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Drummond: poeta do enlace

Publicado por Felipe Mendonça em 18-Nov-2013 13:00 (3145 leituras)

Marlene de Castro Correia inicia o ensaio intitulado “Poética da Pedra”, alertando para o fato de “No meio do caminho” de Carlos Drummond de Andrade ter assumido diversas leituras no contexto da obra do referido poeta, tendo-se transformado no que a ensaísta denominou de um “enigma plurívoco, motivador de interpretações diversas” (2002, p.37). Aliás, segundo Marlene, o poema, do qual muitos se aproximaram apenas com o intuito de mofa e motejo, trouxe certa notoriedade ao poeta, mas também muitos problemas e mágoas. Tal fato foi um dos motores que levou o poeta a construir uma obra em que a pedra e, por conseqüência a poética da pedra, será a tônica de composição de muitos poemas célebres de Drummond como “Oficina irritada”, “José” e “Legado”. Acerca deste último, Marlene anota argutamente:
(...) o leitor por ofício conclui que a imagem da pedra se converte em signo configurador de uma poética da modernidade, que se define pela tensão dissonante, pela agressiva dramaticidade, pela força traumatizante e relacionamento de choque – poética essa que se explicará de forma radical e crua em "Oficina irritada” (p.39).

A pedra, segundo Marlene, é índice tão recorrente na obra de Drummond que sua imagem levará o poeta a empreender um profundo questionamento acerca do fazer poético. Para a autora, ela se tornara uma “interrogação-desafio-pedra básica que diz respeito ao próprio ser de sua atividade criadora” (p.40). Nesse sentido, analisa “Procura da poesia” e anota que este metapoema “se distingue como a formulação mais explícita de tensão entre dois modos de existência da poesia: entre o que ela representa – idéias, emoções, seres, coisas – e o que ela é – um objeto verbal” (p.40). Tal abordagem encontra ressonância nas idéias de Antônio Cândido a respeito da obra de Drummond e do “eu todo retorcido”, na medida em que, segundo Cândido, Drummond tenta conferir valor estético ao seu eu através da poesia e através da memória afetiva busca alguma unidade e satisfação para um eu desde o início insatisfatório, fragmentado e fragmentário. Essa busca que também tem como causa as inquietudes drummondianas desemboca numa poesia que funde perspectivas sociais e outras de ordem pessoal (Cândido, 2004, p.70). Tanto para Marlene quanto para Candido, a poesia de Drummond se constitui de paradoxos oriundos de contradições internas da obra do poeta itabirano que seriam fruto de uma tentativa de conciliar uma poesia marcada pelas solicitações de um egotismo tirânico e o desejo de universalidade, de comunhão com seus coevos.
Analisando “Procura da poesia”, Marlene anota que o paradoxo surge da contradição de uma poesia feita com um referente claro, o eu, a sociedade, a natureza, a memória, a infância, que, a princípio, o poeta nega e outra em que o poeta é responsável por uma manipulação específica no “reino das palavras”, tornando-se um ordenador de estruturas verbais e tocando a poeticidade propriamente dita (2002, p.41). Marlene anota, entretanto, ao enfatizar os paradoxos e contradições que marcam a poesia drummondiana, que “Procura da poesia” é antecedido por “Consideração do poema” o qual estabelece uma relação de oposição ao primeiro poema, tendo em vista sua opção final expressa nos últimos versos: “Tal uma lâmina, /o povo, meu poema, te atravessa” (p.42). Ainda para Marlene:
A situação dos dois textos no espaço-tempo de A rosa do povo – compõem a abertura do livro, em relação de vizinhança imediata – causa um impacto no leitor, visto que um parece negar incontinenti algumas proposições do outro, e o obriga a deter-se, retroceder e empreender a releitura dialógica de ambos que atente para a concordância/discordância entre eles (p.42).

Na verdade, apesar de notar os paradoxos e contradições na poesia de Drummond, Marlene tenta resolvê-los sugerindo que “Procura da poesia” e “Consideração do poema” estabelecem entre si uma relação dialógica e afirmando que “a articulação entre os dois textos é de natureza irônica: corrige dogmatismos, relativiza verdades absolutas e insinua que apenas uma atitude ambivalente pode apreender a contraditória totalidade da poesia em geral e de A rosa do povo (p.43). Na verdade, Marlene e Cândido anotam os paradoxos e contradições na obra de Drummond, mas procuram, ao longo de suas idéias e argumentos, desfazê-los em prol de uma leitura mais abrangente na tentativa de solucionar um dado que talvez vejam como um problema que enfraqueceria a leitura da obra do poeta. Marlene desfaz a contradição ou, ao menos, a atenua, através do recurso da ironia, ao passo que Cândido, de modo mais refinado ainda, anota que existe uma relação de condicionamento entre a poesia do eu e a poesia social drummondiana, através de uma deformação maior (essencial ou circunstancial) que seria responsável pela deformação do indivíduo, condicionando-a e sendo condicionada por ela (2004, p.75).
Entretanto, quando o paradoxo poético diz respeito às origens rurais e familiares de Drummond, as contradições parecem não se resolver através da ironia no que tange à leitura efetuada por Marlene. Pelo contrário, Marlene sugere que a contradição não se desfaz gerando um impasse na poesia de Drummond. Em princípio esse impasse se restringe à questão da marginalização da poesia frente a um mundo pobre que transforma tudo em mercadoria. Tal impasse se resolve através da clara aproximação de Drummond do “tempo pobre” e do homem comum através de sua poesia social que possui, outrossim, uma alta densidade filosófica e existencial. Segundo Marlene, “o impasse é superado quando Drummond se apossa afetivamente desse ‘tempo pobre’, convertendo-o em assunto de uma poesia assumidamente sem aura, identificada com o homem anônimo das ruas” (2002, p.45). No entanto, quando o impasse se dá entre a poesia de cunho social e urbano e outro de extrato rural e familiar, ele não se resolve nem através da ironia muito menos por meio de qualquer tipo de aproximação. Ainda segundo Marlene, “essa tensão espácio-temporal origina o paradoxo: o maior cantor urbano da poesia brasileira é igualmente o seu maior memorialista rural, o que o torna duplamente despaisado: ‘No elevador penso na roça,/na roça penso no elevador.’”(p.45 e 46). Desse modo, se na poesia de cunho social há um convívio com contato, ainda que tenso e repleto de rupturas, a outra vertente da poesia drummondiana nos revela um contato sem convívio que, segundo Marlene, revela-nos profundas indagações “sobre o homem e sua incomunicabilidade, o tempo e seu fluxo destruidor, a morte e seu mistério, Deus e o nada (p.46)”.
Candido também aponta para este paradoxo ao constatar: “é sem dúvida curioso que o maior poeta social da nossa literatura contemporânea seja, ao mesmo tempo, o grande cantor da família como grupo e tradição” (2004, p.83). Dessa afirmação depreende-se a seguinte questão: Se Drummond foi o maior poeta social da nossa literatura contemporânea, como pode ele também, ao mesmo tempo, ser o grande cantor da família como grupo e tradição? Também, desse mesmo trecho, podemos extrair outra questão: Como pode um poeta ser ao mesmo tempo o maior poeta social de uma literatura e também grande cantor de sua família como grupo e tradição? Como esta aparente contradição ou paradoxo se instaura e se resolve na poesia de Drummond?
Vimos como ela se instala e resolve no que tange a poesia do eu todo retorcido em contato com o vasto mundo e seus pobres homens e instituições caducas e de duas visões opostas de poesia que “Procura da poesia” e “Consideração do poema representam”. Na primeira contradição, o impasse se resolve através de um condicionamento de um tipo de poesia pela outra, já na segunda, a questão se soluciona através do recurso formal da ironia, muito prezado pela maioria dos modernistas. Mas e esta última contradição, como se resolveria?
Marlene não vai muito além dela. Limita-se a constatar:
No processo da poesia brasileira, raro é o poeta que tenha desnudado na cena do texto suas contradições com tanta insistência e veemência e que tenha sido o protagonista de tão “implacável guerra” dentro de si mesmo quanto Drummond – o que testemunha a veracidade de sua fala quando diz: “Me esponho cruamente nas livrarias” (2002, p.47).

Cândido, no entanto, vai mais além. Ele procura resolver a contradição afirmando que “sem o conhecimento do passado ele (o poeta) não se situa no presente; a família define e explica o modo de ser, como a casa demarca e completa o indivíduo no meio dos outros” (2004, p.85). Ou seja, a família ou o passado auxiliam o poeta a se situar no presente, explicando seu ser. Indo mais além, a família ou o passado ajudariam o poeta a compreender não só o seu ser, mas também o modo como se relaciona com seus coevos. Ora, nesse sentido, família e mundo seriam um o reflexo do outro, com seus indivíduos tortos, com suas instituições caducas e repressoras. Não haveria, portanto, paradoxo, pois a família se constituiria na poesia de Drummond como um microcosmo do “mundo mundo vasto mundo”.
A idéia supra encontra base no seguinte pensamento: a grande maioria dos indivíduos constitui famílias ou são oriundos delas. As famílias costumam ser o núcleo mínimo das sociedades humanas desde as eras mais remotas. Com o desenvolvimento das sociedades, estas se tornaram cada vez mais complexas sendo constituídas de diversas instituições que se tornaram, por diversas razões históricas e materiais, caducas e repressoras. Ora, estas instituições, de certa forma, refletiam, reproduziam ou mesmo davam causa a um mundo igualmente caduco e repressor. Desta forma, os indivíduos acabaram por se tornar um reflexo ou um produto deste mundo. Pode-se concluir também, de acordo com este pensamento, o que já foi dito anteriormente: que as famílias, ou no caso específico do poeta, a família de Carlos Drummond de Andrade, a qual ele integrava com outros indivíduos, era um microcosmo de um mundo caduco e repressor. Como se vê, não há paradoxo, mas apenas uma relação de causa e efeito entre indivíduo, família e o mundo.
Em seguida, a ensaísta analisa o conflito na poesia de Drummond entre uma individualidade hipertrofiada, dona de um egotismo profundo e uma consciência crítica que o impulsiona em direção ao outro. Escreve Marlene:
Em Drummond, no entanto, ele (o intenso egotismo) adquire feição problemática e alcança invulgar dramaticidade. O debruçar-se sobre si mesmo, o voluntário isolamento e a desejada solidão que esse movimento pressupõe, são dolorosamente questionados pela consciência crítica do poeta, que se incrimina por superdimensionar a própria subjetividade em prejuízo da aproximação e conhecimento do outro (2002, p.48).

Para Marlene, Drummond procura resolver mais esse impasse em sua obra através do desenvolvimento de uma identidade transpessoal que seja capaz tanto de integrar o poeta ao núcleo familiar quanto de preservar a individualidade do eu, de modo que tal identidade que tanto supera quanto escava o próprio eu seria, segundo Marlene, uma espécie de unidade no múltiplo. Mas, se tomarmos a idéia de que, na verdade, não existem tanto o conflito ou o impasse, entre o eu e o outro, ou entre o eu, o outro e o mundo, mas sim uma relação de causa e efeito entre esses elementos, perceberemos que o desenvolvimento dessa identidade transpessoal não teria como fonte o conflito, mas as profundas relações de determinação e condicionamento que existem, de forma pungente e dramática, naquelas três instâncias anteriormente mencionadas: o indivíduo, a família e o mundo. Nesse sentido, a cisão entre o eu todo retorcido e o sentimento do mundo não representaria uma ruptura que leva o poeta a oscilar entre o eu e o outro, entre o mundo e a família, mas uma procura de autoconhecimento na relação entre essas instâncias empreendida pela intuição de que elas não estabelecem uma relação de conflito ou paradoxo, mas de inextricabilidade por constituírem a totalidade do ser.
Para Marlene, a poesia de Drummond é movida por impasses, contradições e paradoxos os quais, segundo a autora, geram na obra do poeta mineiro movimentos duplos, o que denomina “a dinâmica ocultação-desnudamento”. Para a autora. “esse duplo movimento resulta da tensão entre dois pólos: o pudor da confissão e a dificuldade de comunicação – ‘E esse alheamento do que na vida é porosidade de comunicação’ – e a compulsão de revelar-se e a necessidade de ecoar em outrem (2002, p.50). Por certo, quando a ensaísta fala na dificuldade de comunicação de Drummond, ela deve estar levando em conta um dado biográfico que é o fato de o poeta mineiro ter sido uma pessoa bastante tímida e reservada. No entanto, para quem escreveu mais de uma dezena de livros de poesias e outras tantas crônicas e até alguns contos fica difícil acreditar no argumento de que Drummond tinha alguma dificuldade de se comunicar. É claro que se misturarmos vida pessoal com a obra poética do autor, poder-se-ia falar em dificuldade de comunicação, mas, quando se toma apenas a obra, fica evidente que os poemas de Drummond comunicam ao leitor refinado as mais altas e sublimes mensagens acerca do que é o indivíduo tentando sobreviver e amar num mundo repleto de guerras, solidões e incomunicabilidades.
Drummond comunica sim. Na sua obra, ele não tem dificuldade alguma de fazer isso. O que ocorre é que o que ele comunica é a incomunicabilidade do mundo e do ser. O “a poesia é incomunicável./Fique torto no seu canto./Não ame” e o “Gastei uma hora pensando num verso/que a pena não quer escrever.” são a maior expressão de comunicação dessa incomunicabilidade do ser e do mundo em que os indivíduos se vêem metidos.
O local, entretanto, em que Drummond procura superar esta incomunicabilidade do ser e do mundo é na poesia de cunho social. De fato, toda a sua obra poética é marcada pela fratura e pela incomunicabilidade, especialmente aquela centrada na temática familiar e no eu todo retorcido. Mas, ao contrário disso, na poesia de cunho social deparamo-nos com a séria tentativa do poeta de superar essa incomunicabilidade. Aliás, a poesia de cunho social drummondiana é o espaço principal para o desenvolvimento de utopias e ideais que animam esta seção de sua obra poética. O poema exemplar quanto a isso é “Mãos dadas” e deste poema os versos que mais veiculam uma utopia ou ideal drummondianos são os dois últimos versos da primeira estrofe do referido poema: “O presente é tão grande, não nos afastemos./ Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.”
Portanto, se na poesia centrada no eu e na família, o que se comunica é a fratura, a dissonância e a incomunicabilidade do ser num mundo igualmente fraturado, dissonante e incomunicável, na poesia de cunho social, por outro lado, o que o poeta intenta comunicar é o grande ideal de que os homens podem formar uma grande fratria veiculada pelas duas solicitações do poeta (o “Não, não nos afastemos muito” e o “Vamos de mãos dadas”) e superar a grande incomunicabilidade, ou seja, o mundo caduco que determina o ser e o mundo, bem como as relações sociais estabelecidas entre os indivíduos. Em suma, o que o poeta busca na poesia de cunho social é afirmar que é possível aos homens comunicarem-se e superarem a relação de causa e efeito, pautada pela incomunicabilidade, entre as três esferas que marcam a poesia de Drummond e determinam sua formação como poeta e pessoa: o indivíduo (o eu), a família e o mundo.
Em “Coração Partido”, livro de ensaios de Davi Arrigucci Junior a respeito da obra de Carlos Drummond de Andrade, o referido ensaísta reflete sobre a luta constante do poeta na tentativa de conferir expressão a seu “sentimento do mundo” num mundo repleto de tendências anti-expressivas e incomunicabilidade quase que insuperáveis. Ou seja, para Drummond torna-se fundamental saber ou compreender como sua carga lírica e sentimental ganhará forma ou tornar-se-á poesia num mundo terrível e anti-lírico. Para Drummond tal entendimento é mais do que um objetivo expressivo, pois toca o existencial. É também um modo de conhecer-se, um pacto consigo mesmo em busca da poesia do seu tempo, de seus coevos e, sobretudo, de si mesmo, num mundo que parece querer anular a arte e as individualidades em prol de uma instrumentalização desses elementos.
O “sentimento do mundo” drummondiano congrega o eu, a família e o mundo e evidencia a inter-relação entre estas instâncias na obra do poeta mineiro, pois sentir o mundo é também sentir-se a si mesmo, é escavar-se nas lembranças da terra natal (Itabira) e de seus familiares. A princípio, portanto, cremos não haver uma incongruência ou paradoxo no fato de Drummond ter sido ao mesmo tempo o maior poeta social da nossa literatura e um grande cultor da família enquanto clã. A nossa ver, o que há é uma relação de interdependência entre essas instâncias na poesia de Drummond, de modo que elas assumem um caráter especular. Ou seja, de várias maneiras, a poesia do eu é um espelho dos poemas cujo tema é a terra natal e a família os quais, por sua vez, são um reflexo ou conseqüência do mundo e suas instituições.
Nesse sentido, Drummond empreende uma escavação poética em busca do eu e do mundo que se conjugam no íntimo de cada ser. Sua poesia, marcada pelo humor, pela auto-ironia, mas, sobretudo, pelo tom meditabundo e reflexivo de extrato romântico, torna-se uma busca prolífica pelo sentimento do mundo que o lavra e enforma sua obra. Afirma Arrigucci: “muito dessa força, força de escavação do Eu sobre o Eu até sua raiz no mundo, deriva do movimento rotativo do eixo do pensamento sobre si mesmo, da infinitude da reflexão de origem romântica” (2002, p.65).
O poema “Áporo” ajuda a evidenciar tal escavação e como as três instâncias da poesia de Drummond se comunicam e se relacionam. O poema é exemplar ao mostrar as dificuldades enfrentadas pelo poeta em seu percurso poético. Para Arrigucci, ler “Áporo” significa “penetrar num labirinto verbal, cuja dificuldade interna se espelha, para nosso espanto, na forma circular da construção” (p.78). Ou seja, como em “No meio do caminho” também em “Áporo” encontramos a dificuldade expressa numa forma ora labiríntica, ora anafórica, ora circular ou repetitiva. Eis o poema:

Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.

Que fazer, exausto,
Em país bloqueado,
enlace de noite,
raiz e minério?

Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto se desata:

em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se.

Como se vê, o poema narra a história de um inseto que cava persistentemente a terra até se transformar em flor. A princípio, parece não haver saída para o inseto. Ele cava cava “sem achar escape”. As duas primeiras estrofes revelam uma situação limite em que o homem ou poeta, transmutado em inseto, trabalha, escava sem encontrar sentido ou objetivo para tal ato. Há uma sensação de que tal trabalho não dará em nada, que ele resultará em coisa nenhuma, tornando-se, portanto, em vão, como se o poeta, no caso o inseto, estivesse destinado a um suplício como o de Sísifo ou o de Tântalo. Escavar, aqui, portanto, seria o mesmo que rolar pedras ou tentar colher frutos ou beber de uma fonte que se lhe furta. Ou seja, o poeta, como nos mitos, estaria fadado a uma ação circular, repetitiva que não encontra fim ou objetivo. Como escapar disso? Como continuar a escavar e a escavar-se num mundo que não nos oferece qualquer abertura e que se mostra terrivelmente anti-lírico?
Segue-se à primeira estrofe uma de base interrogativa com uma referência ao contexto social em que o inseto-poeta se encontra, isto é, num país bloqueado. A pergunta, claro, é retórica: “que fazer, exausto,/ em país bloqueado,/ enlace de noite/ raiz e minério? (p.75)” Enfim, não há muito a fazer senão continuar a cavar, a perfurar a terra sem saber ao certo onde isso vai dar. O locus onde a ação de escavar se desenvolve já em grande medida indica que ela, por si só, por mais persistente que seja, não resultará numa libertação. Em suma, tomando apenas as duas estrofes, que configuram o primeiro movimento do poema, não há nenhum sinal de que o inseto encontrará escape. Não se sabe também se o ato de cavar é uma fuga ou uma busca persistente por mudança. O certo é que as duas primeiras estrofes conotam fechamento, bloqueio, prisão, limites e obstáculos a ação seja de fuga, de busca ou de escavação do próprio eu.
O certo também é que o poema não só traduz uma verdade poética ou formal, muito menos uma experiência interior sem relação com fatos externos, da ordem do real. Pelo contrário, além disso, o poema é uma mimese que se torna fruto de uma experiência reflexiva altamente marcada por fatos que compunham o presente histórico do poeta e de seus coevos, o que leva Arrigucci a afirmar:
O conteúdo de verdade histórica, profundamente integrada à tessitura mesma do texto, se mostra como a história imanente à obra, lavrada em forma poética, como marca do mundo no sentimento de que o poema é a expressão. A experiência histórica, sentida e refletida, vem, portanto, sedimentada no mais íntimo da forma poética drummondiana, e sua alta qualidade depende dessa absorção profunda, que lhe confere complexidade e extraordinária verdade humana (p.99).

Há em “Áporo”, portanto, aquela interpenetração, através do jogo especular, entre as três instâncias da poesia drummondiana: o eu, a família e o mundo. O eu e o mundo fazem-se presente no poema através, respectivamente, do inseto e do locus onde se desenvolve a ação da historieta: a terra ou a nação que é o país bloqueado. Mas esta terra bem poderia ser a terra natal do poeta, sua família que estariam presentes nos versos: “enlace de noite/ raiz e minério”. Essa terra poderia ser o próprio eu do indivíduo que, portanto, escava-se a si mesmo. Desse modo, escavar esta terra é, simultaneamente, escavar um eu fraturado e sem escape, um mundo ou país bloqueado e a própria família que enlaça, como a noite, o indivíduo. Isso se dá, pois Drummond é ao mesmo tempo o maior poeta social da nossa literatura e também um grande cantor da família enquanto grupo, tradição e clã. A terra, aqui, torna-se um índice plurívoco, assume diversas conotações, exatamente pelo fato, do eu, da família e do mundo serem elementos inextrincáveis na obra de Drummond. É nesse sentido, portanto, que devemos entender os versos “No elevador penso na roça,/ na roça penso no elevador” do poema “Explicação”(2002, p.45 e 46).
Ocorre, porém, que nas duas últimas estrofes do poema, que constituem o segundo movimento da obra, há uma mudança radical. Passa-se do fechamento, do bloqueio, do enlace e do sem escape à abertura, ao desatamento e, por fim, à metamorfose do inseto em flor. É certo, como já dito, que nada nas duas primeiras estrofes indicavam tamanha ruptura e mudança. Tanto que o poeta encerra o primeiro movimento do poema com uma pergunta sem resposta. É claro que ele poderia dá-la nos versos seguintes, mas o que acontece é uma súbita mudança, uma inesperada ruptura que ocorre como que num passe de mágica. Súbito, Sísifo não precisa empurrar mais pedras e Tântalo enfim vê-se saciado. Mas como?
Simplesmente, de modo repentino e sem qualquer indício anterior, o inseto, o país bloqueado, a noite, a raiz, o minério, em suma, a terra, imagem a congregar todos esses elementos, agora referida através da imagem do labirinto, desata-se e transforma-se em outra coisa. Não há continuidade lógica entre o primeiro e o segundo movimento do poema, ou seja, um não anuncia logicamente o outro. Pelo contrário, há uma fratura, um súbito desatamento, uma metamorfose, em suma, um milagre. É claro que as coisas se dão desta maneira porque a transformação encerrada no segundo movimento do poema é, completamente, anti-lógica, ou, segundo o próprio poema, obedece a uma lógica antieuclidiana. Isso porque a razão do poema, para a transformação do inseto em flor, não advém da lógica matemática ou aristotélica ou de fenômenos biológicos, já que em nenhum lugar do mundo um inseto transformar-se-á em flor senão no poema de Drummond. Pelo contrário, ela tem por base uma razão misteriosa e um encadeamento ilógico. Seria tolice tentar explicá-la. Essa transformação simplesmente ocorre a despeito do primeiro movimento do poema numa espécie de fantástica alquimia biológica.
Cabe dizer, tendo em vista o ensaio de Arrigucci, que, comparando a metamorfose drummondiana com a de Kafka, nota-se que “Áporo” abre uma brecha para a esperança e que o poeta acaba por achar um escape, reencontrando a força geratriz da própria poesia (2002, p.101). Aqui o lírico, apesar da figura diminuta do inseto, encontra sua expressão mais alta fazendo confluir verdade histórica e a verdade da poesia, de modo que
o movimento da consciência artística é o mesmo movimento reflexivo do poeta perante a realidade histórica tornada imanente à própria obra justamente como problema humano e artístico de alguém que sente o mundo e no recesso da subjetividade individual pensa sobre ele (p.102).

Ou seja, mesmo que a lírica se torne uma linguagem que se exime do mundo e da realidade externa a uma dada interioridade, ela fará ressoar no mais íntimo de sua linguagem os ecos desse mundo que ela procura ligar. Para Arrigucci, o labirinto de “Áporo” demonstra isso cabalmente (p.104).
No entanto, a despeito disso, cabe ainda ressaltar certa ingenuidade drummondiana presente neste poema, pois, malgrado haja esta metamorfose final em “Áporo” e um labirinto que “presto se desata”, temas como o eu e o mundo, o eu e a família e o eu e a terra natal são nós na poesia de Drummond que jamais se desatam de todo, sendo desses nós que não se desfazem que a poesia drummondiana se alimenta e ganha verdade histórica e existencial. Mas, aqui, este desatamento acontece porque “Aporo” compõe o conjunto de poemas de A rosa do povo, livro em que Drummond busca, sobretudo, a comunicação, a vontade e o projeto de criar uma fratria que promova o encontro dos indivíduos que vivem, na grande cidade, no país bloqueado ou no labirinto de si mesmos, isolados e incomunicáveis.

































BIBLIOGRAFIA:

ARRIGUCCI JUNIOR, Davi. Coração partido. São Paulo, Cosac & Naify, 2002.
CANDIDO, Antonio. “Inquietudes na poesia de Drummond”, in Vários escritos. São Paulo/Rio de Janeiro, Livraria Duas Cidades, 2004.
CORREIA, Marlene de Castro. A conquista da palavra poética; A poética da pedra. In.: Drummond, a magia lúcida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.


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