
O Impostor - Um Livro Luso Poemas - CAP IX - O Filho do Esquecimento
Data 07/07/2025 02:59:34 | Tópico: Poemas
|
As mãos ainda tremiam quando ele fechou o diário. Mas algo estava diferente desta vez.
Não era só medo. Era uma presença.
O quarto estava mergulhado em penumbra, mas o ar parecia vivo. Como se cada respiração puxasse para dentro dele o sussurro de alguém que o observava, bem atrás da pele do mundo.
Cael tocou a capa gasta do diário de Adam. A textura parecia pulsar, quente. Por um segundo, jurou que o couro respirava.
— Isso não é um livro… — murmurou. — É uma chave. Mas pra quê?
O espelho do banheiro estava limpo. Sem trincas, sem distorções. Mas não refletia nada. Nem ele mesmo.
— Será que já morri…? — pensou, tocando o rosto. Frio. Gelado. Mas vivo.
De repente, um som. Miado.
Pandora. Veio debaixo da cama.
Cael correu até o quarto, o coração acelerado. Ao erguer o lençol, os olhos se encontraram.
Pandora estava lá. Mas os olhos não eram mais verdes. Eram negros. Fundos. Espelhavam algo que Cael não queria lembrar.
Ela deu um passo para trás. Depois outro. E sumiu na escuridão que não devia estar ali — como se o chão se abrisse em um corredor que jamais existiu sob o piso da casa.
Cael engatinhou. O chão era frio, mas cedia ao toque como barro fresco. Avançou. E então… caiu.
Despertou sobre degraus de madeira antiga, numa escada que descia sem fim. O ar era espesso, sem cheiro, sem som. As paredes laterais eram espelhos — mas mostravam cenas diferentes:
Em um, ele criança, assistindo o pai tocar violão. No outro, ele mais velho, no chão, com a seringa caída ao lado. No seguinte, ele… sem rosto. Só uma boca sorrindo onde deveriam estar os olhos.
Tentou descer correndo, mas a escada parecia esticar-se sob seus pés. Tentou gritar, mas a voz saía abafada. Como se estivesse debaixo d’água.
Então, ouviu.
A voz dele. Mas não dele. A voz do outro Cael. O impostor.
Cada degrau é um erro, Cael. Cada degrau é uma escolha que você tentou enterrar.
Continue descendo. A verdade está no fundo.
Ao alcançar o último degrau, encontrou-se em frente a uma porta. Baixa. De madeira carcomida. Nela, cravejado como uma cicatriz, o símbolo que vira nos rituais do diário.
Ele hesitou. Mas a voz voltou.
Você já a abriu antes. Só não lembra.
A maçaneta queimava ao toque. Mas girou com facilidade.
Do outro lado, um quarto antigo. Não o seu. Um quarto de criança. Cheio de brinquedos. Bonecos costurados à mão. Livros de capa dura. E no centro, sentado em uma pequena cadeira…
Adam. O pai. Jovem, como nas fotos.
Mas os olhos… negros.
Pai…?
Adam levantou-se. O corpo moveu-se, mas parecia puxado por fios invisíveis. Como um boneco.
Ele sorriu. O mesmo sorriso do homem de chapéu. A boca grande demais para o rosto.
Azael…? — Cael sussurrou, a garganta seca.
A figura acenou com a cabeça.
Adam foi só um receptáculo. Você é a herança. A nova carne. O novo nome. O novo livro.
O chão tremeu. As paredes se desfizeram em espelhos. Em cada um, uma versão de Cael — bêbado, criança, morto, chorando, sorrindo com os olhos negros.
Você nunca foi um só. Sempre fomos muitos. Você só está lendo agora aquilo que escreveu em outras vidas.
Pandora surgiu no centro da sala. Sentou-se. Olhou para ele. E disse — com voz humana:
Acorde, Cael. Agora, pela última vez.
Cael caiu de joelhos. Na frente dele, o diário. Aberto. Com uma nova entrada escrita em tinta vermelha:
---------------------
Entrada 1 — 7 de julho de 2025 Meu nome é Cael. Mas não sou só Cael. Sou o que restou de Adam. Sou o que virá depois de Azael. Sou o reflexo entre as frestas. Hoje, o ciclo recomeça.
---------------------
O diário fechou-se sozinho. As luzes apagaram. E Cael… Sorriu.
(Acompanhe os Capítulos anteriores)
CAPÍTULO VIII
https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=378758
CAPÍTULO VII
https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=378510
CAPÍTULO VI
https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=378454
CAPÍTULO V
https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=378324
CAPÍTULO IV
https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=377975
CAPÍTULO III
https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=377970
CAPÍTULO II
https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=377968
CAPÍTULO I
https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=377921
|
|