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A ONÇA

 
 
A ONÇA

Open in new windowExatamente às quatro horas e três minutos da tarde ela apareceu na minha rua. Ninguém sabe de onde nem como, mas estava lá, com sua pele amarelada, coberta de manchas negras, agachada, preparada para saltar sobre o primeiro que ousasse violar seu espaço. Foi um corre-corre tremendo. As mulheres trancaram as portas, os homens se trancaram nos carros, os meninos subiram nas árvores sem saber que os felinos são excelentes trepadores.
― Chamem os bombeiros! Alguém gritou.
― Não adianta! Vão pensar que é um trote! Gritaram do outro lado.
Ouvindo a lufa-lufa, a zuadeira, a gritaria, eu abandonei o computador e corri para o portão. Estava perto da minha casa a bicha. Em princípio eu quis correr de volta, mas o olhar da onça parecia uma extensão de suas garras e fiquei preso ao chão, tremendo como o chocalho de uma cascavel. Notei que a cauda dela começou a pendular lentamente como um sinal de reconhecimento. Uma verdade espantosa se revelou abruptamente: A onça me conhecia.
Sem tirar o olhar do meu ela se firmou nas quatro patas e avançou na minha direção. O muro baixo não seria obstáculo para ela. Nessa altura a rua estava silenciosa, as pessoas se convenceram que os bombeiros não viriam e se deram aos seus afazeres. Os meninos desceram das árvores e voltaram a jogar bola, os homens voltaram a jogar dominó e as mulheres tornaram a falar da vida alheia. A fera emitiu um rugido rouco. Aos meus ouvidos pareciam palavras. Mais concentrado entendi o que a onça dizia:
―Vem comigo! Vem comigo!
―Aturdido, me lembrei do delírio de Brás Cubas, que no montado em um hipopótamo faz uma longa viagem. Bem mais calmo, percebi que o grande felino não oferecia perigo e perguntei-lhe:
―Queres me levar também à origem dos séculos?
―Não, respondeu a onça lambendo o focinho, vou levá-lo há um tempo mais curto, à origem da sua vida.
―E se eu não quiser ir? Minha origem não tem nada de interessante, a não ser o fato de haver nascido no ano em que o Brasil perdeu a copa do mundo de futebol.
―Nesse caso inverteremos a rumo, levá-lo-ei ao fim dos seus dias, à sua morte. Você escolhe.
Como Brás Cubas, fechei os olhos e deixei-me ir à aventura. Sentindo o vento bater-me o rosto abri os olhos e vi que o animal galopava sobre as nuvens e cada vez mais rápido. Lá embaixo os anos desfilavam comprimidos, de trás pra frente, as casas, as edifícios, as construções se transformando em vastas planícies, muitos rios surgindo como fios de prata espalhados em um imenso tapete verde. Instintivamente, levei as mãos ao bolso à procura do meu celular para verificar se meus cabelos estavam voltando à cor antiga. Estavam do mesmo jeito. A onça percebendo minha preocupação explicou:
― O passado só tem sentido com a visão do presente.
Por um momento pensei que cavalgávamos em círculos, mas percebi que entramos em um túnel que se tornava cada vez mais luminoso à medida que nos aproximávamos do fim. Em milionésimas frações de segundo minha vida foi se derramando pelas paredes do túnel em quadros com imagens pretas e brancas como fotos de um álbum antigo. Meu professor de matemática do ginasial passou correndo desesperado atrás de um ponto abstrato e o homem que me ensinou a cantar girava uma manivela cuja haste provinha de um cérebro enferrujado. Todos os meus amigos formaram uma longa fila para facilitar a minha memória. Todas as mulheres que dormiram comigo exibiam seus nomes na testa para que eu não me esquecesse de nenhuma delas. Os anos adultos se foram e a minha primeira namorada surgiu por trás de um galho coberto de flores. Senti um forte desejo de saltar da onça e ir ao encontro dela que contemplava as estrelas sem, no entanto me perceber, mas o animal me alertou:
―Não seja bobo! Ela não o reconhecerá.
―Mas então eu vou me encontrar nesta viagem? Perguntei cada vez mais alucinado e confuso, apesar da excitação.
―Já recuamos bastante, portanto é hora de explicar o motivo da nossa aventura. Todos um dia fazem a mesma coisa. Todos voltam no tempo em busca de algo que imaginam ter perdido ou na tentativa de refazer o destino para dar sentido à sua existência. Todos sem exceção.
―Já ouvi falar nisso, e é quando estamos perto de morrer. Isto quer dizer que chegou a minha hora? Perguntei atormentado.
―Não fui encarregada de falar mais do que devia meu amigo. Sei apenas que minha missão é levá-lo de volta no tempo para que se cumpra o que está determinado: a terra não consome um coração perturbado. Os que não fazem esta viagem depois de mortos não são devorados pelos germes da terra e se tornam zumbis que se alimentam das lembranças alheias.
Estremeci com a idéia de permanecer vagando no mundo devorando as lembranças dos outros. Os anos da adolescência chegaram coloridos, porém, a figura de minha mãe cantando debaixo do ingazeiro enquanto lavava roupa me fez chegar às lágrimas. Quando minha companheira de viagem assentou as patas no quintal da casa de minha avó, descobri a peça do quebra-cabeça que faltava para esclarecer a minha incrível aventura. Vi meu pai chorando, desesperado, contido por vários homens, pois queria segurar o contador de energia elétrica a fim de cometer suicídio. Desci da onça e permaneci olhando a cena que se repetia indefinidamente. Olhei para o animal e sua pata apontou para o terraço da casa de minha avó. Segui em frente até a porta do quarto onde minha mãe dormia. Encontrei-a chorando. Tinha o corpo de uma menininha nos braços. Ela me olhou e falou comovida:
― Ela está morta. Seu pai deixou o bocal da luz em cima da mesa. Ela enfiou o dedinho e caiu eletrocutada. Ele ainda puxou a língua dela, mas não teve jeito. Achando-se culpado quer dar fim à vida, por isso os homens o seguram.
― Então foi por isso que ele começou a beber?
Fiz a pergunta, mas logo me lembrei que me referia ao futuro. Mesmo assim minha mãe respondeu:
― Seu pai sempre bebeu. Quando casei eu já sabia, afinal ele foi criado por uma irmã que o tirou da mãe alcoólatra. Não o culpe pela bebida.
Olhei então para o lugar onde os homens seguravam meu pai. Uma mulher baixinha com um lenço vermelho na cabeça esfregou um chumaço de algodão embebido em éter e meu pai desmaiou.
― Seu pai vai acordar bem, disse ela sem olhar para mim, agora volte para o seu tempo. Você já tem as lembranças que lhe foram roubadas. Já sabe o que fazer.
A onça deixou-me em frente ao portão de casa, lambeu os beiços e saltou na escuridão da noite.
















 
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ValdeciFerraz
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 28/09/2014 07:37  Atualizado: 28/09/2014 07:37
 Re: A ONÇA
um conto assombroso, uma onça com poderes mágicos, tenho a impressão q bem poderia ser uma figura psicológica de fundo inconsciente, mas achei legal mostrar seu pai (personagem) como um ser humano sujeito as fragilidades de qualquer mortal,com indícios de como foi dura sua infância.