Poemas : 

O Impostor - Um Livro Luso-Poemas - CAP III - O Peso do Amanhecer

 
Tags:  amor    solidão    tristeza    medo    culpa    drama    Reviravolta  
 
O dia nascera frio. Um vento cortante passava pelas frestas mal vedadas da janela, batendo contra os lençóis embolados no chão.
Cael abriu os olhos devagar. O teto do quarto parecia mais baixo, mais claustrofóbico do que ele lembrava. Ele virou a cabeça — um gemido baixo escapou dos lábios rachados.
O estômago revirava, a boca seca colava a língua no céu da boca. A cabeça doía como se pequenos martelos batessem ritmadamente em ambos os lados das têmporas. Tentou se mexer, sentiu a pontada nos joelhos, nas costas. Um cheiro azedo de álcool, cigarro e suor pairava no ar.

Com esforço, sentou-se na cama. O colchão rangia baixo, enquanto ele respirava fundo. As mãos tremiam levemente.
“Que noite foi essa…? Eu… eu não saí daqui, saí?”
O pensamento vinha entrecortado. Ele tentava, mas não conseguia costurar as memórias. Imagens soltas: um vulto na porta? Um copo caindo? A sombra de um relógio que ele não lembrava ter?
O quarto, semi-escuro, estava uma bagunça: garrafas vazias, cinzeiros cheios, roupas largadas como carcaças. Pandora, sua gata cinza de pelo longo e mancha preta no rosto, estava sentada sobre a cômoda, olhos semicerrados, observando-o em silêncio. Cael sentiu os olhos dela como um julgamento calmo, silencioso — a única testemunha constante da sua vida desmoronando.

Levantou devagar, apoiando-se no armário. As pernas fraquejavam, a respiração acelerava só de se erguer. Um leve tremor cruzava os braços.
O corredor até o banheiro parecia mais longo do que era. Ele caminhou, batendo de leve no batente da porta. No banheiro, acendeu a luz — piscou, a luz o cegava momentaneamente.
Encostou as mãos no mármore manchado da pia e jogou água fria no rosto. O choque da água trouxe um momento de clareza, mas também um calafrio que fez seus ombros encolherem.

BANG BANG BANG!
A porta.
“Cael! Abre essa porta agora!”
Mari. A mãe.

Ele prendeu a respiração. Sentiu a tensão no corpo crescer, como se um peso empurrasse seus ombros para baixo.
Cambaleou pelo corredor, chegou à porta, destrancou. Mari entrou de supetão, o cheiro forte de tabaco envolvendo a sala. O olhar dela passeou pelo chão coberto de garrafas vazias, roupas, pacotes de cigarro, copos sujos.
“Você voltou a usar, Cael? Hein? Eu fui dormir duas da manhã, cadê você estava?”
Ele piscou, confuso.
“Eu… eu tava aqui…”
Mari ergueu a voz, os braços cruzados, as sobrancelhas franzidas:
“Eu tento te ajudar! Dou conselho, dou o que você precisa, mas cada centavo que você pega você muda, Cael! Você se perde!”
Ele sentiu a raiva fervendo.
“Você só vem aqui pra me julgar! Você nem vê a fase que eu tô passando!”
Mari riu, um som seco.
“Fase? Que fase, Cael? Já são seis, sete anos assim! Você não procura ajuda! Uma pessoa tão bonita, inteligente, vive trancada nessa vida, nessa casa imunda! Talvez só mude quando eu morrer… ou nem isso, se você não for antes!”
As palavras cortaram fundo. Ele abaixou a cabeça.
“Como se eu já não tivesse tentado… sou um fardo pra você, mãe. Nem eu me suporto.”
Mari respirou fundo, tentando segurar a própria raiva.
“Eu vim aqui antes das duas, Cael. Bati nessa porta, não atendeu. Eu entrei, não tinha ninguém aqui! Onde você foi?”
Ele arregalou os olhos. Um calafrio cruzou a espinha. Ele não… ele não tinha saído. Ou tinha?
“Eu não sei… juro… eu não saí daqui…”
Mari soltou um suspiro frustrado, virou de costas.
“Como vou te ajudar se você não se ajuda?” — bateu a porta atrás de si.

Cael ficou imóvel por um momento, ouvindo o eco da batida da porta. Depois, suspirou, voltou ao banheiro, tirou a roupa e ligou o chuveiro.
A água fria desabou sobre ele. Ele mordeu os lábios para não gritar. O corpo encolhido sob o jato gelado, os ombros tremendo, os dentes batendo. Ele sabia — fazia dois anos que precisava trocar a resistência. Dois anos adiando. Tinha dinheiro para bebida, para cigarro, para coisas que o destruíam… mas não para uma simples resistência.

Saiu do banho enrolado na toalha, tremendo. Foi até o quarto. Pandora ainda estava na cômoda, olhando-o de cima, como se dissesse:
“De novo, Cael?”
Ele sentou na cama, respirou fundo, olhando o quarto ao redor. O caos era quase confortável. Um reflexo externo da bagunça interna que ele carregava.
“Foi real? Foi sonho? Eu… eu preciso sair…”

Vestiu uma roupa qualquer e saiu de casa. O sol da manhã era duro, cortante, como se zombasse dele. Cada passo pelas escadas era um pequeno martírio: os músculos reclamando, a cabeça girando, o estômago revirando. O corpo parecia mais pesado, como se a noite anterior tivesse deixado correntes invisíveis amarradas às suas pernas.
No caminho até a adega, ele desviava o olhar das pessoas indo trabalhar.
“Eles… eles não olham pra mim… mas eu sei o que pensam.”
Cada passo era mais lento, mais arrastado. Ele pensava em tudo que queria fazer:
“Eu vou terminar meu livro… algumas poesias… talvez… escrever uma canção no violão…”
Mas tudo parecia distante, enevoado.

Chegando à adega, Thiago abriu um sorriso caloroso.
“Veio comprar pão pro café da manhã, Cael?”
Ele soltou um riso fraco.
“Hoje é café, almoço e janta, Thiago.”
Comprou duas garrafas baratas, trocou algumas palavras com Thiago.
“Ontem parecia um pesadelo…”
Thiago, cauteloso, aconselhou:
“Dá um tempo nessas coisas, cara. Eu também não tinha nada antes. Quando parei, consegui mais do que precisava: família, filha…”
Cael respondeu com sarcasmo:
“Essa vida não é pra mim. Já tentei, faz tempo… sempre acabo aqui.”

Voltando para casa, apressou o passo ao passar pela cozinha da mãe. Sentiu o olhar dela o atravessar ao ver a sacola preta. Entrou, trancou a porta.

Pandora já estava deitada na cama, o rabo enrolado no corpo, olhos semicerrados, como se esperasse ele voltar.
Cael sentou-se ao lado dela, respirou fundo.
“Eu vou… eu vou terminar… eu vou…”
Mas as palavras morriam. A mente estava nebulosa, os pensamentos enroscados. Ele passou a mão pelo rosto, fechou os olhos.

Lá fora, o som da rua, dos carros, das vozes.
Lá dentro, um silêncio denso, sufocante.
No canto do quarto, algo brilhou. Ele abriu os olhos — por um instante, jurou ver uma sombra. Uma silhueta. Mas quando olhou de novo, não havia nada.

Pandora abriu os olhos, olhou na mesma direção.
E, por um segundo, Cael teve a impressão de que ela sabia algo que ele não sabia.


Kaique Nascimento


 
Autor
KaiiqueNascimentto
 
Texto
Data
Leituras
21
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
0 pontos
0
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.