A luz era um borrão.
Cael acordou como se fosse sugado de um pesadelo profundo — mas havia algo errado, como se nem mesmo o despertar fosse um retorno à realidade. O ar estava denso, pesado, carregado de uma eletricidade silenciosa que zumbia dentro de sua cabeça.
Não enxergava nada.
Nem mesmo um palmo à frente de sua mão.
Seus olhos ardiam. As pálpebras pesavam como pedras. A luz, se existia, era uma penumbra sólida. A mente girava, confusa — imagens, sons, fragmentos de memória que não se encaixavam. Uma colagem insana, uma dança descoordenada de lampejos:
Pandora. O espelho. O homem do chapéu. A voz.
Nada era concreto. Nada era confiável.
Ele levou a mão ao chão para se apoiar — e sentiu algo frio, cortante. Um estalo seco. Um jorro morno.
— Agh...! — gemeu, abafando o grito.
Cortara a palma da mão num pedaço de espelho.
A dor atravessou seu corpo como uma agulha de gelo, mas foi o suficiente para clarear um pouco sua percepção. O sangue escorreu entre seus dedos e caiu em gotas no piso encardido de cerâmica, desenhando manchas que mais pareciam símbolos antigos.
Estava no banheiro.
Como...?
As peças não se encaixavam.
Ele olhou ao redor, tremendo. O espelho da espelheira estava destruído — mas não em mil pedaços como numa explosão. Não. Era quase como um quebra-cabeça cuidadosamente desmontado, rachado de forma cirúrgica. Faltavam dois pedaços. Um jazia ao seu lado, ainda com sua carne presa a ele. O outro... sumira.
Ele se arrastou até a pia, lavou o rosto com mãos trêmulas, tentando não olhar para o próprio reflexo distorcido.
Mas não havia reflexo.
A água caiu, fria, e o toque o acordou por completo. O tempo parecia suspenso. Tudo estava... errado.
Ao sair do banheiro, a sensação de desorientação aumentou.
Seu quarto — ou o que deveria ser seu quarto — estava um caos. As paredes pareciam pulsar, como se respirassem. A cama revirada. Os papéis espalhados. E no chão, como se um animal houvesse se debatido, a tigela de ração de Pandora virada, os grãos espalhados como sementes de uma tragédia.
— Pandora...? — chamou, com a voz baixa e embargada.
Nada.
O silêncio respondeu como uma sentença.
Ele sentiu uma pressão crescente nos ouvidos, como se uma frequência inaudível estivesse chiando dentro do crânio. A atmosfera era irrespirável, carregada. Cada passo que dava dentro da casa parecia ser observado. Como se a casa em si tivesse olhos. Como se tivesse... fome.
Olhou para os relógios.
Todos marcavam 3h45.
Todos. De forma exata, congelada. Repetida.
Tentou ajustar o digital da cozinha. Nada. Tentou dar corda no de parede. Nada.
O tempo não andava mais.
Cael correu até a porta da cozinha. Abriu com força. Respirou fundo.
E caiu de novo na sala de estar.
Era impossível.
Tentou outra vez. Corredor, cozinha, porta... a mesma sala.
Estava preso.
Preso em um ciclo.
Preso em si.
As mãos no cabelo, a respiração ofegante. O desespero rasgando sua garganta como vidro moído. Voltou ao quarto — e tudo havia mudado outra vez.
Agora, mais escuro. Mais... vivo.
As paredes estavam marcadas por pequenas pegadas vermelhas. Padrões de sangue felino. Pegadas de Pandora. Cael seguiu o rastro, como um louco. Acompanhou até o canto onde ela costumava dormir, ajoelhou-se no chão, o coração acelerado.
— Isso não é real… isso não é real… isso não é real…
Tentou acender um cigarro, mas o isqueiro queimava sem consumir. A chama dançava imóvel, como uma lembrança congelada no tempo.
Virou a garrafa de bebida — e nenhuma gota caiu.
O tempo estava... morto.
As portas não levavam a lugar algum. As janelas não se abriam. O teto parecia se afastar. As paredes se moviam. O chão pulsava.
A casa respirava.
Ela queria falar.
Ela estava falando.
Com ele.
Voltando ao banheiro, Cael pegou cuidadosamente o pedaço de espelho e encaixou de volta na moldura rachada. As linhas quase se uniram perfeitamente.
Um som.
Três batidas.
POW. POW. POW.
Voz abafada. Frágil. Mas presente.
— Cael… me ajuda…
A entonação era infantil, mas carregada de algo antigo. Uma melodia desconexa, familiar e estranha ao mesmo tempo.
Mais três batidas. Agora sem voz.
POW. POW. POW.
O som vinha do quarto.
Ele pegou uma faca na cozinha. As mãos suadas, o rosto pálido.
Silêncio.
Aproximou-se do quarto, os passos leves. Mais batidas. Agora mais próximas.
De baixo da cama.
Com o coração martelando o peito, ele se ajoelhou. Levantou o colchão, então o estrado. Havia ali, incrustada ao chão, uma porta de madeira escura. Pequena. Antiga.
— Isso não estava aqui…
Mas estava.
Estava o tempo todo.
Colocou a mão sobre ela — e um frio percorreu sua espinha. Um arrepio seco. Algo ali... era maligno. Como se tivesse sido selado.
“Você já esteve aqui, Cael…”
A voz sussurrou dentro dele. Mas não era dele.
Desceu os degraus, um a um, de madeira velha. Cada passo rangia alto demais. As paredes do porão respiravam, mas o ar era denso, como se houvesse algo se esgueirando entre os espaços.
No fundo, uma única lâmpada tremeluzia no teto. E sob a luz pálida: uma velha televisão, de tubo, daquelas que zumbem como insetos.
Ela ligou sozinha.
Sem imagem. Apenas ruído branco.
E sobre ela, um diário.
Seu coração parou.
O nome do pai.
"ADAM"
Na capa. Em letras desbotadas.
A televisão rangeu — e uma imagem surgiu, distorcida. O pai sorria. Cael ainda bebê no colo. Era a mesma imagem da única foto que ele conhecia. Mas havia movimento. Era um vídeo. Uma lembrança viva.
A imagem tremulou.
Corte seco.
O pai, desesperado, conversando com o homem de chapéu.
Segurando Cael nos braços.
— Não… — sussurrou, dando um passo para trás.
Eles se conheciam.
O homem da escuridão. O mesmo sorriso cortado. O mesmo chapéu largo demais, sombrio demais.
A TV estourou em faíscas.
Tudo apagou.
As paredes do porão começaram a se fechar.
Cael correu.
Pegou o diário.
A única luz vinha da abertura da escada. Mas parecia distante, como se o túnel se alongasse a cada passo. O ar ficava mais espesso. Mais opressivo. Ele corria sem sair do lugar.
Pânico.
Medo.
Morte.
Então, no caminho da escada, um espelho.
E Cael se viu.
Mas... não era ele.
Seus olhos estavam negros. A pele cinzenta. A boca rasgada em um sorriso que não era humano.
O reflexo piscou.
E sussurrou:
— Você finalmente acordou.