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Reflexões sobre a morte

 
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Reflexões sobre a morte
 
Obviamente, quem sou eu para não morrer?, de costas para o enorme pedestal no centro da praça, uma multidão desloca-se debaixo do meu olhar, no meio de tantos futuros cadáveres sou apenas mais um, que diferença imaginei eu ter, que sonhos cri eu carregar no coração que me permitiriam uma excepção à regra da vida, que é a regra da morte de tudo o que respira – através de pulmão, guelra ou folha, é tudo o mesmo perante os olhos da morte, tudo o mesmo trigo, quando a foice desliza e decepa tudo sem excepção cai e se faz terra.

Mas não agora. É o travo da juventude, ainda nos meus lábios, que sempre me afasta o pensamento da extinção, quando a existência me corre nas veias com a força de rios e mares, quando os sonhos que trago no peito parecem mais férteis do que as primaveras deste mundo, como pode sequer o pensamento da não-existência ser ponderado?, a morte é sempre teoria, a prática da vida é a de olhar sempre em frente, sempre mais além, sempre construir mais, e mais alto e mais sólido, mais impressionante, caminhar sempre para adiante, e embora cada dia de caminhada seja um dia mais próximo do fim de tudo, apesar disso é a força da vida a correr debaixo destes pés que me empurra sempre para a frente, a vida do ser humano é como um dedo que aponta, uma flecha que voa constantemente, é o néctar da juventude que me faz esquecer que, mais além, sempre espera a mesma parede, uma muralha que se ergue para o alto, e uma vala que mergulha para o fundo, para trás não há viagem, passo dado é sempre passo perdido, gasto, somos sempre seres sem costas, sem regresso, e para a frente cessou o caminho, mas a paragem é impossível, eterno movimento eu sou, a inquietude do pensamento empurra estes sapatos, a jornada continua enquanto há vida nestas veias, o último passo é dado finalmente, é um pé que resvala na fenda aberta, um peito que esbarra na parede tosca, é aqui que o espírito se entorna na poeira da estrada, faz-se lama e quem vem atrás apenas pisa, é este o destino, o fim, o culminar inevitável de todo o caminhar.

Mas não agora. Trinta e quatro anos e neste momento, nesta cidade, não haverá ninguém que queira viver mais intensamente do que eu, sinto um grito a querer rebentar da garganta, mas fica amortecido na humidade que me invade os olhos, uma lágrima cai e toca-me os lábios, no seu sal vem a certeza de que este grito mudo será o meu companheiro nos dias que me restam. A praça está repleta de gente, mas a solidão que sinto do lado de cá da pele é interminável, dentro deste corpo sei que sou o único habitante de um mundo imenso, sem água nem luz, eterno deserto de escuridão absoluta, sem fim nem principio, sem pontas ou abismos de onde saltar, o peso que me esmaga a alma é o de saber que este deserto é mar que se estende interminavelmente, sem continentes ou costas de terra, nem em mil anos de naufrágio encontraria uma praia onde morrer em paz.

No topo do pedestal, atrás de mim, uma estátua de mármore, nem sei se aponta para algum lado, ou se carrega nas mãos um qualquer objecto, sei apenas que, sorrindo ou não, ela diverte-se inocentemente com a minha tormenta, dentro deste peito há mares varridos por ventos que são como braços grossos de gigantes, mas na pedra que é coração e cabeça deste homem estático, nessa pedra habita a solidez que queria como jangada no mar que trago dentro.

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Hoje sinto-me como que deitado numa cama de hospital, anestesiada a psique, o corpo caminha lentamente, parece animado por uma força exterior, a mente está parada como uma poça de água numa tarde límpida de Inverno, como um tronco grosso de uma árvore, nada se mexe dentro do crânio, não há vento, não há ondulação, não há nada, há apenas este caminhar, há apenas este olhar, a água bate na lona do chapéu-de-chuva, o som é constante, repetitivo, é um cântico amortecedor, soa a canção de embalar, mas nada dentro de mim adormece porque nada há que esteja ainda desperto, sou um corpo-mente entorpecido, desço no elevador entre nascimento e óbito, há vida e morte em mim, simultaneamente sou ambas, no mesmo espaço e tempo sou morte que nasce e vida que perece.

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Duas igrejas na rua que se espraia à minha frente, uma terceira mais adiante, levanto-me e caminho até lá, a da esquerda está aberta, encostado à direita da porta está um indigente com um copo de plástico vazio de moedas, sinto uma empatia estranha com este homem, estamos ambos do mesmo lado da vida, o lado que resvala para a morte, pés na vida, olhos na morte, este farrapo de homem já nada faz neste mundo, este mundo já nada faz a este farrapo de homem que eu sou hoje.

Entro e sento-me, apenas de longe miro a água que se diz benta, se esta morte que se aproxima é castigo de Deus, não será naquela pia sagrada que me lavarei dos pecados que em meu nome exaltaram a pessoa divina. Dentro do edifício o silêncio parece fazer eco e nas profundezas desta mudez sinto os meus pensamentos a bailar em ricochete, são balas em ziguezague, um enxame de abelhas de ferrão alçado a redopiar em forma de ciclone, no epicentro da tempestade está o meu coração, trespassado mil vezes por minuto, parece um saco-de-plástico cheio de água, mil furos cravados nele e o líquido esguicha como repuxo, agora é no meu peito que se ergue esta fonte, nela me debruço e nos dois palmos de água me afogo diariamente.

O silêncio que senti na praça é apenas memória agora, memórias são ruídos afiados na minha mente, as paredes do meu crânio sangram com os golpes do meus próprios pensamentos, os sons da rua são lembranças de uma vida que se vai embora, lentamente, de mão erguida em saudação de despedida, o silêncio que fica é o cobertor da morte, um falecimento de sentidos que me deixa esquecido debaixo de uma manta suja e rota, cosida com remendos de trapos.


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Andraz
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Enviado por Tópico
SantosAlmeida
Publicado: 12/08/2009 18:54  Atualizado: 12/08/2009 18:54
Colaborador
Usuário desde: 14/01/2009
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 Re: Reflexões sobre a morte
li este texto no teu blog, muito bom mesmo.
quando o livro estiver pronto diz-me..
bj

de que som cobrir o último suspiro deste corpo?

Enviado por Tópico
HelenDeRose
Publicado: 13/08/2009 13:55  Atualizado: 13/08/2009 13:55
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 Re: Reflexões sobre a morte
Gostei do seu texto, relembrei momentos da minha vida e refleti sobre algumas coisas que vc escreveu. Aprendo todos os dias que a vida é a manifestação que precede a morte, e todos os momentos que levantamos uma bandeira, estamos cada vez mais próximos dela. Estar em silêncio na vida, já é um exercício de estar morto. Parabéns pelo texto.