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talvez um monólogo com deus [4/4]

 


não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu


4.
o tempo passa. de ti nem uma palavra – mesmo no acaso de um som te julgava a presença. mas não. era apenas mais um som – agora que morri. não aceito mais esse silêncio de não me falares. tu sabes. quando morro como hoje morri é para tudo o que existe. até para ti – não sou capaz de te compreender. não mo peças. não te ponhas com essas histórias de que escreves direito por linhas tortas. que estás sempre em todo o lado. que ouves tudo. que vês tudo – és apenas mais um mentiroso. mais um judas. vendeste-me à inutilidade por trinta moedas – e não acredito que enviaste o teu filho ao mundo para morrer por mim. por mim não. pelos outros. não se pode morrer por quem sempre esteve morto. e para ti estou sempre morto – pela manhã. com o nascer o sol. nasço outra vez. e desta vez sem nenhuma cruz na parede. nem água benta na cabeça. nem anjos ao pescoço. nem velas a queimar o pouco ar que ainda respiro – quero acordar nu e vestir-me da pouca esperança que tenho – arranco o coração. com o coração nas mãos dou-lhe carinho. peço-lhe que bata apenas mais um dia. só mais um dia – todos os dias quero apenas mais um dia. já não tenho os mesmos sonhos. aqueles que tantas vezes te pedi para realizares – tu bem sabias que não era a cobiça que me fazia sonhar. tu sabias – queria apenas que o meu pai mandasse matar a maior ovelha do rebanho – o orgulho meu deus. o orgulho – será que tu não entendes. eu só queria ter o orgulho dos meus. do meu sangue. queria construir um novo caminho – permitiste que me roubassem o orgulho. e tu sabias tudo o que havia dentro de mim. tudo. sabias que não havia pecado. nunca houve – às vezes não há nada que possa inventar com as palavras. ainda quero ser um dos teus. levo o coração à boca. gretada. dos pais nossos que rezei. afogo-o na água que guardei do meu baptismo. quero ter a certeza que a culpa não é dele. purificá-lo do pecado que não cometi – seguro as palavras que guardo do passado. aprendi-as na catequese – ainda quero acreditar naquela história de que fizeste o mundo em seis dias e descansaste ao sétimo – hoje. é para mim o sétimo dia. estou cansado. os braços estão-me no chão. separam-se do corpo. não sei se é a decomposição da carne. mas ainda tenho o teu olhar pregado aos olhos. ainda tenho aquele santinho que um dia me deram numa missa do galo – deitado no altar o teu filho – era natal. e no natal ainda há esperança – neste dia. eu não era diferente – imaginava-te sentado a meu lado. de mãos dadas ouvias-me. ouvias-me e ouvias-me. não queria mais nada de ti. queria apenas saber que me ouvias – depois chorava. chorava para te mostrar como ainda era da tua carne – só chora quem ama – mesmo nos pecados sempre te amei. arrependia-me por ti. e as lágrimas eram por te amar - mesmo na dor. quando ela era insuportável e a tentação das mãos era mais forte do que a fé. era pelo teu nome que gritava. e quando deixava cair o pão ao chão era com um beijo que o limpava dos males do mundo – ter-te a meu lado era ter os olhos secos – não. não. não. eu sei que estou morto – mentiroso. mentiroso. mentiroso. eu sei que estou morto. estou morto – quem fala sou eu. estou perdido entre palavras que nada valem e algumas metáforas. só para disfarçar a dor – nunca imaginei que iria ter dores depois de morto – maldito sejas. maldito seja esse teu silêncio – é esse silêncio que ouço desde o dia que levei as mãos aos ouvidos. não te consigo perdoar. não consigo – obrigas-me a chorar. eu que tinha prometido nunca mais chorar por mim – preferia chorar por ti. ainda quero acreditar que estás a sofrer mais do que eu – ninguém faz um homem como eu. tenho que te perdoar. não totalmente. isso não posso. não sou capaz de tanto. já não me sinto na obrigação de perdoar todo o mal que me fazem – já não te pertenço. não porque não quisesse. mas porque fui renegado. abandonado no meio do nada. sem honra – não vou guardar ressentimento. vou apenas deixar-te algumas palavras pregadas à tua cruz. parece-me que é também minha. afinal dizes que eu sou carne da tua carne – magoo-me só para que sintas que existo – se um dia o teu filho voltar a ser crucificado terás sempre estas palavras. que te digam que alguém sofreu a acreditar em ti – sempre soube que seria eu a escolher o dia da minha partida – por agora morro apenas mais um dia. qualquer dia. terás de me ouvir. e serás tu a limpar-me o rosto com a toalha com que verónica limpou o rosto do teu filho –
 
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sampaiorego
 
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Enviado por Tópico
arfemo
Publicado: 17/11/2010 23:47  Atualizado: 17/11/2010 23:47
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 Re: talvez um monólogo com deus [4/4]
estou a começar a ler esses monólogos talvez com deus, talvez consigo próprio, vou fazendo opinião mas ele ainda não mo revelou...

abraço


Enviado por Tópico
luciusantonius
Publicado: 18/11/2010 01:03  Atualizado: 18/11/2010 01:03
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 Re: talvez um monólogo com deus [4/4]
É impossível passar-se de ânimo leve sobre a leitura de um texto com esta densidade humana. Mas não é mais fácil entrar-lhe no âmago, na nascente. Diversos estados da alma podem estar subjacentes: angústia existencial, obstáculo a estorvar a nossa caminhada causando dor, ou simples voo de águia que usou as alturas de onde domina cada um dos humanos, no seu sentir mais profundo.
Não tenho condições para avaliar o rumo do voo empreendido neste audacioso monólogo, mas se é desilusão o que deixa transparecer, - e desilusão é sofrimento – tudo que direi neste momento condensa-se num espírito de absoluta solidariedade, apesar da força das palavras que quase mexem com a minha própria estrutura física/moral. Fica comigo uma levada de esperança que sempre vem ao meu encontro nas horas de amargura e que entranhadamente transfiro para aquele que é Amigo.
Amanhã volta a ser dia e ainda que toldado por nuvens, o sol voltará.
Fraterno abraço
Antonius


Enviado por Tópico
RoqueSilveira
Publicado: 30/11/2010 15:49  Atualizado: 30/11/2010 15:49
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 Re: talvez um monólogo com deus [4/4]
Tocou-me profundamente este texto. Quem assim escreve é uma pessoa do bem, só do bem. Bem hajas.
Beijo
RS