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O Impostor - Um Livro Luso Poemas - CAP V - Delirio em Quatro Paredes

 
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A luz era um borrão.

Cael acordou como se fosse sugado de um pesadelo profundo — mas havia algo errado, como se nem mesmo o despertar fosse um retorno à realidade. O ar estava denso, pesado, carregado de uma eletricidade silenciosa que zumbia dentro de sua cabeça.

Não enxergava nada.

Nem mesmo um palmo à frente de sua mão.

Seus olhos ardiam. As pálpebras pesavam como pedras. A luz, se existia, era uma penumbra sólida. A mente girava, confusa — imagens, sons, fragmentos de memória que não se encaixavam. Uma colagem insana, uma dança descoordenada de lampejos:

Pandora. O espelho. O homem do chapéu. A voz.

Nada era concreto. Nada era confiável.

Ele levou a mão ao chão para se apoiar — e sentiu algo frio, cortante. Um estalo seco. Um jorro morno.

— Agh...! — gemeu, abafando o grito.

Cortara a palma da mão num pedaço de espelho.

A dor atravessou seu corpo como uma agulha de gelo, mas foi o suficiente para clarear um pouco sua percepção. O sangue escorreu entre seus dedos e caiu em gotas no piso encardido de cerâmica, desenhando manchas que mais pareciam símbolos antigos.

Estava no banheiro.

Como...?

As peças não se encaixavam.

Ele olhou ao redor, tremendo. O espelho da espelheira estava destruído — mas não em mil pedaços como numa explosão. Não. Era quase como um quebra-cabeça cuidadosamente desmontado, rachado de forma cirúrgica. Faltavam dois pedaços. Um jazia ao seu lado, ainda com sua carne presa a ele. O outro... sumira.

Ele se arrastou até a pia, lavou o rosto com mãos trêmulas, tentando não olhar para o próprio reflexo distorcido.

Mas não havia reflexo.

A água caiu, fria, e o toque o acordou por completo. O tempo parecia suspenso. Tudo estava... errado.

Ao sair do banheiro, a sensação de desorientação aumentou.

Seu quarto — ou o que deveria ser seu quarto — estava um caos. As paredes pareciam pulsar, como se respirassem. A cama revirada. Os papéis espalhados. E no chão, como se um animal houvesse se debatido, a tigela de ração de Pandora virada, os grãos espalhados como sementes de uma tragédia.

— Pandora...? — chamou, com a voz baixa e embargada.

Nada.

O silêncio respondeu como uma sentença.

Ele sentiu uma pressão crescente nos ouvidos, como se uma frequência inaudível estivesse chiando dentro do crânio. A atmosfera era irrespirável, carregada. Cada passo que dava dentro da casa parecia ser observado. Como se a casa em si tivesse olhos. Como se tivesse... fome.

Olhou para os relógios.

Todos marcavam 3h45.

Todos. De forma exata, congelada. Repetida.

Tentou ajustar o digital da cozinha. Nada. Tentou dar corda no de parede. Nada.

O tempo não andava mais.

Cael correu até a porta da cozinha. Abriu com força. Respirou fundo.

E caiu de novo na sala de estar.

Era impossível.

Tentou outra vez. Corredor, cozinha, porta... a mesma sala.

Estava preso.

Preso em um ciclo.

Preso em si.

As mãos no cabelo, a respiração ofegante. O desespero rasgando sua garganta como vidro moído. Voltou ao quarto — e tudo havia mudado outra vez.

Agora, mais escuro. Mais... vivo.

As paredes estavam marcadas por pequenas pegadas vermelhas. Padrões de sangue felino. Pegadas de Pandora. Cael seguiu o rastro, como um louco. Acompanhou até o canto onde ela costumava dormir, ajoelhou-se no chão, o coração acelerado.

— Isso não é real… isso não é real… isso não é real…

Tentou acender um cigarro, mas o isqueiro queimava sem consumir. A chama dançava imóvel, como uma lembrança congelada no tempo.

Virou a garrafa de bebida — e nenhuma gota caiu.

O tempo estava... morto.

As portas não levavam a lugar algum. As janelas não se abriam. O teto parecia se afastar. As paredes se moviam. O chão pulsava.

A casa respirava.

Ela queria falar.

Ela estava falando.

Com ele.

Voltando ao banheiro, Cael pegou cuidadosamente o pedaço de espelho e encaixou de volta na moldura rachada. As linhas quase se uniram perfeitamente.

Um som.

Três batidas.

POW. POW. POW.

Voz abafada. Frágil. Mas presente.

— Cael… me ajuda…

A entonação era infantil, mas carregada de algo antigo. Uma melodia desconexa, familiar e estranha ao mesmo tempo.

Mais três batidas. Agora sem voz.

POW. POW. POW.

O som vinha do quarto.

Ele pegou uma faca na cozinha. As mãos suadas, o rosto pálido.

Silêncio.

Aproximou-se do quarto, os passos leves. Mais batidas. Agora mais próximas.

De baixo da cama.

Com o coração martelando o peito, ele se ajoelhou. Levantou o colchão, então o estrado. Havia ali, incrustada ao chão, uma porta de madeira escura. Pequena. Antiga.

— Isso não estava aqui…

Mas estava.

Estava o tempo todo.

Colocou a mão sobre ela — e um frio percorreu sua espinha. Um arrepio seco. Algo ali... era maligno. Como se tivesse sido selado.

“Você já esteve aqui, Cael…”

A voz sussurrou dentro dele. Mas não era dele.

Desceu os degraus, um a um, de madeira velha. Cada passo rangia alto demais. As paredes do porão respiravam, mas o ar era denso, como se houvesse algo se esgueirando entre os espaços.

No fundo, uma única lâmpada tremeluzia no teto. E sob a luz pálida: uma velha televisão, de tubo, daquelas que zumbem como insetos.

Ela ligou sozinha.

Sem imagem. Apenas ruído branco.

E sobre ela, um diário.

Seu coração parou.

O nome do pai.

"ADAM"

Na capa. Em letras desbotadas.

A televisão rangeu — e uma imagem surgiu, distorcida. O pai sorria. Cael ainda bebê no colo. Era a mesma imagem da única foto que ele conhecia. Mas havia movimento. Era um vídeo. Uma lembrança viva.

A imagem tremulou.

Corte seco.

O pai, desesperado, conversando com o homem de chapéu.

Segurando Cael nos braços.

— Não… — sussurrou, dando um passo para trás.

Eles se conheciam.

O homem da escuridão. O mesmo sorriso cortado. O mesmo chapéu largo demais, sombrio demais.

A TV estourou em faíscas.

Tudo apagou.

As paredes do porão começaram a se fechar.

Cael correu.

Pegou o diário.

A única luz vinha da abertura da escada. Mas parecia distante, como se o túnel se alongasse a cada passo. O ar ficava mais espesso. Mais opressivo. Ele corria sem sair do lugar.

Pânico.

Medo.

Morte.

Então, no caminho da escada, um espelho.

E Cael se viu.

Mas... não era ele.

Seus olhos estavam negros. A pele cinzenta. A boca rasgada em um sorriso que não era humano.

O reflexo piscou.

E sussurrou:

— Você finalmente acordou.


Kaique Nascimento


 
Autor
KaiiqueNascimentto
 
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Enviado por Tópico
A.Maria
Publicado: 29/05/2025 17:49  Atualizado: 29/05/2025 17:49
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 Re: O Impostor - Um Livro Luso Poemas - CAP V - Delirio e...
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Estou acompanhando, antes parecia ser real com a participação da mãe, gosto do agora, da fantasia, vejo mais possibilidades.
Abraços,