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O Impostor - Um Livro Luso-Poemas - CAP II

 
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Os olhos ardiam. Ele os abriu devagar, como se o próprio peso das pálpebras fosse um castigo. O quarto… ainda era o mesmo? O teto manchado de umidade, as paredes descascadas, as garrafas vazias no chão. Ou será que algo havia mudado? Algum detalhe sutil, quase invisível, deslocado no espaço?

O peito subia e descia irregular. O ar tinha gosto de poeira e fumaça. A cabeça latejava, um pulso teimoso dentro do crânio, como se alguém do lado de fora batesse, insistentemente, querendo entrar. Ele passou a mão pelo rosto, sentindo a barba crescida, áspera, suja. Tentou se levantar, mas o corpo cedeu, pesado demais, ou seria o chão que o puxava para baixo?

Ali, no meio da bagunça, um pedaço de papel chamava atenção. Ou ele apenas queria que chamasse? Pegou-o, com dedos trêmulos. As letras estavam borradas… ou nunca estiveram ali? Um número? Um desenho? Um símbolo? Ele apertou os olhos, tentando decifrar, mas tudo que via era um borrão, como se a tinta escorresse para dentro da própria pele do papel.

“Eu escrevi isso? Alguém deixou aqui? Ou nunca existiu?”

Um som no corredor. Passos? Algo arrastando? Ou era só o eco das batidas do próprio coração? A porta rangia suavemente. Estava trancada? Ou sempre aberta? Ele não lembrava. Esticou a mão, hesitante, quase desejando não alcançar. Mas não alcançou.

Fechou os olhos, tentando ouvir. Um tic-tac invisível preenchia o ar. O relógio estava quebrado, ele sabia. Ou será que não? As horas se embolavam na mente, os segundos se estendiam como fios pegajosos, presos entre os dedos da memória.

Então, uma voz. Grave, áspera, familiar. Ou totalmente desconhecida.
“Você demorou.”

Ele virou lentamente. Uma sombra projetava-se contra a parede. Um homem? Uma silhueta? Ou apenas a imaginação alimentada pelo álcool e pelo medo?

Tentou responder. A boca seca, as palavras presas como pedras na garganta. A figura avançou, sem som, sem peso. Estendeu algo: uma folha, idêntica à que ele segurava. Ou diferente? Ele não sabia mais.

“Preciso das anotações.”

Anotações? Quais anotações? Do que estavam falando? Ele sentiu o estômago embrulhar, as pernas fraquejarem. “Eu… escrevi algo? Eu… roubei algo? Ou… sonhei tudo isso?”

A figura soltou um bilhete, que flutuou no ar até pousar no chão. Ele o pegou, as mãos suadas, tremendo. Leu. Ou tentou.

"A chave está no passado que você escondeu de si mesmo."

“Mas… que passado? Que chave? Que porta? Eu… tranquei algo? Fugi de quê?”

Quando ergueu os olhos, a figura havia sumido. O corredor vazio. Ou sempre vazio.

O peito apertou. O bilhete queimava nas mãos. Ou era só o calor do medo? Ele cambaleou de volta ao quarto, tropeçando em garrafas, em memórias esfareladas. O espelho trincado devolvia um rosto que ele mal reconhecia. Ou talvez nunca tivesse reconhecido.

Na rua, um som. Sirenes? Risos? Miados? Ou só o zunido do próprio ouvido, pregando peças? A janela batia suavemente. O vento trazia cheiro de maresia? De fumaça? De sangue? Ele não sabia. E não sabia se queria saber.

O telefone tocou. Um som metálico, cortante, que parecia perfurar o ar, ou apenas vibrava dentro da cabeça. Ele atendeu. A mão gelada, suada. Uma voz metálica, distante.

“Não confie nela.”

“Nela… quem? A mulher que nunca vi? A que sonhei? A que inventei? A que esqueci?”

A ligação caiu. Ou nunca existiu. Ele ficou ali, com o fone na mão, olhando para o vazio, tentando puxar os pensamentos, como quem tenta segurar água com os dedos. Olhou para o bilhete. As letras mudaram? Ou ele já não sabia mais ler?

O relógio avançava? Ou girava em círculos? Ele não sabia. O coração batia mais rápido, ou havia parado há horas. O quarto era um labirinto, uma prisão, um espelho. Ele estava sozinho, acompanhado, observado, esquecido. Tudo ao mesmo tempo.

E do lado de fora, um gato preto cruzava a rua. Ou apenas a sombra de um pensamento que ele ainda não conseguia alcançar.

No fundo, uma certeza pulsava. Ou tentava pulsar. Mas, toda vez que quase emergia, escorregava de volta para o abismo. O abismo onde ele mesmo havia se escondido.


Kaique Nascimento


 
Autor
KaiiqueNascimentto
 
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