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O Impostor - Um Livro Luso Poemas - CAP IX - O Diário de Adam

 
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"Nada do que escrevo é para ser lido. Mas se você chegou até aqui, talvez já seja tarde demais."

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Entrada 1 — 17 de março de 1978

Hoje Charlote me olhou como se soubesse de algo. Disse que há uma maneira de sentir o mundo além da pele, além dos olhos, além da razão. Eu me apaixonei por ela, acho, antes mesmo de saber seu nome completo. Charlote pensa como ninguém — seus olhos veem linhas nas coisas que ninguém vê. Foi ela quem falou do primeiro ritual.

Estamos nos reunindo atrás da alfaiataria abandonada, onde o costureiro ainda consegue chaves antigas. Ele é pálido e calado, mãos que tremem ao segurar linhas, mas firme ao costurar símbolos. O outro, o maçom, só quer poder. Vem de família rica, estudou em colégios internos. Tem livros que parecem vivos.

Hoje desenhamos o primeiro símbolo no chão com giz e sal negro. Chamaram de "Roda de Ligação". Nada aconteceu. Mas o ar ficou mais denso. O chão parecia vibrar, e as sombras, mais longas. O costureiro vomitou depois. O maçom sorriu.

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Entrada 2 — 21 de março de 1978

O símbolo continua lá, mesmo com a chuva. Charlote disse que é sinal. Esta noite, acendemos velas azuis e colocamos fragmentos de cabelo e sangue em um círculo. O costureiro hesitou, mas fez. A vela dele apagou três vezes antes de acender.

Comecei a ver vultos no reflexo da água. Pequenos movimentos, como se alguém caminhasse de costas. Charlote anotava tudo. O maçom sugeriu que usássemos os ossos de um animal. Encontramos um gato atropelado. Ele limpou os ossos como quem limpa taças.

Nada disso parece real. Mas também não parece sonho.

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Entrada 3 — 31 de março de 1978

O costureiro chorou hoje. Disse que algo sussurrou no ouvido dele enquanto dormia. Que prometeu levá-lo costura por costura, dedo por dedo. Charlote apenas anotava. O maçom trouxe um livro em latim que só ele conseguia ler. Falava de uma entidade "ancestre de tudo que não tem nome".

Fizemos um ritual com vinho, sal, terra de cemitério e ossos. A vela do costureiro queimava em chamas verdes. O chão tremeu por um instante. Alguém sussurrou meu nome, mas ninguém mais ouviu. Depois, Charlote me beijou como se selasse algo.

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Entrada 4 — 10 de abril de 1978

Não durmo mais. Toda vez que fecho os olhos, vejo o símbolo. Ele pulsa. Parece tatuado sob minhas pálpebras. O costureiro tem marcas no corpo como se algo o arranhasse à noite. O maçom... ele está diferente. Menos humano. Fala com frases que não são dele. Cita vozes. Ri sozinho.

Charlote diz que estamos “próximos do limiar”. O que isso significa, ninguém explica. Hoje sacrificamos um rato e queimamos seu coração com resina preta. O cheiro parecia cantar. A vela do costureiro explodiu em fumaça escura. Ele desmaiou.

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Entrada 5 — 19 de abril de 1978

Algo passou pelo espelho. Eu vi. O reflexo era eu, mas não era eu. Sorriu como Charlote. Os olhos... negros. O costureiro pediu para parar, mas o maçom gritou com ele. Disseram que se parar agora, “não tem volta”. A briga quase terminou em socos.

Charlote chamou o próximo ritual de “Ato de Entrada”. Diz que vamos abrir uma fresta, uma rachadura entre mundos. Usaremos nossas vozes para chamar. Cada um cantará o seu nome completo enquanto a faca corta a pele e deixa cair o sangue no solo virgem.

Estamos todos feridos, mesmo antes de sangrar.

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Entrada 6 — 3 de maio de 1978

A fresta foi aberta. Sentimos. Vento dentro da sala sem janelas. Os símbolos acesos com fogo frio. Os olhos do costureiro vazios. Charlote caiu de joelhos e sorriu. O maçom tocava o chão como quem toca um peito. Algo respondeu. Não em voz. Mas em presença.

Vimos... chapéu. Um homem feito de sombra. Não tinha rosto. Nem cheiro. Mas ele olhou cada um. E então sussurrou em línguas que não são da Terra. A voz veio de dentro do nosso estômago.

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Entrada 7 — 8 de maio de 1978

O costureiro não consegue dormir. Dorme e acorda com agulhas no travesseiro. Diz que alguém o costura à noite. O maçom está obcecado, diz que o homem é “uma entidade de ligação intergeracional”. Charlote diz que é “nosso filho coletivo”.

Hoje ele falou conosco. O homem do chapéu. Disse se chamar Azael. Que é “o último a ser nomeado” e o “primeiro a existir”. Diz que nossa linhagem está marcada. Que isso não acaba aqui. Que nossos filhos, netos, todos carregarão o fardo do que invocamos.

Eu não sou pai. Mas sinto que já perdi alguém.

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Entrada 8 — 16 de maio de 1978

O costureiro não veio. O maçom trouxe terra de túmulo da própria família. Charlote está diferente, mais quieta. Disse que Azael mostrou a ela a “escada dos espelhos” — um lugar onde tudo se repete eternamente até ser aceito.

Hoje enterramos um artefato no centro do símbolo: um boneco feito com nossos cabelos, costurado com linha vermelha, recheado de dentes que o maçom disse não serem humanos.

Senti dor em meu peito ao enterrá-lo. Como se fosse enterrar meu próprio futuro.

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Entrada 9 — 30 de maio de 1978

O costureiro tentou se matar. Diz que não aguenta mais “a mão fria no tornozelo”. O maçom chamou isso de “resistência fraca”. Charlote gritou com ele, pela primeira vez. Disse que estamos longe demais.

Azael apareceu hoje. Disse:

“Vocês me chamaram com sede, e eu vim com fome.”
“Adam, mesmo que morras, tua semente me verá novamente.”
“Sou o lamento antes do nome, e o nome depois da morte.”

O chão rachou levemente. Todos choramos. Por medo. Por sabermos que, de alguma forma, tudo estava selado.

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Entrada 10 — 6 de junho de 1978

O ritual final.

Três velas pretas. Sangue fresco. Fragmento de espelho do primeiro reflexo distorcido. Um nome escrito com a língua — literalmente.

O costureiro desapareceu depois disso. Nunca mais o vimos.

O maçom falou que “ele foi recolhido”. Charlote diz que está arrependida, mas que não consegue se afastar. Que Azael está dentro dela, dentro de mim, dentro do papel.

Hoje fiz um pacto. Não com palavras. Com medo.

E sei que esse diário...
...um dia alguém vai abrir.
E será como abrir a ferida do mundo.

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Cael, de mãos trêmulas, fecha o diário com força. O silêncio da casa o sufoca. Mas, entre um suspiro e outro, um som o faz congelar: um miado longo, abafado, vindo de debaixo de sua cama.

Ele se levanta devagar.
O violão ainda está em suas costas.
O quarto está escuro, mas ele sente.
Algo observa. Algo o reconhece.

E então... uma voz ecoa dentro dele.
Baixa.
Sibilante.
Familiar.

“Você realmente está acordado… ou continua sonhando?”

“Abra novamente, Cael.”

“Leia até o fim…”


Kaique Nascimento


 
Autor
KaiiqueNascimentto
 
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Enviado por Tópico
A.Maria
Publicado: 22/06/2025 15:08  Atualizado: 22/06/2025 15:08
Da casa!
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 Re: O Impostor - Um Livro Luso Poemas - CAP IX - O Diário...
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Perfeito!

Surpreende a organização, no início pensei ser uma mudança repentina, mas depois lembrei que a mãe do personagem pede para ele guardar o diário, esse escrito é muito parecido com a vida real e a nossa mente perigosa ou perfeita para alguns que gosta de flores, na mente popular e muitos nem vivem acreditam nisso, por sim ou não, prefiro gastar o tempo lendo.
Abraços,