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O Impostor - Um Livro Luso Poemas - CAP VIII - O Peão Caído

 
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O sol da manhã não trouxe alívio, apenas um tom frio, quase azulado, que atravessava as cortinas pesadas da sala. Cael abriu os olhos devagar, a cabeça latejando com um zumbido abafado, como se estivesse debaixo d’água. A luz parecia um estorvo — cortante, artificial. Aquele tipo de manhã que te acorda com culpa, mesmo quando você não sabe por quê.

O silêncio da casa era espesso. Nenhum som de pássaros, nenhum carro passando. Era como se o mundo tivesse se esquecido daquela rua, daquela casa — dele.

Mas então, um cheiro de café recém-passado serpenteou pelo ar.

Ele se levantou com dificuldade. As pernas estavam bambas, o corpo ainda anestesiado pela ressaca sem bebida. Ao sair do quarto, viu sua mãe na cozinha, virada de costas, mexendo na chaleira, com os ombros tensos e os olhos avermelhados.

Ela não morava ali. Mas nos últimos dias parecia ter invadido o espaço, talvez por medo, talvez por necessidade. Depois da overdose, passara a aparecer diariamente, como uma sombra aflita, tentando controlar o que já era incontrolável.

— Bom dia — ele murmurou.

Ela virou-se de súbito, segurando a xícara com força demais, como se quisesse arremessá-la.

— Bom dia? Bom dia, Cael? — a voz dela era cortante, mas havia um tremor ali, um desespero em forma de raiva. — Você quer me matar do coração? Eu te encontrei jogado no chão, cercado de garrafas, drogas, mijado… e ainda tem coragem de me dar “bom dia” como se nada tivesse acontecido?

Cael fechou os olhos. Ele se lembrava… e não se lembrava. A memória estava turva, como um lago revolto. O porão que nunca existiu, a televisão que mostrava seu pai, a porta embaixo da cama, o espelho… e Pandora.

— Eu tive um pesadelo — sussurrou.

— Não! — ela explodiu. — Você teve uma overdose! Você quase morreu, Cael! E se depender de mim, da próxima vez, você vai direto pra uma clínica.

O coração dele disparou. Mais do que a ameaça de ser internado, era o tom dela que o feria. Um tom misturado de mágoa, medo e exaustão. Não era só a mãe preocupada. Era uma mulher à beira do colapso por não conseguir alcançar o próprio filho.

— Eu tô tentando, mãe… tô mesmo.

— Tentando o caralho! — ela gritou, depois se calou de súbito, levando as mãos ao rosto. Chorava baixinho agora. — Eu não sei mais o que fazer. Eu te amo, Cael, mas... você tá se destruindo. E levando tudo junto.

A cozinha parecia encolher. A respiração de Cael ficou curta. Sentou-se à mesa, passando as mãos pelo rosto, tentando não desmoronar.

Mas então, ouviu.

Miado.

Um som baixo, abafado, vindo do corredor. Pandora.

Ele se virou rapidamente, o coração disparado. Chamou o nome dela. Correu até o quarto. Nada. O miado cessou.

A tigela de ração ainda estava ali, virada, como no dia do colapso. Ele a recolheu com cuidado, limpando as migalhas como se fosse um ritual. Sua mãe o observava da porta, em silêncio agora.

— Ela está viva — ele disse. — Eu escuto ela… às vezes arranhando o sofá, às vezes ao meu lado na cama. Eu sei que ela não fugiu.

A mãe balançou a cabeça com tristeza.

— Cael… até ela não aguentou mais. Gato sente. Talvez tenha fugido porque a casa tá… doente. Igual você.

Ele sentiu a frase como uma bofetada. A casa estava doente. Ele estava doente. E aquilo doía mais porque, de certo modo, parecia verdade.


---

Os dias que se seguiram foram como andar sobre cacos de vidro. Cael evitava sair. Tomava os remédios receitados, mantinha a casa em ordem. Lavava os pratos. Varriam juntos. Ele e sua mãe, numa coreografia de reconciliação forçada. Ela ia e vinha do trabalho, aparecia todos os dias com sacolas, mantimentos, frases preocupadas.

Mas ele não dormia. E quando dormia, sonhava com espelhos que não refletiam nada.

Miados continuavam a visitá-lo à noite. Sentia Pandora pular na cama, massagear com as patinhas suas costas, ronronar bem junto de sua orelha. Quando virava-se… nada.

Estava ficando louco. Ou já estava.

Sua mente era um campo de batalha. E ele, que sempre se orgulhou de ser um estrategista, um jogador nato, agora se sentia como um peão esquecido no tabuleiro.

“Quem sou eu nesse jogo?”, pensava. “Aquele que protege a rainha? Ou só mais um peça levada à morte em silêncio?”

Certa manhã, enquanto organizava algumas caixas antigas no depósito dos fundos, encontrou. Estava empoeirado, entre papéis, livros escolares e um velho rádio quebrado.

Um diário.

Adam, dizia a capa em letras gravadas à mão, quase apagadas pelo tempo.

Cael sentiu o sangue gelar.

Lembrava-se dele. Vira aquele mesmo diário no porão sob sua cama. Um porão que não existia.

As mãos tremeram. Ele o levou até a cozinha. Mostrou à mãe.

Ela empalideceu ao vê-lo. Tocou a capa como quem encara um fantasma. Não disse nada por alguns segundos. Depois, apenas murmurou:

— Você achou isso... onde?

— Estava entre minhas coisas. Mas eu... já vi esse diário antes. Eu vi ele no porão.

Ela levantou o rosto devagar, os olhos duros.

— Cael… nossa casa nunca teve porão.

— Eu sei.

O silêncio que se seguiu era quase vivo. Como se a casa inteira prendesse a respiração. A mãe pegou o diário das mãos dele, passou os dedos pelas páginas fechadas… e devolveu, rápida demais.

— Talvez seja melhor você não mexer com isso. É coisa velha. Memória antiga. Nem tudo precisa ser remexido.

Havia algo na forma como ela disse aquilo. Algo que causou calafrios em Cael. Como se ela soubesse.

Como se ela estivesse escondendo algo.

Ele não insistiu. Guardou o diário no criado-mudo ao lado da cama. Não estava pronto. Ainda não.


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Naquela noite, ficou acordado até tarde.

O cigarro tremia entre os dedos, mas não chegou a acendê-lo.

Em vez disso, pegou o violão. Deitou-se no sofá com as luzes apagadas, e dedilhou acordes tristes, arrastados, compondo palavras que saíam como confissões abafadas:

“Se eu sou só mais um peão,
que se perca no tabuleiro,
mas me deixe salvar quem amo,
antes que vire só o espelho…”

O som ecoava na sala como se a casa escutasse. Como se ela mesma chorasse com ele.

Foi quando ouviu.

Uma voz.

Baixa, serpenteando pelo ouvido como veneno em sussurro:

— Você realmente está acordado… ou continua sonhando?

Cael congelou.

— Abra e leia o diário, Cael. Ele é a chave. Sempre foi.

A chama do abajur oscilou. As sombras dançaram nas paredes.

Ele se levantou devagar. Pegou o diário.

E, com as mãos suando, abriu a primeira página.


Kaique Nascimento


 
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KaiiqueNascimentto
 
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Enviado por Tópico
HorrorisCausa
Publicado: 08/06/2025 14:36  Atualizado: 08/06/2025 14:36
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 Re: O Impostor - Um Livro Luso Poemas - CAP VIII - O Peão.../KaiiqueN
Olá KN

Não sei se estás com ideias de publicar. Se não estás, devias.

É imperativo que assim seja.

Atenciosamente
HC