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Retalhos de uma vida (retalho III: Imundice)

 

Odete dormia, um sono agitado povoado dos monstros do dia-a-dia, a conta do merceeiro, da padeira que com certeza amanhã não lhe poria o pão na porta por falta de pagamento, a prestação da mota do marido, os livros do filho, o fim do mês já aí com outra renda para pagar. E amanhã um novo dia de trabalho, mais teares, mais urdideiras, mais teias, mais lançadeiras… Mais…Mais…
Ouve-se o trinco da porta, o Artur chegou… Ouviu-lhe o passo trôpego na escuridão á procura do interruptor da luz, algo que cai ao chão na alcatifa mas não partiu, ouve-se uma imprecação. Pela voz percebe que já esteve a beber, a luz do quarto acende-se, a Odete fecha os olhos fingindo-se a dormir. Ouve o restolhar da roupa do Artur a ser despida. O Artur deita-se a seu lado na cama sem apagar a luz, ela cerra as pálpebras numa imprecação surda. Sente-lhe a respiração no pescoço mesmo por trás dela, num bafo misto de tabaco barato e álcool bagaceiro. Ele puxa-lhe o lençol para baixo até á altura das coxas, ela tenta segurar o lençol tentando disfarçar o movimento inocente do sono, de uma forma dolente, mas ele não desiste, acto continuo puxa-lhe a camisa de dormir para a cintura descobrindo-lhe as alvas coxas, metendo-lhe a mão por dentro das cuecas, sentiu a mão dura e calejada entre as nádegas percorrendo a sua extensão até lhe encontrar o ventre salpicado de uma profusão de pelos, secos como o seu interior, mas isso não o fez desistir enfiando-lhe dois dedos de uma só vez, violando-lhe a intimidade, ela geme de dor – “tu gostas…” – disse-lhe ele em tom vaidoso de macho sem eira nem beira. Já com o pénis entumecido, nessa mesma posição o Artur afasta-lhe as cuecas para o lado e começa a procurar a entrada da gruta substituindo os dedos pelo dardo que lhe entra como ferro em brasa queimando-a como tal, devassando-lhe a intimidade, humilhando a sua condição de mulher. O vai e vem foi rápido e doloroso, Odete sentiu o liquido quente a invadi-la quase de imediato. O nojo quase lhe provoca um vómito. Ele deixou-se ficar ainda um pouco dentro dela até se retirar, procurou um lenço na mesa-de-cabeceira e acto contínuo limpou-se – “gostaste?” – perguntou-lhe. – Odete nem lhe respondeu apertando as pernas para não derramar nenhum resquício imundo nos lençóis que tanto trabalho lhe dão a lavar no ribeiro – “e se me desses uma tolha em vez de me fazeres perguntas parvas?” – “foda-se, mulher frígida, nem sabe dar prazer ao home, pega lá a puta da toalha” – atirou-lhe com a toalha á cara num acto de desprezo. Odete amarfanha a toalha dentro das cuecas e levanta-se, dirige-se á casa de banho, olha as horas no relógio, duas e trinta da manhã, às cinco o despertador tocará, o seu turno começa às seis. Senta-se no bidé e deixa a água limpa inundá-la retirando-lhe a imundice, Odete esfrega com o sabão, mais e mais, tentando retirar toda a imundice do corpo, da alma…
Mas ela continua lá… A imundice, no corpo, na alma… Na vida. Artur dormia já o sono dos justos.
 
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jaber
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Enviado por Tópico
Carolina
Publicado: 30/12/2008 15:07  Atualizado: 30/12/2008 15:07
Membro de honra
Usuário desde: 04/07/2007
Localidade: Porto
Mensagens: 3422
 Re: Imundice
Infelizmente o teu conto reflecte a verdade, há muitas Odetes por esse mundo fora e homens que sem serem Artur,fazem o mesmo e alguns pior, conheço casos em que eles chegam bêbados a casa e põem os filhos e a mulher na rua, a altas horas da noite...
O conto está muito bem escrito, parabéns.

Bom Ano 2009

Beijinho


Enviado por Tópico
gil de olive
Publicado: 30/12/2008 15:41  Atualizado: 30/12/2008 15:41
Colaborador
Usuário desde: 03/11/2007
Localidade: Campos do Jordão SP BR
Mensagens: 4838
 Re: Imundice
Parabens! Um excelente texto!


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 30/12/2008 20:19  Atualizado: 30/12/2008 20:19
 Re: Imundice
Conheço algumas Odetes...

Gostei deste teu texto, alias conto, na minha opinião deverias explorar mais este tipo de textos e dar asas á tua imaginação, descobrirás enne...

Beijinhos

Luisa Raposo


Enviado por Tópico
ImprovávelPoeta
Publicado: 30/12/2008 22:09  Atualizado: 30/12/2008 22:09
Super Participativo
Usuário desde: 04/06/2008
Localidade:
Mensagens: 141
 Re: Imundice
Caro amigo,
mais do que me impressionar pelo lado dramático da história, fui sobremaneira tocado pela qualidade da tua escrita.
A forma nua e crua com que narraste este episódio (nem poderia ser de outra maneira), corajosa, contundente, mostrando como se pode escrever todos os detalhes sem ser porco, sem ser um Miller barato, mostrando-nos a imundicie sem ser imundo, é um apanágio ao alcance de muito poucos.
A minha admiração,
Silvério.


Enviado por Tópico
António MR Martins
Publicado: 02/01/2009 16:40  Atualizado: 02/01/2009 16:40
Colaborador
Usuário desde: 22/09/2008
Localidade: Ansião
Mensagens: 5058
 Re: Imundice
Jaber,

Este seu texto é sublime e eu não escrever mais nada, só...PARABÉNS.

A libertação da mulher tem de ser dada em muitas outras coisas... (fica o presente exemplo).

Aquele abraço