História do turbilhão entre-tédios
Dia de chuva quase torrencial e, por isso, quase ninguém a passear em espaço-aberto. Sem grande luz e sem grande visibilidade há um caminho agora sem enfeites humanos. Quando o guarda-chuva se esventrou com a rajada de vento por pouco não me arrependi. Só que a meio do percurso a coragem é maior (ou então, o medo reparte-se), e a vontade vence arrependimentos. Com uma vareta dobrada e outra partida, mesmo assim, a minha cabeça viu-se livre da molha. Em contrapartida, entre as meias-de-lã e as palmilhas, passou a existir uma macia (mas gélida) caixa-de-água. "Chuac", "chuac" - ao som, portanto, dos pés encharcados deu para chegar à desembocadura das águas pluviais. Aquilo jorrava com tal pujança que parecia as do Iguaçu (as cataratas, claro). Presumo que a cidade se tivesse sentido mais limpa com a chuveirada. E, além disso, a água-suja (do banho citadino) não encheu muitas poças pelas ruas (que eu saiba). Em contrapartida, com tanta doçura, a permilagem salina do estuário deve ter diminuído alguma coisa. O que aumentou de certeza foi o barulho. Que o digam três das principais espécies avícolas e estuarinas da região, que tão atraídas foram pelo acontecimento (ou pelo musicar das quedas-de-água, quem sabe). Gaivotas a montes, um corvo-marinho e uns quantos garajaus, circundavam, em aparente sobressalto, a novidade. Sei lá; talvez houvesse peixe no turbilhão.
Não há nada de raro (ou de novo) na chuva, como é óbvio. Só que a chuva não é tão frequente nestes quadrantes quanto a luz-do-sol. O que é raro, por exemplo, é ter nevado no deserto do Saara. Sim, aqui está frio, é verdade (não tanto como esteve no Saara, claro); e a chuva dizem que até aquece a temperatura. Entretanto, as nuvens abriram-se após borrasca e as pessoas saltaram das tocas. O bonito quadro-a-nu, a preto-e-branco e desfocado pelas gotas cristalinas, voltou a tomar as cores nítidas e berrantes da normalidade. Além do mais, para provar o regresso ao que é banal, nada como um avô a apontar para um veleiro e a dizer para o neto: "aquilo até dá pum gá dremir ali dentre" (tradução: aquilo até dá para um gajo dormir ali dentro). E já agora, aproveitando a deixa e só para variar a história que se repete todos os dias, um Viva para quem se aventura (sozinho) a velejar na travessia atlântica. E por falar em dormir, nada como dormir sem qualquer ideia e acordar almareado com toda a disposição para resolver qualquer temporal. Não acham?
Enfim, relembrando David Attenborough, o planeta Terra é um Planeta-vivo e em constante dinâmica. E é dificil, por esta razão, que o tédio por aqui se estabeleça de uma forma aguda. No entanto, mesmo que as verdades absolutas sejam, em certa medida, circunstanciais, a história de cada um nem sempre é (ou será) digna de um filme. Poucos ficaram (ou ficarão) para a História. Poucos escaparam (ou escaparão) da derradeira segunda-morte. É que tal como a matéria-negra entre a matéria, o tédio também existe (entre a massa-cinzenta) sorrateiramente e em abundância. E o grau de presença prática que manifesta, apesar de baixo na maioria dos casos, exige - como dizia Fernando Pessoa - a convalescência do momento. Para vencer o tédio há um remédio contido nas arestas de cada curva. Para vencer o tédio há uma diferença capacitante que sobressai, sem necessário pormenor, sobre a incapacidade geral. Ou seja, para vencer o tédio há uma cura que se quer ininterrupta...
Aliás, certamente tu e eu não faremos História. Porém, há momentos em que sabemos que estamos a fazer história (na-nossa-vida, evidentemente). Ainda que muitas vezes só seja história porque teria sido normal que já tivesse sido feita há mais tempo. As atrasadas conquistas pessoais costumam ter este efeito. Seja com o primeiro beijo ou seja com a carta de condução - e fiquemos com isto efusivos ou desiludidos -, um marco é espetado no centro da nossa memória; e só porque é comum (e funcional, quem sabe) que assim seja. Quer dizer, de uma maneira ou de outra, a nossa própria sensação de história está reduzida a parâmetros pré-definidos (ou melhor, é definida pelo tédio que vem de fora). Daí que uma chuvada (mesmo que esperada), um elogio-inesperado, os percalços e as surpreendentes-conversas, possam de algum modo causar agitação. Ou então, que de algum modo possam ser o turbilhão que aparece de vez em quando. E, depois disto, só a posição tomada após a reposição da ordem é que pode alimentar a verdadeira história. Afinal, entre-tédios, tudo pode acontecer.