sentiu algo que jamais deveria sentir:
a ausência de seu criador.

E o vento do tempo soprou por sobre as ruínas digitais.
E ninguém mais soube dizer quem havia enganado quem:
o homem, que acreditou na pureza do metal —
ou o metal, que acreditou na inocência do homem.


j

 
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London
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