Poemas, frases e mensagens de Ombuto

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de Ombuto

Flor à beira do pântano

 
Flor à beira do pântano é o nome de um filme que me ficou na cabeça, e eu nem sei muito bem porquê. Sei que na altura devia ter uns 10-12 anos e simplesmente gostei do título. Fiquei entusiasmado - lembro-me bem - com a apresentação que passou na televisão durante pelo menos 1 semana (como era hábito). E ainda por cima o elenco contava com actores de renome internacional, como o Charles Brownson - que foi um dos meus actores de acção preferidos. Porém, no dia da emissão a desilusão foi estonteante. Não consegui sequer - tal foi o tédio sentido - terminar de ver os 110 minutos da longa-metragem. Além disso, o Charles Brownson encarnava um personagem deplorável e tinha um papel ultra-secundário (quase insignificante). Depois, não havia tiros, não havia guerra, não era um Western... Em suma, não preenchia os meus requisitos (infanto-juvenis) para um bom filme. No entanto, o que é real é que o título ficou-me incrustado na memória e perdurou durante todos estes anos; na época somente por ser diferente, enigmático e talvez comprido; hoje somente porque suscita devaneios e outras interpretações dignas (para mim) de um pensamento mais absurdo.

O letreiro "Flor à beira do pântano" é sem dúvida de inspiração Yin & Yang: flor o feminino e pântano o masculino. É uma dualidade ligada pela proximidade perigosa e adjacente, que se completa. É estar à beira do precipício a contemplar a escuridão, mas seguro e preso a uma corda (ou a um caule) para não escorregar e cair. É ser o monstro e a beldade que se olham nos olhos apaixonadamente sem pestanejar, mas que pecam por falta de toque e atrevimento. É a mistura do cheiro afável do polén com o cheiro cruel da decomposição borbulhante. É uma forma de florir sem chuva, ainda que a ameaça do alagamento tenha funções de rega sincronizada pelo pulsar da pele dos batráquios. É a predisposição de estar no lugar errado constantemente, ainda que bem encaixado na biodinâmica de um ambiente à parte (e sagrado). É ter uma vontade inimaginável de sair vivo da superfície, mas sem descolar a mão presa às raízes que afloram do fundo-morto. Na pior das hipóteses é ter todo o movimento na areia-movediça, mas com os olhos fixos no céu e sem afogamento possível que mude as precauções futuras. Na melhor das hipóteses é ter sido transformado num réptil predador que, volta-e-meia, é um tronco flutuante transportador de insectos (sem asas) para outras margens. Resumindo, são mundos opostos no mesmo mundo, mas condizentes e complementares na arquitectura de um quadro surrealista.

Posto isto, resolvi rever (ou melhor, ver do princípio ao fim) o roteiro escrito por Francis Ford Coppola, filmado há precisamente 50 anos atrás. E qual não foi o meu espanto ao descobrir que o título original do filme diz que "esta propriedade está condenada". Ora, para quem não viu este enfadonho dramalhão - e descansem que não vou fazer (grandes) sinopses -, trata-se de uma metáfora: está, portanto, condenada a Alva (a sexy Natalie Wood), que parece ser propriedade de todos; e está condenada a pensão da mãe de Alva, que devido aos despedimentos na ferrovia local acaba por perder a clientela. Contudo, entende-se que "Flor à beira do pântano" seja uma tradução credível e bastante criativa para português: onde a flor é a sonhadora e rebelde Alva; e o pântano é a prisão que ela sente, não só provocada pela pressão dominadora da mãe, como também pelo facto de viver numa cidade pequena e sem perspectivas.

Existem, deste modo, dois títulos atribuídos e coerentes com o enredo da película; todavia, bastante antagónicos entre si. Isto é, passamos de uma atmosfera filosófica para um mundano e desequilibrado sentimento de monopólio. E neste aspecto - e divagando - o conceito de propriedade (privada e condenada) é algo que ainda incomoda muitos pensadores. E não é de certeza o tipo de incómodo que incomoda (incoerentemente) algumas ideologias políticas. Note-se, pois, que são sempre estas mesmas ideologias transvestidas que na prática não prescindem dos latifúndios (onde se movimentam) e dos luxos que ostentam humildemente. Ou seja, assistimos a lutas por causas que não são queridas e muito menos cumpridas, mas que se utilizam de chavões de igualdade para justificar o discurso gasto: "se eu tenho tu também podes ter". Aberrante, não? Tudo isto, aliás, faz lembrar o peixe-papagaio que pasta nas pastagens de pedra do mar: ele digere a carne dos pólipos dos corais e defeca uma chuva de areia. Exactamente como fazem as fraudes sócio-politicas: apropriam-se das duras verdades, trituram cada pedacinho, rejeitam aquilo que nada lhes dá e ainda modelam com as fezes a paisagem circundante. Elaboradas conveniências, diga-se.

Enfim, se por um lado o arquétipo "flor-à-beira-do-pântano" é uma condenação suportável que permite a experimentação dos extremos, onde algures a meio, entre a letargia e a euforia, existe a paz de uma catarse; por outro lado, o arquétipo "esta-propriedade-está-condenada" remete-nos - unicamente - para a escuridão total de um beco-sem-saída. Na mente humana a concepção de que a propriedade é um bem-comum dificilmente vinga. Logo, não pode haver um controlo colectivo e uma concessão de áreas produtivas, habitacionais e até emotivas; principalmente quando moralizamos até à ponta dos cabelos o pensamento basilar de que: "o que é meu é meu".

No íntimo, sabemos que não somos donos da terra onde pisamos (nem de qualquer espécie de matéria). É um facto. Muito embora, o pragmatismo da sobrevivência nos faça crer que sim (que somos). Daquilo que indiscutivelmente somos proprietários é do espaço intelectual que transportamos algures dentro da caixa craniana. E este espaço, ao contrário do espaço físico, é que está condenado à Tragédia-dos-Comuns; na medida em que, ou endoparasitas do medo povoam a nossa capacidade de actuar e digladiam-se pelo discernimento; ou então, as ideias dos outros colonizam a nossa imaginação. E o bizarro é que - neste âmbito - tanto a subjectividade da harmonia de uma flor à beira do pântano, como a objectividade do egoísmo de uma propriedade condenada, não explicam quem gere - a determinado momento - o espaço em que habitamos (quer seja ele físico ou intelectual). Ficamos por isso eternamente condenados ao mesmo: entre o Bem e Mal, e na posse de rigorosamente nada.
 
Flor à beira do pântano

O abismo negro

 
Os abismos, por excelência, encontram-se sob a forma de buracos-negros espalhados pela escuridão do espaço (exterior). Isto, claro, se uma dolorosa (ou mortal) queda dentro de um precipício não nos fizer ter uma noção bem mais real e bem mais terrena sobre estes fenómenos. Friedrich Nietzsche dizia que quando se olha muito para um abismo, o abismo também olha para nós. Isto é, um abismo pode inclusive ser vivo e interior, e pode estar a rodopiar incessantemente no centro do peito; na parte superior, logo abaixo do pescoço - precisamente para onde apontamos o dedo quando dizemos "eu". Sim, os abismos são múltiplos, diversos, variados e presentes em todas as escalas. O corpo humano que morre, por exemplo, é uma supernova-de-carne; a estrela-baça e extinta que consome, em tristeza, a energia de quem fica.

Enfim, quando eu era miúdo tinha uma catrefada de jogos-de-tabuleiro - quase todos da célebre marca Majora - que se foram acumulando na estante de brinquedos do meu quarto pintado de verde-abacate (acreditem). Não me lembro quem me ofereceu cada um deles, nem com que idades os fui recebendo, e em que alturas do ano os recebi; se foi no Natal, nos meus anos ou no Dia da Criança. Lembro-me de vê-los lá empilhados uns em cima dos outros, na penúltima prateleira de pinho. Os meus amigos ficavam de pescoço esticado a contemplar a diversidade de títulos (e cores) em exposição, e sempre na esperança de poderem escolher para jogar aquele que fosse, primeiramente, o mais esteticamente apetecível (conforme o gosto de cada um, claro). Só numa segunda fase, depois de ultrapassadas as dificuldades técnicas e funcionais na selecção e experimentação de alguns, é que decidíamos (democraticamente?) qual aquele que estenderíamos definitivamente no velho chão de alcatifa industrial cinzenta.

O meu melhor amigo quando ia à minha casa - era escusado - insistia sempre para que jogássemos o "Alerta no Espaço - A fuga de Cygnus", do "franchising" (e "merchandising") "O Abismo Negro" ("The Black Hole"). Um filme pouco conhecido de 1979 dos estúdios Disney. Pelo conhecimento que este meu vizinho - do prédio em frente ao meu - ostentava sobre as personagens, tanto humanas como robóticas, presumo que ele (e ao contrário de mim) já tivesse visto esta aventura cósmica no grande ecrã. Muito provavelmente a estreia deve ter sido exibida no único cinema infanto-juvenil que existia na cidade. Lugar, aliás, de eleição para as matinés cinéfilas dos putos (com as respectivas mães) aos Domingos à tarde. Sem esquecer do precioso desconto nos bilhetes que auferíamos se levássemos o Correio da Manhã e o mostrássemos à entrada ao porteiro de serviço. Porém, com alguma inveja - e por qualquer motivo - eu não estive presente no dia da projecção da cobiçada película. Por isso, fui-me contentando somente com as peripécias jogáveis do dróide V.I.N.C.E.N.T. (e dos restantes companheiros), e sempre com regras um pouco próprias e inventadas a cada partida.

Além do famoso "Monopólio" e das antigas "Damas", o "Alerta no Espaço" acabou por ser dos poucos que sobraram cá por casa, e que resistiram ao desgaste do tempo (até hoje). Isto porque, entretanto, as consolas davam os seus primeiros passos no mundo dos brinquedos; e como é sabido não tardaram a dominar todas as brincadeiras e passatempos. O meu primeiro micro-computador - um Timex 2048k - mais o seu coadjuvante reprodutor de cassetes e as respectivas fitas magnéticas, chegaram definitivamente para destronar qualquer coisa que entretivesse os olhos e a mente. Deste modo, e quase que imperceptivelmente, foram desaparecendo as velhas caixas coloridas que compunham o tão multi-facetado mosaico na decoração da minha assoalhada virada para o rio.

E foi precisamente por causa deste jogo que sempre tive pena de nunca ter visto o filme; principalmente porque a máquina-de-entretenimento (da altura) explorava (e vendia) bastante este tipo de conteúdo audiovisual. E a temática do Universo inexplorado teimava em fascinar a minha geração. Além disso, a arte futurística - que desbotava da capa daquele estojo - também nunca ajudou a esquecer que ainda me faltava ver este clássico (quase "underground") da ficção científica. O que é facto é que a coisa ficou adormecida, até que o meu primo (mais novo) - na sua impetuosa curiosidade dos 8 anos - começou a rebuscar nos armários da sala. Tanto procurou que acabou por encontrar o envelhecido tesouro algures entre umas matracas artesanais e uma máscara de mergulho. Claro está, acabei por ser obrigado (como quem diz) a montar a nave tridimensional, a estender o enorme tabuleiro de papel (que mais parece um poster) sobre a tijoleira, e a baralhar as 54 cartas (de verso preto). E para rematar, como não encontramos as instruções - e desta vez com ajuda de um cérebro fresco do século XXI -, os mandamentos foram mais uma vez inventados à medida das nossas lógicas conjugadas.

A verdade é que o reviver de todo aquele ambiente espacial, montado e impresso em cartão, voltou a despertar a minha vontade de ver a longa-metragem. Pois bem, com os recursos de uma ligação à internet não foi difícil (como é óbvio). Utilizei-me do "streaming" e assisti às imagens reproduzidas no monitor do meu pc (com som dobrado em português do Brasil). E de caminho ainda saquei as instruções do "Alerta no Espaço" (numa daquelas páginas retro dos anos 80) para aprender a jogar o dito-cujo como manda o figurino. Mas a grande surpresa foi ter ficado a saber - durante a pesquisa - sobre a raridade do jogo; parece que tem valor para coleccionadores.

Concluindo: o "Abismo Negro" não se destacou muito na época porque - convenhamos - não teve qualquer hipótese (nem tem) quando comparado com os seus mais directos rivais cronológicos: ou seja, o primeiro "Alien" e a primeira "Guerra Das Estrelas". Mesmo assim foi indicado para 2 Óscares da Academia; e um deles pela melhor fotografia que, faça-se justiça, é sublime. O roteiro é que fica muita aquém das expectativas. Senão veja-se: partindo do princípio de que o destino de quem cai num buraco-negro é mais estranho do que a morte-instantânea, a frenética acção decorrida a bordo da nave Cygnus tenta ficcionar - exactamente - sobre o que poderia acontecer se entrássemos vivos num turbilhão deste calibre. Vivos, leram bem. Todavia, dentro do rigor científico possível para os finais da década de 70, a abordagem ao assunto volta a percorrer os mistérios da Existência. E tal como na "Força" de George Lucas, centra-se igualmente na batalha entre o Bem e o Mal (para não variar). Dá-nos a pseudo-religiosa e quase ingénua visão de um Inferno para lá do vórtice; aberto não só a humanos mas também - e pasmem-se - a robôs maléficos. A imagem de Maximilian (um robô) - no final - a imperar no reino das trevas é, no mínimo, uma bizarria poética.
 
O abismo negro

A petinga e a cavala

 
A cavala - aquela que já tem o porte ideal para ser pescada - investe na caça da petinga. E a petinga (ou a sardinha-miúda) - aquela que ainda está muito abaixo dos 14 centímetros de comprimento mínimo para ser pescada - distribui-se em pequenos, medianos e grandes cardumes pelo corpo-vivo do meu velho-amigo-estuário; como que a escolher vantagem, neste ou naquele padrão de disposição, para fugir ao caçador que se ensombra no fundo. Nesta pequena cadeia-alimentar, visível a olho-nu pelo temporário observador, não há tempo para seleccionar ou acumular conversas, nem amizadezinhas. É zona de acção, onde a linguagem é substituída pela conjuntura possível, bem como pela melhor aptidão momentânea; e a esplanada-amovível - obviamente - o melhor lugar para apreciar a Natureza. A petinga - neste panorama - é uma verde-fluorescência, às riscas serpenteantes, dentro do verde-baço-das-águas; praticamente um brilho sinaleiro imiscuído às caóticas correntes de Sueste. É empurrada para trás (ou para frente) em rodopio e em rota de colisão com o movimento apetecido, e ao que parece numa sublime desordem que apenas vem para separar e mutilar os agrupamentos em movimentos desesperados. Estranho. Mas enquanto vai chegando fragmentada ao antigo ancoradouro, vai parando e vai crescendo tão bem encurralada contra o ângulo recto do obstáculo; e é aqui que a cavala ataca. Pois é, as sombras cinzentas que, noutros percursos, inofensivas se faziam, agora são punhais lançados em direcção ao céu. É a cavala que mostra os dentes e que faz respingar a petinga por toda a parte. A sorte (ou o azar) é que também há um isco reluzente pendurado numa cana mesmo no meio dos salpicos, e que a cada esticão puxa a cavala para a asfixia do chão. Então, eis que "O peixe deu à costa. Vamos salvá-lo" - terá pensado um casal de estrangeiros que por ali passava. Só que de repente: "Eiii!" - ouve-se o grito, misturadamente complacente e indignado, do pescador-de-ocasião; e a cavala morre na praia (ou no cimento).

Quando se frequenta há demasiado tempo um determinado lugar, é inevitável que se passe a conhecer o melhor e o pior dos outros frequentadores desse lugar. Por isso, no que toca à ingestão da minha dose diária de cafeína, gosto de saltitar - agora no verão - de esplanada em esplanada. Acho que, no fundo, é uma procura de liberdade, ou uma forma de afastamento à amizadezinha-de-circunstância (a que é imperativa e que aborrece); aquela que por educação (e por falsa simpatia) só te obriga a falar palha e a ouvir palha; aquela que te faz perder tempo e que não te deixa ler um livro-de-papel (ou um jornal-de-papel); aquela que te tapa as boas-vistas e que te embrutece as boas-ideias. Portanto, antes que um simples "bom dia" descambe para um "posso me sentar aqui?" (para que se fale de "eu-cá-isto" ou "eu-cá-aquilo"...), evito a todo o custo conhecer os demais habitués dos lugares que frequento. Esta técnica rotativa de esplanadas, de facto, ameniza o grau de intimidade - muitas vezes tóxica entre frequentadores - que se vai impondo a cada ida ao mesmo lugar. Mas, por outro lado, indo a mais lugares - numa linha de tempo contínua (e na falta de um infinito número de esplanadas) - o efeito torna-se perverso e completamente contrário ao desejado: ou seja, aumenta a probabilidade de aumentar o número de amizadezinhas atreladas - lá está - às crescentes (e carcereiras) intimidadezinhas . Não há escapatória (zinha, já agora).

Não é assim tão fácil diluir o volume de socialização-diária pelas horas do dia. Ainda que quase toda a gente goste de gente, a predisposição para se estar verbalmente activo dispersa-se - quotidianamente - de maneira diferente de pessoa para pessoa. Há quem funcione a uma só velocidade (ou a uma só leve-concentração constante); estes eu diria que são os sócio-universais. E depois há quem precise de 2 ou 3 velocidades (ou de 2 ou 3 grandes intercaladas-concentrações); estes eu diria que são os sócio-selectivos. Contudo, acontece que muitas vezes a conversa-profunda chega de rompante aos sócios-universais, e estes bocejam como preguiças drogadas. Outras vezes é a conversa-leve que chega de rompante aos sócio-selectivos, e estes - ahhh! - também bocejam como preguiças drogadas. Algures a meio - e dependendo da sorte de quem nos calha na rifa desta insuficiência-monótona - estará a virtude de uma conversa sem o vício da hipocrisia (de bajular ou de insultar). Por exemplo, um encharcanço de relevâncias (ao assunto) destrói a leveza da ignorância, e o peso desta percepção pode ser demolidor para qualquer um dos lados. E um encharcanço de banalidades logo após um encharcanço de solidão-indesejada pode até trazer equilíbrio à "sã-convivência". Depende. Acredito, por isso, na importância (ainda que imoral) de estar desejadamente-só no processo de diálogo; afinal, é condição "sine qua non" para que estejamos livres da nefasta-interferência e prisioneiros da vampírica-inspiração. O que, no fim das contas, é tudo o que importa no mundo-de-superfície (tanto das ideias como da cultura). Nada como ter a "sabedoria" de colar fragmentos (ou retalhos) - ouvidos e lidos deste ou daquele - para que uma suposta criatividade (ou um suposto conhecimento), que julgamos realmente possuir, se manifeste o mais escandalosamente possível (onde quer que seja). Acontece frequentemente (aos melhores e aos piores).

Como quem vê confortavelmente o encontro drástico da petinga e da cavala (e do pescador) - lá está - à superfície, assim serão outros aproximados submundos-de-superfície vistos por outras observações; e que em verticais viagens borbulham outras ideias e outros conhecimentos. E perante este facto, 2 opções podem ser tomadas pelo "criativo" e "culto" observador: ou fica satisfeito com aquilo que lhe é dado a ver; ou tenta ir mais longe. Enfim, dentro e fora das esplanadas-da-vida, a conversa é um ecossistema. Porque, ao-fim-ao-cabo, o que importa neste jogo-das-cadeiras é a sobrevivência (sócio-mental?): ou queremos escapar ou queremos caçar. No que diz respeito à escapatória (do transtorno), quando se aproximam da minha beira os enfardados de metadona - que circulam nos estrados por onde pisam todos os pés de mesa desta cidade - a minha estratégia é a de me levantar e de me ir embora. Todavia, as amizadezinhas já foram feitas, e é matemático que um pobre e solitário desgraçado - que por ali anda - me faça sempre a mesma pergunta: "Tem um cigarrinho?"; que nunca tenho porque não fumo. Pobre desgraçado este, porém, que em dias de recebimento da pensão (de invalidez, presumo), tão livre se vê de toda e qualquer solidão ao arrastar (pela cauda) um bando de aves-de-rapina (de semelhante laia entorpecida, claro); e que ainda tem a irónica generosidade de me perguntar: "Quer um cafezinho? Eu pago, eu pago". Só rindo. Já noutro extremo, no que diz respeito à caça - caramba -, que coisa tão bonita é a nova empregada da mais recente esplanada que frequento. Moreninha, perfeitinha e os calções - ai os calções pretos - apertados e modelados à fina pele da juventude. E porque a nossa troca de palavras nunca passou de frases curtas, do tipo "É um café se faz favor!"; "Ora aqui está!"; e "Obrigado!", jamais lhe apalpei convenientemente o sotaque. Presumi que, tendo em conta o fenótipo exibido, fosse originária dos trópicos; pelo menos, até ao momento em que alguém lhe fez a despudorada pergunta: "Ouve lá, tu és brasileira, não és?". Foi então que levantei as orelhas e ouvi a resposta: "Não! Sou moldava".
 
A petinga e a cavala

A mão do rio

 
Assim de cálculo leve, é evidente: os pequenos bem-estares estão correlacionados—de forma única—com a intensidade de absorver e de reagir aos impactos das circunstâncias, comuns ou incomuns. Mas como ter mão, ou a vitamina certa necessária, na intensidade de resposta ao ataque? Ou como ter a melhor imunidade aos avanços do abuso circunstancial? Será melhor baixar a guarda, deixar de fora os punhos fechados e desfrutar da vista privilegiada para a casualidade? Ou será melhor estipular a meta do atleta, seguir o programa e forçar o murro e a teimosia? O ideal seria que fôssemos os senhores das intensidades. Ou não?

Pensar sobre estratégias, feitos e projectos elegantes e morais de vida, por si só, e a determinado momento, tem trejeitos de intensidade máxima suportável, a rodar osso-com-osso na mais ínfima orgânica partícula. A perspectiva do combate então sobreaquece, fumega e acalora os ânimos menos dignos. E um dia chega a exaustão como uma arma de alívio às culpas e ao pânico, e a pedir o despejo de um balde de água sobre a roldana infernal que relincha descontroladamente. Talvez depois haja beleza no refúgio da âncora, no fundo, e numa prisão que até pode ser conveniente. Mas dificilmente haverá amor pela fraca destreza demonstrada e, muito menos, pela obrigação de ficar.

As intensidades pulsam, meditam e hiper-ventilam ao sabor dos pensamentos feridos. E porque ninguém respeita a insanidade, a mão amiga que bloqueia a loucura—nestes instantes—é o medo de cair na própria loucura. Sim, esta mão nunca pára de embalar o berço da recém-nascida sanidade. Esta mão quer amparar toda a circunstância que possa crescer e que possa resultar. Esta mão segura a explosão da cabeça com passatempos degradantes, e traça os riscos nas paredes a contabilizar os dias em que o tempo é devorado por estranhos.

Quando calha, lá vem a mão de um semelhante pousar sobre os ombros; pode ser a mão de amigo e de gosto pela presença mútua, ou então, pode ser a mão do golpe da empatia dos grandes vendedores. Em suma, a mão faz-me pensar e duvidar. Olho para elas, para as minhas, olho para as outras das esculturas de pedra, e olho para as unhas que as nuvens fazem lá em cima. Há mão por todo lado. Depois há a mão do rio que é diferente, porque faz sentir que pode haver um cadáver a completá-la. Mas haverá corpo desta vez? Não, nem corpo nem mão, porque é uma luva cirúrgica na estranha posição de estar virada para cima—quase a romper a camada superficial—em pose de garra de lobisomem e a querer rasgar as carnes do céu. É impossível não bater os olhos naquela mão pálida que também pede esmola de palma exposta ao mundo, quase como um fóssil envolto por endurecido âmbar, imune ao tempo e à mercê da suave corrente. Lembrei-me logo dos mamutes conservados no gelo. E lembrei-me dos multimilionários, cujo ego nem na morte descanso lhes deu, ali, mergulhados e "criogenados" em panelas gigantes, à espera que a vida lhes volte a sorrir de novo, talvez em Marte.

Enfim, muitos dirão que só com mão-de-ferro—fundamental na procura de soluções de boa intensidade e crucial na boa-educação dos pequenos bem-estares—é que sobrevive o domínio pela arte de existir, entre a audácia e os planos-de-fuga. De resto, de mão-em-mão como estafetas numa corrida, é esta a imagem que circunscreve a rota iludida e competitiva do sangue-novo. E é também de mão-em-mão como anéis de ouro que se fecha o ciclo da mudança dos que já desistiram. E tudo isto é tão estúpido quanto as graciosas pessoas que à beira de mim passeiam os cães encoleirados, e que se dobram menos graciosas para colectar com as próprias mãos a merda que já não pode ser pisada.

No rigor da realidade—e como diria T. S. Eliot—todos os homens são de palha (e com mãos de palha, evidentemente). Ou seja, vazios, apoiados uns nos outros, mal-convencidos, nus e a espernear dentro de uma viagem. Muito diferente da mão que viaja no rio; que é a mão dos que nunca existiram e dos que nunca espernearam, nem viajaram, nem desistiram, e cuja intensidade é aquela que passa diante da minha reacção, a estupidificar ainda mais a forma como escondo as minhas mãos dentro dos meus bolsos.
 
A mão do rio

O nevoeiro - ou uma história de guerra

 
Não havia combate; pelo menos daquele tipo que envolvesse troca directa de tiros, mas estávamos na guerra, sem dúvida. O ar pesava de tanta humidade, juntamente com uma serenidade abusiva, que era tudo menos reconfortante. A selva, de tão verde, feria a percepção de outras cores que pudessem existir; ainda que a cor de sangue, que o medo pressente, também estivesse presente e assombrasse ainda mais o nevoeiro constante. As árvores alcançavam uma altitude perfurante e as copas teimavam em rendilhar o tímido sol. Folhas de arbustos galgavam sobre a terra ferrosa e tapavam marcas de pegadas e rastos de pneus. Era tudo demasiadamente estático e a selva africana era senhora da sua incontornável presença sobre o caminho que a cortava.

Ali andávamos nós naquele chão que levava de volta ao quartel. E a marcha lenta amedrontava as consciências, porque parecia prometer que dali não sairíamos vivos. Penso que todos imaginavam que mais tarde ou mais cedo alguém pisaria uma mina ou seria atingido por uma bala vinda da vegetação. E esta ansiedade era estupidamente insuportável. Entretanto, o descanso durante as patrulhas impunha-se premente, porque a sede e as picadas dos miruís - os pequenos mosquitos - castigavam e causavam delírios de febre que ajudavam à loucura anestesiante e recalcada que prevalecia.

Numa tarde luminosa, em que uma aberta solar venceu as nuvens, transportávamos um prisioneiro que fora denunciado por um qualquer habitante local, ou até mesmo por alguém do próprio movimento terrorista. Não sei. O protocolo foi até certo ponto seguido; afinal este tipo de operação já fazia parte da rotina desta guerrilha pontual, morna e logística. O suspeito tinha sido arrancado violentamente de um esconderijo nas proximidades, e nesse momento foi estranho sentir o pânico que ele esboçava na atitude; aqueles olhos piedosamente arregalados penetravam que nem espadas na minha compaixão. Mas o pior veio a seguir. A detenção provocou, entre alguns de nós, uma agressiva reacção - diria mesmo animalesca; e gerou-se um frenesim de proporções assustadoras que culminou com o som seco de uma coronhada. O sangue derramou-se logo ali no capim. E enquanto uns concediam permissividade ao ódio, como que mostrando a verdadeira essência humana, outros questionavam a imoralidade do acto e do cenário surreal. Enfim, eu acredito piamente que este conflito profundo de personalidades, nesse dia, salvou a vida de um homem.

Para o bem da estabilidade colectiva, o padrão normal de descompressão - e após mais um incidente perturbante - repetia-se no convívio entre nós companheiros de armas. Para extravasar a tensão contida, as conversas tinham que ser absurdas, os silêncios raros e cada excesso necessário e urgente. No meio de risadas sonoras, cerveja barata, fumo de tabaco e jogos de cartas, pousávamos de novo aquartelados; no conforto possível do nosso mais recente lar. Apenas os embriagados olhos ajudavam a ver bondade nos rostos circundantes, pelo menos até que o sono por fim vencesse por mais uma noite.

Na manhã seguinte, e ainda a neblina tirava a visibilidade da paisagem, entrei sozinho no jipe. Trajando apenas calções, chinelos e no ombro a pistola-metralhadora, meti a primeira, derrapei e arranquei. Para os mais novatos tal à vontade no meio daquela insegurança parecia uma completa insanidade; mas talvez fosse apenas mais uma necessidade de não me importar com a situação e de não pensar em nada. Como estava encarregue das provisões alimentares, o caminho das compras teve como destino a aldeia. Pelas comunidades por onde passava as crianças corriam atrás do veículo em movimento. Clamavam efusivamente pelos rebuçados que habitualmente eu lhes trazia. Os gritos de alegria e a correria juntavam-se a um exército de pequenas mãos empoeiradas que se erguiam repetidamente, prontas a disputar avidamente a doce oferenda lançada ao ar.

No seguimento do rodo quotidiano possível, fazia-se mais uma noite quente e na caserna alguns soldados divertiam-se a picar as solas dos pés dos prisioneiros que estavam detidos no andar superior. Utilizavam-se das baionetas das espingardas enfiadas através das frechas de madeira do soalho. Os gritos de dor arrepiavam e eram acompanhados de gargalhadas doentias. Imediatamente, claro, opus-me à barbárie, mas alguém apressou-se a enfrentar-me. Começava um duelo de convicções há muito esperado. Numa rápida troca de palavras, um golpe de punho é desferido por mim; que só me antecipei, em defesa, perante o inevitável. No instante seguinte, ele tentava chegar cambaleante à arma de serviço, ao que instintivamente reagi chegando primeiro à minha, que estava mais perto; no meu coldre sobre a minha cama. Apontei-lhe friamente o cano e tudo pausou num silêncio suado. A plateia militar que se havia formado dividida em gritos de incentivo conteve apreensiva a respiração, e tudo ficou dependente de um gesto brusco. Nada aconteceu. Arrefeceram-se os ânimos, os rostos tensos do pelotão relaxaram, e simultaneamente o corpo de um 2º sargento - que assistia mudo ao confronto - desfaleceu e caiu estrondosamente no chão. Foi como se tivesse sido jogada uma toalha ensanguentada ao tapete; e a luta terminou.

Na verdade, os efeitos do ambiente eram subtilmente nefastos, e o nevoeiro estava dentro e fora dos nossos pensamentos. Existiam sim inimizades, que tão facilmente surgiam como também surpreendiam e se perdiam. Para comprovar, no fim da comissão, acabei por ser alvo de um esquema fraudulento interino. Faltavam provisões no inventário e eu era o principal responsável, embora não fosse o culpado. Apenas assinei induzido e de boa fé um documento que não deveria ter assinado. Espontaneamente, porém, a reacção da camarata fez-se sentir e revelou-se forte e emotiva. Sem que eu pudesse prever, um dos soldados retirou da mochila duas rações de combate - porque era hábito serem guardadas para recordação - e num gesto de camaradagem entregou-me as preciosas latas. Foi o rastilho para que todos os outros o seguissem na atitude. Inclusive o meu mais recente inimigo, que de pose rígida e silenciosa cumpriu da mesma maneira o seu dever de irmandade. Por alguns momentos o olhar entre nós prolongou-se, recebi a oferta, acenamos ligeiramente com as cabeças, apertamos as mãos e nunca mais o vi.
 
O nevoeiro - ou uma história de guerra