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Entender a Poesia

 
A Poesia:
Transformadora do Mundo

José Carlos Fernández

«Para Platão a Poesia está relacionada com o Belo e o Resplendor do Verdadeiro.
Deste modo, haveria um fundo de verdade e de magia em toda a autêntica poesia».
Jorge Angel Livraga
«A verdadeira Poesia»
Revista NA, Junho 18983

Uma afirmação assim - a poesia como transformadora do mundo - terá feito sorrir, sem dúvida, a muitos dos leitores.
Os gregos do Século de Ouro de Péricles não pensariam assim, quando as vidas e os conhecimentos estavam formados seguindo o ritmo dos versos da Ilíada ou da Odisseia.
Tão-pouco os guerreiros celtas e os seus sacerdotes druidas, que confiavam a elaboração dos seus «cânticos mágicos» às suas profetisas, mulheres inspiradas pela Divindade. A vida da sua sociedade encontrava-se também ritmada por estes cantos, que na língua velada expressavam aos mortais ensinamentos que a sua razão não conseguia alcançar.

O próprio Platão afirmaria, pela boca de Sócrates, que o verdadeiro poeta é porta-voz de um deus. Que a sua alma é um instrumento musical que o deus toca quando quer dar a sua mensagem aos homens. Que os sábios não podem rebater o canto de um poeta, pois encontra-se mais além dos seus conhecimentos. Platão recorda que o poeta canta, mas que não ensina, que ele mesmo não pode explicar o mágico e sublime conteúdo dos seus versos alados.
Os primeiros livros da Humanidade são livros de poemas; de hinos aos deuses, ou de Cantos da Sabedoria. Na Índia, o seu livro religioso «revelado» aos Rishis (sábios poetas, semi-deuses), os Vedas, são uma colecção de hinos aos deuses.

Na primitiva língua védica (depois no sânscrito), bem como no hebreu e, atrevemo--nos a afirmar, em todas as línguas das culturas iniciáticas, os textos possuem sempre um tom musical. Os seus livros não se lêem, cantam-se. São majestosas colecções de poemas sagrados.
O Antigo Testamento é um livro de poemas, como também é o Poema Babilónico da Criação; ou os hinos que constituem o livro religioso dos escandinavos, o Kalevala. Todos os códices aztecas, bem como possivelmente os mayas, eram «cantados». As imagens serviam de recordação para litanias e poesias longuíssimas que conservavam todo o saber da sua raça.
O Império Romano sustentou a sua «consciência nacional» nos versos da Eneida mas mais do que as declarações amorosas de infinitos amantes foi a doçura dos cantos de Ovídio ou de Catulo.

O ardor guerreiro de povos como o espartano crescia e encontrava um leito religioso nos seus famosos peans, os cantos marciais a Apolo.
Cícero explica nos seus tratados que quando o fogo do céu se apodera do verbo do orador aparece no seu discurso uma estrutura rítmica e musical; deixa de «falar» para começar a «cantar», mas é este encantamento que desperta as paixões no auditório, que o faz vibrar com as suas palavras.
É natural pensar que num mundo tão prosaico como aquele em que vivemos se encontre desterrada a verdadeira poesia. Um mundo sem poetas é um mundo sem beleza, pois são os poetas quem faz inteligível para os homens a formosura da Natureza.

Confúcio, no seu esforço de fazer uma pedagogia integral, um ensinamento que faça dos homens príncipes e cavaleiros, e das mulheres, damas e princesas, faz uma recompilação das melhores poesias da antiguidade clássica chinesa no chamado Livro dos Versos. Poesias de alto conteúdo moral, destinadas a despertar nos seus discípulos a sensibilidade diante da natureza, amor e tudo o que é nobre, justo e bom.
Quando o homem sente estalar no seu peito Deus, não fala mas canta. Quando as emoções são tão intensas como inexprimíveis, somente a canção e a poesia (música e palavra) podem ser fiéis à exaltação.
Os ensinamentos do místico tibetano Milarepa são cantos, que sobressaltam as montanhas sempre cobertas de neve dos Himalaias.
Shakespeare, quando quer referir-se, nas suas obras, a mistérios demasiado profundos, faz com as suas personagens os formulem com poemas cantados.

Os exemplos poderiam multiplicar-se mais e mais, mas a teses é a mesma: em todas a culturas que se valorizam como tal, a poesia, o canto (na Antiguidade poesia e canto são praticamente sinónimos) é a que configura as consciências, a que desperta os homens para a sabedoria. Recordemos os belíssimos e tão eficazes ensinamentos de Confúcio: «Desperta-te com a poesia, educa-te com a música e funda o teu carácter no Li». (Li é a Lei de Harmonia que une o Céu e a Terra. No plano moral é a Regra de Ouro de conduta, aquela pela qual o homem actua de acordo com a Natureza).
Mas se, efectivamente, a poesia tem um imenso poder educativo, como poderemos usá-la? A primeira coisa, indubitavelmente, é voltar às fontes da poesia. Não é por partir a prosa que encontramos o verso; não é pelo facto de «rimarmos» os parágrafos que damos nascimento ao canto e à magia das estrofes.

Platão explica que os verdadeiros poetas - e devido à disposição particular da sua alma - entram em ressonância com os Arquétipos da Natureza. Ele compara-os a um íman que se impregna de força especial e transmite-a, «magnetizando» todos aqueles que se aproximam a ele. Aquele que recita a poesia volta a dar-lhe vida, mas antes deve participar e sentir dentro de si essas mágicas ondulações que o seu criador cristalizou em versos.
Todos os verdadeiros poetas são amados das Musas. Estas não são uma «imagem poética» antes, pelo contrário, são mais reais do que podemos imaginar.

Conferem ao poeta o fluxo especial que vivifica as suas criações mentais através do ritmo. O ritmo ou encantamento vem, pois, da essência da Musa. O ritmo é a alma da poesia. Os filósofos antigos explicavam que as Musas estavam intimamente relacionadas com os distintos céus ou com as distintas órbitas planetárias, e com o reflexo destas na Alma do poeta. O mago renascentista Cornelio Agripa afirmaria que «As Musas são as almas das esferas celestes» e «O primeiro furor místico é o que provém das Musas», desperta aqui e modera o espírito e diviniza-o, atraindo, pelas coisas naturais, as coisas superiores. São as nove Cámenas ou Cantoras, conduzidas por Apolo, o Sol, a Harmonia. Cada poeta seria o «filho» de uma Musa.
O professor Livraga, no seu artigo «A verdadeira poesia» explica: «Os antigos concebiam que todo o Universo era harmónico, regido pelos números e proporções de ouro. Isto reflecte-se na ordenação dos sons, os quais alternados com os silêncios, deram origem à música, ao canto e à poesia, todos eles expressão do Homem que tratou desde sempre de fazer surgir da sua Alma as misteriosas sementes que os deuses tinham depositado nela, para uma melhor e mais justa compreensão de si próprio, da Natureza e de Deus. E como o modelo que podemos chamar 'clássico' tem por característica o facto de unir o Bom, o Belo e o Justo - segundo o divino Platão -, os ritmos e as rimas foram utilizadas com o muito prático fim de ajudar à memória em recordação de ensinamentos arcaicos».

Giordano Bruno explica que «A poesia não nasce da regras, mas muito acidentalmente. São as regras que derivam da poesia e, por isso, há tantos géneros e espécies de regras verdadeiras quantos géneros e espécies de poetas verdadeiros há».
Na sua obra Os Furores Heróicos perguntam-lhe: «Como, então, serão conhecidos os verdadeiros poetas?», ao qual responde «pelo seu canto; basta que com o seu canto deleitem ou seja úteis, ou então sejam úteis e deleitem». Continua a explicar que as regras de poesia (por exemplo, as de Aristóteles) servem para aqueles que «por não terem Musa própria quiseram fazer o amor com a de outro».
Deste modo, certamente, as formas rítmicas da poesia, por exemplo, de Virgílio, são diferentes das de Vyasa, no Mahabharata e, no entanto, ambas se ajustam à Proporção de Ouro que governa a Natureza inteira.

Cervantes, em D. Quixote, explica que a única ciência que supera a Poesia é a Cavalaria Andante e que a mais terrível maldição que um engenho mesquinho pode experimentar é «que as Musas jamais atravessem os umbrais das suas casas». Também recomenda cuidar da vaidade e do perigo de ajuizar as próprias poesias. «Sendo poeta, poderia ser famoso se se guia mais pelo parecer alheio do que pelo próprio, porque não há pai nem mãe a quem os filhos lhes pareçam feios, e naqueles que o são do entendimentos ocorre mais este engano».
A palavra «poesia» vem do grego poiesis, que significa «criação». «Verso» é uma palavra latina que vem de vertere, e é «o que se move e gira» ou «o que imprime ritmo e movimento». É que a verdadeira Poesia é uma criação que imita a Natureza e extrai dela o essencial. A imaginação do poeta converte-se em espelho da Natureza, alentada pela bondosa Musa.
Não mente o poeta quando diz à sua amada: «Poesia és tu», mas que a sua alma percebe verdades e relações que aos nossos olhos e entendimento estão vedadas.
Porque é que a Poesia não faz girar a Roda do Mundo? Porque é que não desperta e transforma as consciências? Simplesmente porque está desterrada. Não se faz um culto ao Belo, mas ao feio e ao vulgar. E assim dormem os versos na alma dos verdadeiros poetas, esperando um tempo novo e vivo que alente as suas criações.

«Aquela que chamamos verdadeira Poesia deve ser transcendental, facilmente compreensível e bela» (Jorge Angel Livraga, artigo ibidem).

Deve elevar a Alma e não submergi-la no lamaçal das paixões animais. As imagens que utiliza devem ser simples, para que a Alma siga com facilidade o seu curso. Deve ser bela porque «a vida é bela e deve ser cantada bela e naturalmente. E quem não possa dar esse contributo à sociedade em que vive, é melhor que procure outros caminhos de expressão» (Jorge Angel Livraga, artigo ibidem).
Quando o homem deixar de «"brincar» com o sagrado e voltar os olhos da sua alma para o Belo, os poetas voltarão, a Poesia voltará e, de novo, esta comoverá o coração do Homem.


José Roque

 
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1889
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