O Impostor - Um Livro Luso Poemas - CAP X -O Chamado de Pandora

Data 08/07/2025 19:31:21 | Tópico: Poemas



O som da respiração era o único ruído na casa.

Fraca. Rastejante.
Como se o próprio ar estivesse morrendo ali dentro.

A luz da tarde filtrava-se por entre as cortinas pesadas, riscando o chão da sala como dentes amarelados. No centro, entre garrafas caídas, cacos de vidro e papéis amassados, jazia o corpo de Cael.
Inerte.
De bruços.
O braço estendido.

Espalhadas ao seu redor, agulhas perfuravam a pele, dispostas em forma de um círculo imperfeito, como um símbolo esculpido por mãos invisíveis. Não havia sangue. Só pele rompida e um silêncio denso como o fundo do mar.

A porta da casa foi escancarada com violência.

— CAEL?!

Mari entrou com o peito ofegante e o rosto em pânico. Os olhos demoraram um segundo a entender a cena. No chão, o filho. Ao lado dele, um frasco caído. As pupilas dela dilataram, e o grito que saiu não tinha palavra, só desespero.

Correu até o corpo, sacudindo os ombros dele.

— MEU DEUS, MEU DEUS... CAEL! NÃO FAZ ISSO COMIGO!

As mãos dela tremiam. O celular caiu no chão.
Ela pegou novamente e ligou. Ambulância. Socorro. Vômito seco na garganta.

Mas foi aí que ela viu.

Ela.

Pandora.

Sentada ao lado de Cael, completamente imóvel.
Os pelos eriçados.
Os olhos como dois espelhos de prata escura.
Fixa.
Silenciosa.
Observando.

Mari congelou.

— Pandora...?
Você... você não...
Você não estava...

Pandora levantou lentamente. Arqueou as costas.
E soltou um rosnado baixo.
Um som que nenhum gato doméstico teria coragem de emitir.

— Não... sou só eu aqui. Sou eu, Pandora, sou eu... — Mari estendeu a mão, trêmula.

FOOOSHH!

Pandora avançou num salto, rosnando, os dentes à mostra, as garras rasgando o ar à frente do rosto de Mari — sem atingi-la, mas deixando claro: não se aproxime.

A mulher recuou, chocada.
— O que é isso...? O que você é, minha filha?...

A ambulância chegou minutos depois.

Dois paramédicos tentaram abrir caminho.
Pandora não permitiu.

Ela rosnava, arranhava, pulava sobre as mãos enluvadas, mordia o ar como se protegesse o corpo de Cael com a própria fúria ancestral. Um dos enfermeiros recuou, o outro tentou agarrá-la — e saiu com três arranhões fundos no antebraço.

— Tirem esse bicho daqui! — gritou um deles.

Mas Mari, assustada, teve um surto de lucidez:

— Esperem...
Ela não está atacando por mal.
Ela... está guardando ele.
Ele... ainda está respirando.

O olhar de Pandora suavizou por um instante.
Ela voltou a se sentar ao lado de Cael, ronronando devagar, como se lhe cantasse uma canção de embalar os mortos.


(Horas depois, no centro psiquiátrico)


O ambiente era branco demais, limpo demais.
Cael estava inconsciente, agora em coma induzido, os braços enfaixados, o corpo monitorado.
Uma enfermeira ajustava os aparelhos.

Na porta, Mari discutia com o psiquiatra responsável.

— Ele teve um surto. Um episódio extremo. Talvez psicose. Talvez tentativa de suicídio. Não sabemos ao certo o que usou... — disse o médico.

— Ele nunca se aplicou... eu conheço meu filho! — Mari gritou.

— Dona Mari, ele estava desacordado, com sinais de abuso físico, agulhas em pontos ritualísticos. Isso é grave. Temos que mantê-lo sob observação.
— Mas… e a gata?

O médico suspirou.

— O protocolo não permite animais aqui. Mas...
Mas ela está há horas ali dentro, e não saiu nem com calmante.
Nenhum funcionário consegue afastá-la. Ela está...
— Ela está o quê? — perguntou Mari, quase sem voz.

— Ela está... protegendo ele.

Mari não respondeu.

Ela também não sabia como Pandora voltou.
Ninguém sabia.
Nem mesmo Cael.


(A Primeira noite)


O quarto 345 estava em silêncio.

Pandora deitava-se na cabeceira, os olhos fixos em Cael.
O som do monitor cardíaco era constante.
Um, dois, três… batimentos ritmados.
Mas ela ouvia outra coisa.

Dentro dele.

Cael dormia.

Ou… vagava.

Sonhava com corredores vazios.
Com espelhos quebrados que se refaziam ao seu olhar.
Com vozes distantes chamando por um nome que não era o dele, mas que ele reconhecia.

Então, na penumbra do sonho, ele viu.

Pandora.
E Adam.
Lado a lado.

Adam ajoelhado diante de algo.
Pandora em seu ombro.
Os dois olhando para frente.
Para ele.

A boca de Adam se mexia, mas nenhum som saía.
Os olhos de Pandora, naquele instante, eram humanos.
Luz e sombra dançavam ao redor deles como línguas vivas.

Cael quis gritar.
Mas tudo se dissolveu.

!!!!!!!

Acordou.
Não em voz.
Mas em corpo.

As pálpebras pesadas.
O mundo girando.

Pandora estava ali.
No quarto.
Os olhos nele.
Os olhos dentro dele.

Ele tentou falar, mas a boca não se mexia.

Pandora se aproximou.
Deitou no peito dele.
Ronronou baixo.

E ali, naquele momento, Cael não teve mais certeza de nada.
Nem se estava acordado.
Nem se aquele corpo era dele.
Nem se aquela gata era apenas gata.
Ou alguma coisa muito mais antiga, que finalmente havia voltado para buscar o que era seu.


(Acompanhe os Capítulos anteriores)

CAPÍTULO IX

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CAPÍTULO VIII

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CAPÍTULO VII

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CAPÍTULO VI

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CAPÍTULO V

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CAPÍTULO IV

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CAPÍTULO II

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CAPÍTULO I

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