O ar pesava nos pulmões como se estivesse respirando através de lama.
O chão estava frio. Duro. Cheirava a álcool velho, cigarro queimado e desespero.
Tudo girava.
O som era um ruído distante, como se estivesse debaixo d’água.
Até que veio a primeira pancada no peito. E a voz:
— CAEL! MEU FILHO, PELO AMOR DE DEUS, ACORDA!
A consciência explodiu em agulhadas.
Ele abriu os olhos com esforço, como se pálpebras fossem tijolos.
As luzes queimavam sua visão. A cabeça pulsava. As mãos estavam suadas, pegajosas.
Ele estava deitado na sala — ou o que restava dela.
A televisão ligada em uma tela azul. Garrafas quebradas. Embalagens de comprimidos vazias. Cinzas. Sangue seco em sua mão.
E sua mãe.
De joelhos, os cabelos bagunçados, o rosto em choque, em fúria, em pranto.
— VOCÊ QUER MORRER, É ISSO?! — ela gritou, sacudindo o corpo mole de Cael. — OLHA EM VOLTA! OLHA O QUE VIROU ESSA CASA! O QUE VOCÊ VIROU!
Cael piscou. Tentou respirar. Tentou se mover.
Mas era como se o peso do mundo estivesse empilhado sobre seu corpo.
— Mãe… eu… eu sonhei com…
— NÃO FOI UM SONHO, CAEL! FOI UMA OVERDOSE! VOCÊ TAVA DESMAIADO NO CHÃO, FRIO, SEM RESPONDER! EU PENSEI QUE TINHA TE PERDIDO!
A voz dela cortava o ar como açoite. Cada sílaba carregava uma dor antiga, um medo recente, e a raiva de quem se culpa por não ter impedido tudo antes.
Ela se levantou. Começou a andar em círculos, segurando os próprios cabelos, como se estivesse tentando conter o colapso que ameaçava engolir ela também.
— EU TÔ ACABANDO, CAEL! EU TÔ SOZINHA NESSE INFERNO! E VOCÊ TÁ SE MATANDO! EU NÃO VOU VER MEU FILHO VIRAR UM CADÁVER DENTRO DE CASA, NÃO VOU!
Ele gemeu baixo.
Sentia o gosto metálico do sangue na boca. O cheiro podre de vômito misturado com alguma coisa… azeda.
A sala era uma cápsula doentia — um estômago do qual ele não conseguia sair.
— Mãe… a casa… ela se mexeu… eu vi coisas… meu pai… ele…
— O SEU PAI TÁ MORTO, CAEL! VOCÊ ENTENDE? ELE. TÁ. MORTO! VOCÊ PRECISA DE AJUDA!
Ela se virou para ele com olhos arregalados. Estavam cheios de dor, de raiva e de algo ainda mais brutal: decepção.
— Você não consegue mais distinguir o que é real! Eu vou te internar, Cael. Chega! Você NÃO pode mais ficar aqui sozinho!
Ele tentou protestar, mas as palavras travaram na garganta.
— Eu… eu não me lembro de ter tomado nada. Eu… eu só dormi. Eu vi o porão. O espelho. Pandora… cadê Pandora?
— SE ENXERGA, CAEL! OLHA O ESTADO EM QUE VOCÊ TÁ! VOCÊ QUASE MORREU! EU NÃO VOU DEIXAR VOCÊ SE ENTERRAR VIVO!
Ela saiu correndo da sala, batendo a porta atrás de si com força.
O silêncio caiu de novo.
Tão espesso que parecia uma manta encharcada de angústia cobrindo tudo.
Cael se arrastou até o sofá.
Cada músculo gritava. Sua cabeça parecia cheia de cacos de vidro.
Olhou ao redor. A sala inteira parecia respirar com ele.
As paredes pareciam mais próximas. O teto mais baixo.
Havia algo errado no ar. Algo… presente.
— Pandora…?
E então ouviu.
Um miado fraco.
Arrastado.
Quase… dolorido.
Veio do corredor.
Mas ao correr até lá, nada.
O potinho de comida ainda caído. A ração espalhada.
E mais nada.
O peito de Cael apertou.
Algo dentro dele… estalou.
Ele encostou na parede. A respiração oscilava. Os olhos ardiam.
E no reboco da parede — aquele mesmo reboco riscado no dia anterior — agora havia outra frase, como se alguém tivesse escrito com o dedo em carne viva:
“Você está começando a acordar.”
As mãos dele tremeram.
O quarto pareceu girar.
O mundo ameaçava engoli-lo inteiro.
E então, mais uma vez...
TOC. TOC. TOC.
Três batidas secas.
Na porta do quarto.
Ele se virou, devagar.
A maçaneta girou.
Cael congelou.
Quando a porta se abriu, o frio entrou como uma rajada.
E no vão da porta…
Estava ele.
O outro ele.
Pálido. Os olhos completamente negros. A pele esticada, doente.
A boca se mexeu, e a voz saiu como um eco vindo de um mundo invertido:
“Bem-vindo de volta, Cael. Mas dessa vez… você não acordou.”