Nocturno |
em 10/09/2007 20:30:00 (4474 leituras) |
"Espírito que passas, quando o vento Adormece no mar e surge a Lua, Filho esquivo da noite que flutua, Tu só entendes bem o meu tormento...
Como um canto longínquo – triste e lento – Que voga e subtilmente se insinua, Sobre o meu coração, que tumultua, Tu vertes pouco a pouco o esquecimento...
A ti confio o sonho em que me leva Um instinto de luz, rompendo a treva, Buscando, entre visões, o eterno Bem.
E tu entendes o meu mal sem nome, A febre de Ideal, que me consome, Tu só, Génio da Noite, e mais ninguém!"
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Ideal |
em 09/09/2007 13:00:00 (10781 leituras) |
"Aquela, que eu adoro, não é feita
De lírios nem de rosas purpurinas,
Não tem as formas lânguidas, divinas
Da antiga Vénus de cintura estreita...
Não é a circe, cuja mão suspeita
Compõe filtros mortais entre ruínas,
Nem a Amazona, que se agarra às crinas
D'um corcel e combate satisfeita...
A mim pergunto, e não atino
Com o nome que dê a essa visão,
Que ora amostra ora esconde o meu destino...
É como uma miragem, que entrevejo,
Ideal, que nasceu na solidão,
Núvem, sono impalpável do Desejo..."
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O nosso livro |
em 08/09/2007 22:50:00 (4940 leituras) |
Livro do meu amor, do teu amor, Livro do nosso amor, do nosso peito... Abre-lhe as folhas devagar, com jeito, Como se fossem pétalas de flor.
Olha que eu outro já não sei compor Mais santamente triste, mais perfeito... Não esfolhes os lírios com que é feito Que outros não tenho em meu jardim de dor!
Livro de mais ninguém! Só meu! Só teu! Num sorriso tu dizes e digo eu: Versos só nossos mas que lindos sois!
Ah, meu Amor! Mas quanta, quanta gente Dirá, fechando o livro docemente: "Versos só nossos, só de nós os dois!..."
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A nossa casa |
em 08/09/2007 22:50:00 (4826 leituras) |
A nossa casa, Amor, a nossa casa! Onde está ela, Amor, que não a vejo? Na minha doida fantasia em brasa Constroi-a, num instante, o meu desejo!
Onde está ela, Amor, a nossa casa, O bem que neste mundo mais invejo? O brando ninho aonde o nosso beijo Será mais puro e doce que uma asa?
Sonho...que eu e tu, dois pobrezinhos, Andamos de mãos dadas, nos caminhos Duma terra de rosas, num jardim,
Num país de ilusão que nunca vi... E que eu moro - tão bom! - Dentro de ti E tu, ó meu Amor, dentro de mim...
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A doida |
em 08/09/2007 22:50:00 (8030 leituras) |
A noite passa, noivando. Caem ondas de luar. Lá passa a doida cantando Num suspiro doce e brando Que mais parece chorar!
Dizem que foi pela morte D'alguém, que muito lhe quis, Que endoideceu. Triste sorte! Que dor tão triste e tão forte! Como um doido é infeliz!
Desde que ela endoideceu (Que triste vida, que mágoa!) Pobrezinha, olhando o céu, chama o noivo que morreu, Com os olhos rasos d'água!
E a noite passa, noivando. Passa noivando o luar: "Num suspiro doce e brando, Pobre doida vai cantando Que esse teu canto, é chorar!"
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Amor sem tréguas |
em 08/09/2007 22:50:00 (9823 leituras) |
É necessário amar, qualquer coisa, ou alguém; o que interessa é gostar não importa de quem.
Não importa de quem, nem importa de quê; o que interessa é amar mesmo o que não de vê.
Pode ser uma mulher, uma pedra, uma flor, uma coisa qualquer, seja lá do que for.
Pode até nem ser nada que em ser se concretize, coisa apenas pensada, qua a sonhar se precise.
Amar por claridade, sem dever a cumprir; uma oportunidade para olhar e sorrir.
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Braile |
em 08/09/2007 22:48:15 (4308 leituras) |
Leio o amor no livro da tua pele; demoro-me em cada sílaba, no sulco macio das vogais, num breve obstáculo de consoantes, em que os meus dedos penetram, até chegarem ao fundo dos sentidos. Desfolho as páginas que o teu desejo me abre, ouvindo o murmúrio de um roçar de palavras que se juntam, como corpos, no abraço de cada frase. E chego ao fim para voltar ao princípio, decorando o que já sei, e é sempre novo quando o leio na tua pele.
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Cantiga |
em 08/09/2007 22:47:40 (4005 leituras) |
É pelo teu rosto em que as marés passam, pelos teus lábios em que voam gaivotas, pelos teus dedos em que a luz perpassa, pelos teus olhos que me traçam as rotas,
que este barco encontra o caminho, que este dia descobre que não é tarde, que as palavras se bebem como vinho, e o fogo não queima quando arde.
É no que me dizes quando a noite fala, no que perdura da manhã que se esquece, no que é dito em tudo o que se cala, e não precisa de ser dito quando amanhece.
Pode ser o amor tantas vezes sentido, ou só aquilo que vive no coração, pode ser o que pensava ter esquecido, e regressa agora pela tua mão.
Quantas vezes já foi primavera, e logo aí as flores morreram: até ao dia em que nada ficou como era, e todas as folhas mortas reverdeceram.
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Noções |
em 08/09/2007 22:40:00 (4159 leituras) |
Entre mim e mim, há vastidões bastantes para a navegação dos meus desejos afligidos.
Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos. Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que a atinge.
Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza, só recolho o gosto infinito das respostas que não se encontram.
Virei-me sobre a minha própria existência, e contemplei-a Minha virtude era esta errância por mares contraditórios, e este abandono para além da felicidade e da beleza.
Ó meu Deus, isto é a minha alma: qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e precário, como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e inúmera...
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Fanatismo |
em 08/09/2007 19:20:00 (12434 leituras) |
“Minh’alma de sonhar-te, anda perdida Meus olhos andam cegos de te ver! Não és sequer razão do meu viver, Pois que tu és toda a minha vida!
Não vejo nada assim enlouquecida… Passo no mundo, meu amor, a ler, No misterioso livro do teu ser A mesma história tantas vezes lida!….
“Tudo no mundo é frágil, tudo passa…” Quando me dizem isto, toda a graça Duma boca divina, fala em mim!
E olhos postos em ti, digo de rastos “Ah! Podem voar mundos, morrer astros Que tu és como Deus: princípio e fim!…”
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Vozes do mar |
em 08/09/2007 14:50:00 (7172 leituras) |
Quando o sol vai caindo sobre as águas Num nervoso delíquio d’oiro intenso, Donde vem essa voz cheia de mágoas Com que falas à terra, ó mar imenso?...
Tu falas de festins, e cavalgadas De cavaleiros errantes ao luar? Falas de caravelas encantadas Que dormem em teu seio a soluçar?
Tens cantos d'epopeias?Tens anseios D'amarguras? Tu tens também receios, Ó mar cheio de esperança e majestade?!
Donde vem essa voz,ó mar amigo?... ... Talvez a voz do Portugal antigo, Chamando por Camões numa saudade!
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Sem ti |
em 31/08/2007 15:40:00 (8429 leituras) |
E de súbito desaba o silêncio. É um silêncio sem ti, sem álamos, sem luas.
Só nas minhas mãos ouço a música das tuas.
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A construção do corpo |
em 31/08/2007 15:40:00 (3375 leituras) |
Sempre a tentativa nunca vã... O equilíbrio musical dos instrumentos, a paciência do teu pulso suave e certo, o teu rosto mais largo e a calma força que sobe e que modelas palmo a palmo, rio que ascende como um tronco em plena sala. A tua casa habita entre o silêncio e o dia, Entre a calma e a luz o movimento é livre.
Acordar a leve chama veia a veia, erguê-la do fundo e solta propagá-la aos membros e ao ventre, até ao peito e às mãos e que a cabeça ascenda, cordial corola plena. Todo o corpo é uma onda, uma coluna flexível. Respiras lentamente. A terra inteira é viva. E sentes o teu sangue harmonioso e livre correr ligado à água, ao ar, ao fogo lúcido.
No interior centro cálido abre-se a flor de luz, rigor suave e óleo, música de músculos, roda lenta girando das ancas ao busto ondeado e cada vez mais ampla a onda livre ondula a todo o corpo uno, num respirar de vela. Sobre a toalha de água, à luz de um sol real, dança e respira, respira e dança a vida, o seu corpo é um barco que o próprio mar modela.
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A carta da paixão |
em 31/08/2007 15:30:00 (8735 leituras) |
Esta mão que escreve a ardente melancolia da idade é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça, que à imagem do mundo aberta de têmpora a têmpora ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra a sua queimadura desde os recessos negros onde se formam as estações até ao cimo, nas sedas que se escoam com a largura fluvial da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas e o silêncio todo branco. Os dedos. A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua alumia-se. O mel escurece dentro da veia jugular talhando a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas obscuras, a lua tece as ramas de um sangue mais salgado e profundo. E o marfim amadurece na terra como uma constelação. O dia leva-o, a noite traz para junto da cabeça: essa raiz de osso vivo. A idade que escrevo escreve-se num braço fincado em ti, uma veia dentro da tua árvore. Ou um filão ardido de ponta a ponta da figura cavada no espelho. Ou ainda a fenda na fronte por onde começa a estrela animal. Queima-te a espaçosa desarrumação das imagens. E trabalha em ti o suspiro do sangue curvo, um alimento violento cheio da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força desde a raiz dos braços, a força manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda fechada, a límpida ferida que me atravessa desde essa tua leveza sombria como uma dança até ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma estação é lenta quando te acrescentas ne desordem, nenhum astro é tão feroz agarrando toda a cama. Os poros do teu vestido. As palavras que escrevo correndo entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso, arterial. E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado. A paixão é voraz, o silêncio alimenta-se fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te toda no cometa que te envolve as ancas como um beijo. Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem nos quartos. É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta pelo meio o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras um pouco loucas engolfadas, entre as mãos sumptuosas. A doçura mata. A luz salta às golfadas. A terra é alta. Tu és o nó de sangue que me sufoca. Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões da madeira fria. És uma faca cravada na minha vida secreta. E como estrelas duplas consanguíneas, luzimos de um para o outro nas trevas
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Todo o tempo é de poesia |
em 29/08/2007 19:00:00 (4654 leituras) |
Todo o tempo é de poesia Desde a névoa da manhã à névoa do outro dia. Desde a quentura do ventre à frigidez da agonia Todo o tempo é de poesia Entre bombas que deflagram. Corolas que se desdobram. Corpos que em sangue soçobram. Vidas qu'a amar se consagram. Sob a cúpula sombria das mãos que pedem vingança. Sob o arco da aliança da celeste alegoria. Todo o tempo é de poesia. Desde a arrumação ao caos à confusão da harmonia.
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Níobre Transformada em Fonte |
em 20/08/2007 15:14:01 (2919 leituras) |
(adaptado de Ovídio)
Os cabelos embora o vento passe Já não se agitam leves. O seu sangue, Gelando, já não tinge a sua face. Os olhos param sob a fonte aflita. Já nada nela vive nem se agita, Os seus pés já não podem formar passos, Lentamente as entranhas endurecem E até os gestos gelam nos seus braços.
Mas os olhos de pedra não esquecem. Subindo do seu corpo arrefecido, Lágrimas lentas rolam pela face, Lentas rolam, embora o tempo passe.
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Rosto |
em 20/08/2007 15:11:38 (3393 leituras) |
Rosto nu na luz directa.
Rosto suspenso, despido e permeável, Osmose lenta. Boca entreaberta como se bebesse, Cabeça atenta.
Rosto desfeito, Rosto sem recusa onde nada se defende, Rosto que se dá na duvida do pedido, Rosto que as vozes atravessam.
Rosto derivando lentamente, Pressentindo que os laranjais segredam, Rosto abandonado e transparente Que as negras noites de amor em si recebem
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A invisibilidade de Deus |
em 17/08/2007 18:20:00 (3994 leituras) |
dizem que em sua boca se realiza a flor
outros afirmam: a sua invisibilidade é aparente
mas nunca toquei deus nesta escama de peixe
onde podemos compreender todos os oceanos
nunca tive a visão de sua bondosa mão
o certo
é que por vezes morremos magros até ao osso
sem amparo e sem deus
apenas um rosto muito belo surge etéreo
na vasta insónia que nos isolou do mundo
e sorri
dizendo que nos amou algumas vezes
mas não é o rosto de deus
nem o teu nem aquele outro
que durante anos permaneceu ausente
e o tempo revelou não ser o meu
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Reconhecimento à loucura |
em 17/08/2007 18:20:00 (8898 leituras) |
Já alguém sentiu a loucura vestir de repente o nosso corpo? Já. E tomar a forma dos objectos? Sim. E acender relâmpagos no pensamento? Também. E às vezes parecer ser o fim? Exactamente. Como o cavalo do soneto de Ângelo de Lima? Tal e qual. E depois mostrar-nos o que há-de vir muito melhor do que está? E dar-nos a cheirar uma cor que nos faz seguir viagem sem paragem nem resignação? E sentirmo-nos empurrados pelos rins na aula de descer abismos e fazer dos abismos descidas de recreio e covas de encher novidade? E de uns fazer gigantes e de outros alienados? E fazer frente ao impossível atrevidamente e ganhar-Ihe, e ganhar-Ihe a ponto do impossível ficar possível? E quando tudo parece perfeito poder-se ir ainda mais além? E isto de desencantar vidas aos que julgam que a vida é só uma? E isto de haver sempre ainda mais uma maneira pra tudo?
Tu Só, loucura, és capaz de transformar o mundo tantas vezes quantas sejam as necessárias para olhos individuais. Só tu és capaz de fazer que tenham razão tantas razões que hão-de viver juntas. Tudo, excepto tu, é rotina peganhenta. Só tu tens asas para dar a quem tas vier buscar.
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Dialética |
em 17/08/2007 18:00:00 (8559 leituras) |
É claro que a vida é boa E a alegria, a única indizível emoção É claro que te acho linda Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo E tenho tudo para ser feliz
Mas acontece que eu sou triste...
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Chanson de la Plus Haute Tour |
em 15/08/2007 19:30:00 (4544 leituras) |
Chanson de la Plus Haute Tour
Oisive jeunesse À tout asservie; Par délicatesse J' ai perdu ma vie. Ah! Que le temps vienne Où les coeurs s' éprennent.
Je me suis dit: laisse, Et qu' on ne te voi: Et sans la promesse De plus hautes joies. Que rien ne t' arrête Auguste retraite.
J' ai tant fait patience Qu' a jamais j' oublie; Craintes et souffrances Aux cieux sont parties. Et la soif malsaine Obscurcit mes veines.
Ainsi la Prairie À l' oubli livrée, Grandie, et fleurie D' encens et d' ivraies Au bourdon farouche De cent sales mouches.
Ah! Mille veuvages De la si pauvre âme Qui n' a que l' image De la Notre-Dame! Est-ce que l' on prie La Vierge Marie?
Oisive jeunesse À tout asservie Par délicatesse J'ai perdu ma vie. Ah! Que le temps vienne Où les coeurs s' éprennent!
Canção da Torre Mais Alta
Ociosa juventude De tudo pervertida Por minha virtude Eu perdi a vida. Ah! Que venha a hora Que as almas enamora.
Eu disse a mim: cessa, Que eu não te veja: Nenhuma promessa De rara beleza. E vá sem martírio Ao doce exílio.
Foi tão longa a espera Que eu não olvido. O terror, fera, Aos céus dedico. E uma sede estranha Corrói-me as entranhas.
Assim os Prados Vastos, floridos De mirra e nardo Vão esquecidos Na viagem tosca De cem feias moscas.
Ah! A viuvagem Sem quem as ame Só têm a imagem Da Notre-Dame! Será a prece pia À Virgem Maria?
Ociosa juventude De tudo pervertida Por minha virtude Eu perdi a vida. Ah! Que venha a hora Que as almas enamora!
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20 anos sem Drummond - Parte II |
em 15/08/2007 19:23:01 (2360 leituras) |
Congresso Internacional do Medo
Provisoriamente não cantaremos o amor, que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos. Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços, não cantaremos o ódio porque esse não existe, existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro, o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos, o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas, cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas, cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte, depois morreremos de medo e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.
Carlos Drummond de Andrade
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Ariane |
em 14/08/2007 18:00:00 (7900 leituras) |
Ariane é um navio. Tem mastros, velas e bandeira à proa, E chegou num dia branco, frio, A este rio Tejo de Lisboa.
Carregado de Sonho, fundeou Dentro da claridade destas grades... Cisne de todos, que se foi, voltou Só para os olhos de quem tem saudades...
Foram duas fragatas ver quem era Um tal milagre assim: era um navio Que se balança ali à minha espera Entre as gaivotas que se dão no rio.
Mas eu é que não pude ainda por meus passos Sair desta prisão em corpo inteiro, E levantar âncora, e cair nos braços De Ariane, o veleiro.
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Retrato |
em 13/08/2007 22:10:00 (3214 leituras) |
Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas; eu não tinha este coração que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil: — Em que espelho ficou perdida a minha face?
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Depois do Sol |
em 11/08/2007 23:40:00 (6065 leituras) |
Fez-se noite com tal mistério, Tão sem rumor, tão devagar, Que o crepúsculo é como um luar Iluminando um cemitério . . .
Tudo imóvel . . . Serenidades . . . Que tristeza, nos sonhos meus! E quanto choro e quanto adeus Neste mar de infelicidades!
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Dez chamamentos ao amigo |
em 11/08/2007 12:30:00 (3502 leituras) |
Se te pareço noturna e imperfeita Olha-me de novo. Porque esta noite Olhei-me a mim, como se tu me olhasses. E era como se a água
Desejasse Escapar de sua casa que é o rio E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há tanto tempo Entendo que sou terra. Há tanto tempo Espero Que o teu corpo de água mais fraterno Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez. E mais atento.
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Ode descontínua e remota para flauta e oboé |
em 11/08/2007 12:30:00 (5401 leituras) |
I
É bom que seja assim, Dionisio, que não venhas.
Voz e vento apenas
Das coisas do lá fora
E sozinha supor
Que se estivesses dentro
Essa voz importante e esse vento
Das ramagens de fora
Eu jamais ouviria. Atento
Meu ouvido escutaria
O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.
Porque é melhor sonhar tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite
Pensando: amanhã sim, virá.
E o tempo de amanhã será riqueza:
A cada noite, eu Ariana, preparando
Aroma e corpo. E o verso a cada noite
Se fazendo de tua sábia ausência.
II
Porque tu sabes que é de poesia
Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,
Que a teu lado te amando,
Antes de ser mulher sou inteira poeta.
E que o teu corpo existe porque o meu
Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,
É que move o grande corpo teu
Ainda que tu me vejas extrema e suplicante
Quando amanhece e me dizes adeus.
III
A minha Casa é gurdiã do meu corpo
E protetora de todas minhas ardências.
E transmuta em palavra
Paixão e veemência
E minha boca se faz fonte de prata
Ainda que eu grite à Casa que só existo
Para sorver a água da tua boca.
A minha Casa, Dionísio, te lamenta
E manda que eu te pergunte assim de frente:
À uma mulher que canta ensolarada
E que é sonora, múltipla, argonauta
Por que recusas amor e permanência?
IV
Porque te amo
Deverias ao menos te deter
Um instante
Como as pessoas fazem
Quando vêem a petúnia
Ou a chuva de granizo.
Porque te amo
Deveria a teus olhos parecer
Uma outra Ariana
Não essa que te louva
A cada verso
Mas outra
Reverso de sua própria placidez
Escudo e crueldade a cada gesto.
Porque te amo, Dionísio,
é que me faço assim tão simultânea
Madura, adolescente
E porisso talvez
Te aborreças de mim.
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(...)
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Amor da palavra, Amor do corpo |
em 01/08/2007 17:30:00 (4888 leituras) |
A nudez da palavra que te despe. Que treme, esquiva. Com os olhos dela te quero ver, que te não vejo. Boca na boca através de que boca posso eu abrir-te e ver-te? É meu receio que escreve e não o gosto do sol de ver-te? Todo o espaço dou ao espelho vivo e do vazio te escuto. Silêncio de vertigem, pausa, côncavo de onde nasces, morres, brilhas, branca? És palavra ou és corpo unido em nada? É de mim que nasces ou do mundo solta? Amorosa confusão, te perco e te acho, à beira de nasceres tua boca toco e o beijo é já perder-te.
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Chove |
em 01/08/2007 17:29:18 (9728 leituras) |
Chove...
Mas isso que importa!, se estou aqui abrigado nesta porta a ouvir a chuva que cai do céu uma melodia de silêncio que ninguém mais ouve senão eu?
Chove...
Mas é do destino de quem ama ouvir um violino até na lama.
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Pernoitas em mim |
em 01/08/2007 16:50:00 (4714 leituras) |
pernoitas em mim e se por acaso te toco a memória...amas ou finges morrer
pressinto o aroma luminoso dos fogos escuto o rumor da terra molhada a fala queimada das estrelas
é noite ainda o corpo ausente instala-se vagarosamente envelheço com a nómada solidão das aves
já não possuo a brancura oculta das palavras e nenhum lume irrompe para beberes
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A Arte de Ser Bom |
em 01/08/2007 16:10:00 (8726 leituras) |
Sê bom. Mas ao coração
Prudência e cautela ajunta.
Quem todo de mel se unta,
Os ursos o lamberão.
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Escreve-me... |
em 01/08/2007 13:30:00 (6631 leituras) |
Escreve-me! Ainda que seja só Uma palavra, uma palavra apenas, Suave como o teu nome e casta Como um perfume casto d'açucenas!
Escreve-me!Há tanto,há tanto tempo Que te não vejo, amor!Meu coração Morreu já,e no mundo aos pobres mortos Ninguém nega uma frase d'oração!
"Amo-te!"Cinco letras pequeninas, Folhas leves e tenras de boninas, Um poema d'amor e felicidade!
Não queres mandar-me esta palavra apenas? Olha, manda então...brandas...serenas... Cinco pétalas roxas de saudade...
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Assim como falham as palavras |
em 01/08/2007 13:30:00 (5407 leituras) |
Trago dentro do meu coração, Como num cofre que se não pode fechar de cheio, Todos os lugares onde estive, Todos os portos a que cheguei, Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias, Ou de tombadilhos, sonhando, E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero. A entrada de Singapura, manhã subindo, cor verde, O coral das Maldivas em passagem cálida, Macau à uma hora da noite... Acordo de repente... Yat-lô--ô-ôôô-ô-ô-ô-ô-ô-ô...Ghi-... E aquilo soa-me do funase de Zanzibar ao sol... Dar-es-Salaam (a saída do de uma outra realidade... A estatura norte-africana qué difícil)... Majunga, Nossi-Bé, verduras de Madagascar... Tempestades em torno ao Guardafui... E o Cabo da Boa Esperança nítido ao sol da madrugada... E a Cidade do Cabo com a Montanha da Mesa ao fundo... Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei... Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos... Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti, Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz. A certos momentos do dia recordo tudo isto e apavoro-me, Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge, Desta entrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso, Desta turbulência tranqüila de sensações desencontradas, Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada, Deste desassossego no fundo de todos os cálices, Desta angústia no fundo de todos os prazeres, Desta sociedade antecipada na asa de todas as chávenas, Deste jogo de cartas fastiento entre o Cabo da Boa Esperança e as Canárias. Não sei se a vida é pouco ou demais para mim. Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência, Consangüinidade com o mistério das coisas, choque Aos contatos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos, Ou se há outra significação para isto mais cômoda e feliz.
Seja o que for, era melhor não ter nascido, Porque, de tão interessante que é a todos os momentos, A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger, A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas, E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos, Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs, E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso, Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.
Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços, É preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas... Por mais que me esforce por ter uma grande pena de mim, não choro, Tenho a alma rachada sob o indicador curvo que lhe toca... Que há de ser de mim? Que há de ser de mim?
Correram o bobo a chicote do palácio, sem razão, Fizeram o mendigo levantar-se do degrau onde caíra. Bateram na criança abandonada e tiraram-lhe o pão das mãos. Oh mágoa imensa do mundo, o que falta é agir... Tão decadente, tão decadente, tão decadente... Só estou bem quando ouço música, e nem então. Jardins do século dezoito antes de 89, Onde estais vós, que eu quero chorar de qualquer maneira?
Como um bálsamo que não consola senão pela idéia de que é um bálsamo, A tarde de hoje e de todos os dias pouco a pouco, monótona, cai.
Acenderam as luzes, cai a noite, a vida substitui-se. Seja de que maneira for, é preciso continuar a viver. Arde-me a alma como se fosse uma mão, fisicamente. Estou no caminho de todos e esbarram comigo. Minha quinta na província, Haver menos que um comboio, uma diligência e a decisão de partir entre mim e ti. Assim fico, fico... Eu sou o que sempre quer partir, E fica sempre, fica sempre, fica sempre, Até à morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica...
Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito.
Só humanitariamente é que se pode viver. Só amando os homens, as ações, a banalidade dos trabalhos, Só assim - ai de mim! -, só assim se pode viver. Só assim, o noite, e eu nunca poderei ser assim!
Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo, Mas tudo ou sobrou ou foi pouco - não sei qual - e eu sofri. Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos,
E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse. Amei e odiei como toda gente, Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo, E para mim foi sempre a exceção, o choque, a válvula, o espasmo.
Vem, ó noite, e apaga-me, vem e afoga-me em ti. Ó carinhosa do Além, senhora do luto infinito, Mágoa externa na Terra, choro silencioso do Mundo. Mãe suave e antiga das emoções sem gesto, Irmã mais velha, virgem e triste, das idéias sem nexo, Noiva esperando sempre os nossos propósitos incompletos, A direção constantemente abandonada do nosso destino, A nossa incerteza pagã sem alegria, A nossa fraqueza cristã sem fé, O nosso budismo inerte, sem amor pelas coisas nem êxtases, A nossa febre, a nossa palidez, a nossa impaciência de fracos, A nossa vida, o mãe, a nossa perdida vida...
Não sei sentir, não sei ser humano, conviver De dentro da alma triste com os homens meus irmãos na terra. Não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser quotidiano, nítido, Ter um lugar na vida, ter um destino entre os homens, Ter uma obra, uma força, uma vontade, uma horta, Unia razão para descansar, uma necessidade de me distrair, Uma cousa vinda diretamente da natureza para mim.
Por isso sê para mim materna, ó noite tranqüila... Tu, que tiras o mundo ao mundo, tu que és a paz, Tu que não existes, que és só a ausência da luz, Tu que não és uma coisa, rim lugar, uma essência, uma vida, Penélope da teia, amanhã desfeita, da tua escuridão, Circe irreal dos febris, dos angustiados sem causa, Vem para mim, ó noite, estende para mim as mãos, E sê frescor e alívio, o noite, sobre a minha fronte... Tu, cuja vinda é tão suave que parece um afastamento, Cujo fluxo e refluxo de treva, quando a lua bafeja, Tem ondas de carinho morto, frio de mares de sonho, Brisas de paisagens supostas para a nossa angústia excessiva... Tu, palidamente, tu, flébil, tu, liquidamente, Aroma de morte entre flores, hálito de febre sobre margens, Tu, rainha, tu, castelã, tu, dona pálida, vem...
Sentir tudo de todas as maneiras, Viver tudo de todos os lados, Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo, Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.
Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo, Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo, Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia, Seja uma flor ou uma idéia abstrata, Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus. E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo. São-me simpáticos os homens superiores porque são superiores, E são-me simpáticos os homens inferiores porque são superiores também, Porque ser inferior é diferente de ser superior, E por isso é uma superioridade a certos momentos de visão. Simpatizo com alguns homens pelas suas qualidades de caráter, E simpatizo com outros pela sua falta dessas qualidades, E com outros ainda simpatizo por simpatizar com eles, E há momentos absolutamente orgânicos em que esses são todos os homens. Sim, como sou rei absoluto na minha simpatia, Basta que ela exista para que tenha razão de ser. Estreito ao meu peito arfante, num abraço comovido, (No mesmo abraço comovido) O homem que dá a camisa ao pobre que desconhece, O soldado que morre pela pátria sem saber o que é pátria, E o matricida, o fratricida, o incestuoso, o violador de crianças, O ladrão de estradas, o salteador dos mares, O gatuno de carteiras, a sombra que espera nas vielas — Todos são a minha amante predileta pelo menos um momento na vida.
Beijo na boca todas as prostitutas, Beijo sobre os olhos todos os souteneurs, A minha passividade jaz aos pés de todos os assassinos E a minha capa à espanhola esconde a retirada a todos os ladrões. Tudo é a razão de ser da minha vida.
Cometi todos os crimes, Vivi dentro de todos os crimes (Eu próprio fui, não um nem o outro no vicio, Mas o próprio vício-pessoa praticado entre eles, E dessas são as horas mais arco-de-triunfo da minha vida).
Multipliquei-me, para me sentir, Para me sentir, precisei sentir tudo, Transbordei, não fiz senão extravasar-me, Despi-me, entreguei-rne, E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.
Os braços de todos os atletas apertaram-me subitamente feminino, E eu só de pensar nisso desmaiei entre músculos supostos.
Foram dados na minha boca os beijos de todos os encontros, Acenaram no meu coração os lenços de todas as despedidas,
Todos os chamamentos obscenos de gesto e olhares Batem-me em cheio em todo o corpo com sede nos centros sexuais. Fui todos os ascetas, todos os postos-de-parte, todos os como que esquecidos, E todos os pederastas - absolutamente todos (não faltou nenhum).
Rendez-vous a vermelho e negro no fundo-inferno da minha alma!
(Freddie, eu chamava-te Baby, porque tu eras louro, branco e eu amava-te,
Quantas imperatrizes por reinar e princesas destronadas tu foste para mim!) Mary, com quem eu lia Burns em dias tristes como sentir-se viver, Mary, mal tu sabes quantos casais honestos, quantas famílias felizes,
Viveram em ti os meus olhos e o meu braço cingido e a minha consciência incerta, A sua vida pacata, as suas casas suburbanas com jardim, Os seus half-holidays inesperados... Mary, eu sou infeliz... Freddie, eu sou infeliz... Oh, vós todos, todos vós, casuais, demorados, Quantas vezes tereis pensado em pensar em mim, sem que o fósseis,
Ah, quão pouco eu fui no que sois, quão pouco, quão pouco — Sim, e o que tenho eu sido, o meu subjetivo universo, Ó meu sol, meu luar, minhas estrelas, meu momento, Ó parte externa de mim perdida em labirintos de Deus!
Passa tudo, todas as coisas num desfile por mim dentro, E todas as cidades do mundo, rumorejam-se dentro de mim ... Meu coração tribunal, meu coração mercado,
Meu coração sala da Bolsa, meu coração balcão de Banco, Meu coração rendez-vous de toda a humanidade, Meu coração banco de jardim público, hospedaria, Estalagem, calabouço número qualquer cousa (Aqui estuvo el Manolo en vísperas de ir al patíbulo) Meu coração clube, sala, platéia, capacho, guichet, portaló, Ponte, cancela, excursão, marcha, viagem, leilão, feira, arraial, Meu coração postigo, Meu coração encomenda, Meu coração carta, bagagem, satisfação, entrega, Meu coração a margem, o lirrite, a súmula, o índice, Eh-lá, eh-lá, eh-lá, bazar o meu coração.
Todos os amantes beijaram-se na minhalma, Todos os vadios dormiram um momento em cima de mim, Todos os desprezados encostaram-se um momento ao meu ombro, Atravessaram a rua, ao meu braço, todos os velhos e os doentes, E houve um segredo que me disseram todos os assassinos.
(Aquela cujo sorriso sugere a paz que eu não tenho, Em cujo baixar-de-olhos há uma paisagem da Holanda, Com as cabeças femininas coiffées de lin E todo o esforço quotidiano de um povo pacífico e limpo...
Aquela que é o anel deixado em cima da cômoda, E a fita entalada com o fechar da gaveta, Fita cor-de-rosa, não gosto da cor mas da fita entalada, Assim como não gosto da vida, mas gosto de senti-la ...
Dormir como um cão corrido no caminho, ao sol, Definitivamente para todo o resto do Universo, E que os carros me passem por cima.)
Fui para a cama com todos os sentimentos, Fui souteneur de todas ás emoções, Pagaram-me bebidas todos os acasos das sensações, Troquei olhares com todos os motivos de agir, Estive mão em mão com todos os impulsos para partir, Febre imensa das horas! Angústia da forja das emoções! Raiva, espuma, a imensidão que não cabe no meu lenço, A cadela a uivar de noite, O tanque da quinta a passear à roda da minha insônia, O bosque como foi à tarde, quando lá passeamos, a rosa, A madeixa indiferente, o musgo, os pinheiros, Toda a raiva de não conter isto tudo, de não deter isto tudo, Ó fome abstrata das coisas, cio impotente dos momentos, Orgia intelectual de sentir a vida!
Obter tudo por suficiência divina — As vésperas, os consentimentos, os avisos, As cousas belas da vida — O talento, a virtude, a impunidade, A tendência para acompanhar os outros a casa, A situação de passageiro, A conveniência em embarcar já para ter lugar, E falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, urna frase, E a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa.
Poder rir, rir, rir despejadamente, Rir como um copo entornado, Absolutamente doido só por sentir, Absolutamente roto por me roçar contra as coisas, Ferido na boca por morder coisas, Com as unhas em sangue por me agarrar a coisas, E depois dêem-me a cela que quiserem que eu me lembrarei da vida.
Sentir tudo de todas as maneiras, Ter todas as opiniões, Ser sincero contradizendo-se a cada minuto, Desagradar a si próprio pela plena liberalidade de espírito, E amar as coisas como Deus.
Eu, que sou mais irmão de uma árvore que de um operário, Eu, que sinto mais a dor suposta do mar ao bater na praia Que a dor real das crianças em quem batem (Ah, como isto deve ser falso, pobres crianças em quem batem — E por que é que as minhas sensações se revezam tão depressa?) Eu, enfim, que sou um diálogo continuo, Um falar-alto incompreensível, alta-noite na torre, Quando os sinos oscilam vagamente sem que mão lhes toque E faz pena saber que há vida que viver amanhã. Eu, enfim, literalmente eu, E eu metaforicamente também, Eu, o poeta sensacionista, enviado do Acaso As leis irrepreensíveis da Vida, Eu, o fumador de cigarros por profissão adequada, O indivíduo que fuma ópio, que toma absinto, mas que, enfim, Prefere pensar em fumar ópio a fumá-lo E acha mais seu olhar para o absinto a beber que bebê-lo... Eu, este degenerado superior sem arquivos na alma, Sem personalidade com valor declarado, Eu, o investigador solene das coisas fúteis, Que era capaz de ir viver na Sibéria só por embirrar com isso, E que acho que não faz mal não ligar importâricia à pátria Porqtie não tenho raiz, como uma árvore, e portanto não tenho raiz Eu, que tantas vezes me sinto tão real como uma metáfora,
Como uma frase escrita por um doente no livro da rapariga que encontrou no terraço, Ou uma partida de xadrez no convés dum transatlântico, Eu, a ama que empurra os perambulators em todos os jardins públicos,
Eu, o policia que a olha, parado para trás na álea, Eu, a criança no carro, que acena à sua inconsciência lúcida com um coral com guizos. Eu, a paisagem por detrás disto tudo, a paz citadina Coada através das árvores do jardim público, Eu, o que os espera a todos em casa, Eu, o que eles encontram na rua, Eu, o que eles não sabem de si próprios, Eu, aquela coisa em que estás pensando e te marca esse sorriso,
Eu, o contraditório, o fictício, o aranzel, a espuma, O cartaz posto agora, as ancas da francesa, o olhar do padre, O largo onde se encontram as suas ruas e os chauffeurs dormem contra os carros, A cicatriz do sargento mal encarado, O sebo na gola do explicador doente que volta para casa, A chávena que era por onde o pequenito que morreu bebia sempre,
E tem uma falha na asa (e tudo isto cabe num coração de mãe e enche-o)... Eu, o ditado de francês da pequenita que mexe nas ligas, Eu, os pés que se tocam por baixo do bridge sob o lustre, Eu, a carta escondida, o calor do lenço, a sacada com a janela entreaberta, O portão de serviço onde a criada fala com os desejos do primo, O sacana do José que prometeu vir e não veio E a gente tinha uma partida para lhe fazer... Eu, tudo isto, e além disto o resto do mundo... Tanta coisa, as portas que se abrem, e a razão por que elas se abrem, E as coisas que já fizeram as mãos que abrem as portas... Eu, a infelicidade-nata de todas as expressões, A impossibilidade de exprimir todos os sentimentos, Sem que haja uma lápida no cemitério para o irmão de tudo isto, E o que parece não querer dizer nada sempre quer dizer qualquer cousa... Sim, eu, o engenheiro naval que sou supersticioso como uma camponesa madrinha, E uso monóculo para não parecer igual à idéia real que faço de mim, Que levo às vezes três horas a vestir-me e nem por isso acho isso natural, Mas acho-o metafísico e se me batem à porta zango-me, Não tanto por me interromperem a gravata como por ficar sabendo que há a vida... Sim, enfim, eu o destinatário das cartas lacradas, O baú das iniciais gastas, A entonação das vozes que nunca ouviremos mais - Deus guarda isso tudo no Mistério, e às vezes sentimo-lo E a vida pesa de repente e faz muito frio mais perto que o corpo. A Brígida prima da minha tia, O general em que elas falavam - general quando elas eram pequenas, E a vida era guerra civil a todas as esquinas... Vive le mélodrame oú Margot a pleuré! Caem as folhas secas no chão irregularmente, Mas o fato é que sempre é outono no outono, E o inverno vem depois fatalmente, há só um caminho para a vida, que é a vida... Esse velho insignificante, mas que ainda conheceu os românticos, Esse opúsculo político do tempo das revoluções constitucionais, E a dor que tudo isso deixa, sem que se saiba a razão Nem haja para chorar tudo mais razão que senti-lo.
Viro todos os dias todas as esquinas de todas as ruas, E sempre que estou pensando numa coisa, estou pensando noutra. Não me subordino senão por atavisnio, E há sempre razões para emigrar para quem não está de cama.
Das serrasses de todos os cafés de todas as cidades Acessíveis à imaginação Reparo para a vida que passa, sigo-a sem me mexer, Pertenço-lhe sem tirar um gesto da algibeira, Nem tomar nota do que vi para depois fingir que o vi.
No automóvel amarelo a mulher definitiva de alguém passa, Vou ao lado dela sem ela saber. No trottoir imediato eles encontram-se por um acaso combinado, Mas antes de o encontro deles lá estar já eu estava com eles lá. Não há maneira de se esquivarem a encontrar-me, Não há modo de eu não estar em toda a parte. O meu privilégio é tudo (Brevetée, Sans Garantie de Dieu, a minhAlma).
Assisto a tudo e definitivamente. Não há jóia para mulher que não seja comprada por mim e para mim, Não há intenção de estar esperando que não seja minha de qualquer maneira, Não há resultado de conversa que não seja meu por acaso, Não há toque de sino em Lisboa há trinta anos, noite de S. Carlos há cinqüenta Que não seja para mim por uma galantaria deposta.
Fui educado pela Imaginação, Viajei pela mão dela sempre, Amei, odiei, falei, pensei sempre por isso, E todos os dias têm essa janela por diante, E todas as horas parecem minhas dessa maneira.
Cavalgada explosiva, explodida, como uma bomba que rebenta, Cavalgada rebentando para todos os lados ao mesmo tempo, Cavalgada por cima do espaço, salto por cima do tempo, Galga, cavalo eléctron-íon, sistema solar resumido Por dentro da ação dos êmbolos, por fora do giro dos volantes. Dentro dos êmbolos, tornado velocidade abstrata e louca, Ajo a ferro e velocidade, vaivém, loucura, raiva contida, Atado ao rasto de todos os volantes giro ssombrosas horas, E todo o universo range, estraleja e estropia-se em mim.
Ho-ho-ho-ho-ho!... Cada vez mais depressa, cada vez mais com o espírito adiante do corpo Adiante da própria idéia veloz do corpo projetado, Com o espírito atrás adiante do corpo, sombra, chispa, He-la-ho-ho ... Helahoho ...
Toda a energia é a mesma e toda a natureza é o mesmo... A seiva da seiva das árvores é a mesma energia que mexe As rodas da locomotiva, as rodas do elétrico, os volantes dos Diesel, E um carro puxado a mulas ou a gasolina é puxado pela mesma coisa.
Raiva panteísta de sentir em mim formidandamente, Com todos os meus sentidos em ebulição, com todos os meus poros em fumo, Que tudo é uma só velocidade, uma só energia, uma só divina linha De si para si, parada a ciciar violências de velocidade louca... Ho ----
Ave, salve, viva a unidade veloz de tudo! Ave, salve, viva a igualdade de tudo em seta! Ave, salve, viva a grande máquina universo! Ave, que sois o mesmo, árvores, máquinas, leis! Ave, que sois o mesmo, vermes, êmbolos, idéias abstratas,
A mesma seiva vos enche, a mesma seiva vos torna, A mesma coisa sois, e o resto é por fora e falso, O resto, o estático resto que fica nos olhos que param, Mas não nos meus nervos motor de explosão a óleos pesados ou leves, Não nos meus nervos todas as máquinas, todos os sistemas de engrenagem, Nos meus nervos locomotiva, carro elétrico, automóvel, debulhadora a vapor
Nos meus nervos máquina marítima, Diesel, semi-Diesel, Campbell, Nos meus nervos instalação absoluta a vapor, a gás, a óleo e a eletricidade, Máquina universal movida por correias de todos os momentos!
Todas as madrugadas são a madrugada e a vida. Todas as auroras raiam no mesmo lugar: Infinito... Todas as alegrias de ave vêm da mesma garganta, Todos os estremecimentos de folhas são da mesma árvore, E todos os que se levantam cedo para ir trabalhar Vão da mesma casa para a mesma fábrica por o mesmo caminho...
Rola, bola grande, formigueiro de consciências, terra, Rola, auroreada, entardecida, a prumo sob sóis, noturna, Rola no espaço abstrato, na noite mal iluminada realmente Rola ...
Sinto na minha cabeça a velocidade de giro da terra, E todos os países e todas as pessoas giram dentro de mim, Centrífuga ânsia, raiva de ir por os ares até aos astros Bate pancadas de encontro ao interior do meu crânio, Põe-me alfinetes vendados por toda a consciência do meu corpo, Faz-me levantar-me mil vezes e dirigir-me para Abstrato, Para inencontrável, Ali sem restrições nenhumas, A Meta invisível — todos os pontos onde eu não estou — e ao mesmo tempo ...
Ah, não estar parado nem a andar, Não estar deitado nem de pé, Nem acordado nem a dormir, Nem aqui nem noutro ponto qualquer, Resol,,,er a equação desta inquietação prolixa, Saber onde estar para poder estar em toda a parte, Saber onde deitar-me para estar passeando por todas as ruas ...
Ho-ho-ho-ho-ho-ho-ho
Cavalgada alada de mim por cima de todas as coisas, Cavalgada estalada de mim por baixo de todas as coisas, Cavalgada alada e estalada de mim por causa de todas as coisas ...
Hup-la por cima das árvores, hup-la por baixo dos tanques, Hup-la contra as paredes, hup-la raspando nos troncos, Hup-la no ar, hup-la no vento, hup-la, hup-la nas praias, Numa velocidade crescente, insistente, violenta, Hup-la hup-la hup-la hup-la ...
Cavalgada panteísta de mim por dentro de todas as coisas, Cavalgada energética por dentro de todas as energias, Cavalgada de mim por dentro do carvão que se queima, da lâmpada que arde, Clarim claro da manhã ao fundo Do semicírculo frio do horizonte, Tênue clarim longínquo como bandeiras incertas Desfraldadas para além de onde as cores são visíveis ...
Clarim trêmulo, poeira parada, onde a noite cessa, Poeira de ouro parada no fundo da visibilidade ...
Carro que chia limpidamente, vapor que apita, Guindaste que começa a girar no meu ouvido, Tosse seca, nova do que sai de casa, Leve arrepio matutino na alegria de viver, Gargalhada súbita velada pela bruma exterior não sei como, Costureira fadada para pior que a manhã que sente, Operário tísico desfeito para feliz nesta hora Inevitavelmente vital, Em que o relevo das coisas é suave, certo e simpático, Em que os muros são frescos ao contacto da mão, e as casas Abrem aqui e ali os olhos cortinados a branco...
Toda a madrugada é uma colina que oscila, ................................................................... ... e caminha tudo
Para a hora cheia de luz em que as lojas baixam as pálpebras E rumor tráfego carroça comboio eu sinto sol estruge
Vertigem do meio-dia emoldurada a vertigens — Sol dos vértices e nos... da minha visão estriada, Do rodopio parado da minha retentiva seca, Do abrumado clarão fixo da minha consciência de viver.
Rumor tráfego carroça comboio carros eu sinto sol rua, Aros caixotes trolley loja rua i,itrines saia olhos Rapidamente calhas carroças caixotes rua atravessar rua Passeio lojistas "perdão" rua Rua a passear por mim a passear pela rua por mim Tudo espelhos as lojas de cá dentro das lojas de lá A velocidade dos carros ao contrário nos espelhos oblíquos das montras, O chão no ar o sol por baixo dos pés rua regas flores no cesto rua O meu passado rua estremece camion rua não me recordo rua
Eu de cabeça pra baixo no centro da minha consciência de mim Rua sem poder encontrar uma sensação só de cada vez rua Rua pra trás e pra diante debaixo dos meus pés Rua em X em Y em Z por dentro dos meus braços Rua pelo meu monóculo em círculos de cinematógrafo pequeno, Caleidoscópio em curvas iriadas nítidas rua. Bebedeira da rua e de sentir ver ouvir tudo ao mesmo tempo. Bater das fontes de estar vindo para cá ao mesmo tempo que vou para lá. Comboio parte-te de encontro ao resguardo da linha de desvio! Vapor navega direito ao cais e racha-te contra ele! Automóvel guiado pela loucura de todo o universo precipita-te Por todos os precipícios abaixo E choca-te, trz!, esfrangalha-te no fundo do meu coração!
À moi, todos os objetos projéteis! À moi, todos os objetos direções! À moi, todos os objetos invisíveis de velozes! Batam-me, trespassem-me, ultrapassem-me! Sou eu que me bato, que me trespasso, que me ultrapasso! A raiva de todos os ímpetos fecha em círculo-mim!
Hela-hoho comboio, automóvel, aeroplano minhas ânsias, Velocidade entra por todas as idéias dentro, Choca de encontro a todos os sonhos e parte-os, Chamusca todos os ideais humanitários e úteis, Atropela todos os sentimentos normais, decentes, concordantes, Colhe no giro do teu volante vertiginoso e pesado Os corpos de todas as filosofias, os tropos de todos os poemas, Esfrangalha-os e fica só tu, volante abstrato nos ares, Senhor supremo da hora européia, metálico a cio. Vamos, que a cavalgada não tenha fim nem em Deus!
Dói-me a imaginação não sei como, mas é ela que dói, Declina dentro de mim o sol no alto do céu. Começa a tender a entardecer no azul e nos meus nervos. Vamos ó cavalgada, quem mais me consegues tornar? Eu que, veloz, voraz, comilão da energia abstrata, Queria comer, beber, esfolar e arranhar o mundo, Eu, que só me contentaria com calcar o universo aos pés, Calcar, calcar, calcar até não sentir. Eu, sinto que ficou fora do que imaginei tudo o que quis, Que embora eu quisesse tudo, tudo me faltou.
Cavalgada desmantelada por cima de todos os cimos, Cavalgada desarticulada por baixo de todos os poços, Cavalgada vôo, cavalgada seta, cavalgada pensamento-relâmpago, Cavalgada eu, cavalgada eu, cavalgada o universo — eu. Helahoho-o-o-o-o-o-o-o ...
Meu ser elástico, mola, agulha, trepidação ...
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Procura do amor |
em 28/07/2007 10:44:33 (8088 leituras) |
Não faças versos sobre acontecimentos. Não há criação nem morte perante a poesia. Diante dela, a vida é um sol estático, não aquece nem ilumina. As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo, esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica. Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro são indiferentes. Nem me reveles teus sentimentos, que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem. O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz. O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas. Não é música ouvida de passagem: rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma. O canto não é a natureza nem os homens em sociedade. Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam. A poesia (não tires poesia das coisas) elide sujeito e objeto.
Não dramatizes, não invoques, não indagues. Não percas tempo em mentir. Não te aborreças. Teu iate de marfim, teu sapato de diamante, vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.
Não recomponhas tua sepultada e merencória infância. Não osciles entre o espelho e a memória em dissipação. Que se dissipou, não era poesia. Que se partiu, cristal não era.
Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. Estão paralisados, mas não há desespero, há calma e frescura na superfície intata. Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consuma com seu poder de palavra e seu poder de silêncio. Não forces o poema a desprender-se do limbo. Não colhas no chão o poema que se perdeu. Não adules o poema. Aceita-o como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada no espaço.
Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave?
Repara: ermas de melodia e conceito, elas se refugiaram na noite, as palavras. Ainda úmidas e impregnadas de sono, rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
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Pensamento |
em 23/07/2007 12:50:00 (15974 leituras) |
... uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida. Foi apesar de que parei na rua e fiquei olhando para você enquanto você esperava um táxi. E desde logo desejando você, esse teu corpo que nem sequer é bonito, mas é o corpo que eu quero. Mas quero inteira, com a alma também. Por isso, não faz mal que você não venha, esperarei quanto tempo for preciso.
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Que este amor não me cegue nem me siga |
em 21/07/2007 17:40:00 (4773 leituras) |
Que este amor não me cegue nem me siga. E de mim mesma nunca se aperceba. Que me exclua de estar sendo perseguida E do tormento De só por ele me saber estar sendo. Que o olhar não se perca nas tulipas Pois formas tão perfeitas de beleza Vêm do fulgor das trevas. E o meu Senhor habita o rutilante escuro De um suposto de heras em alto muro. Que este amor só me faça descontente E farta de fadigas. E de fragilidades tantas Eu me faça pequena. E diminuta e tenra Como só soem ser aranhas e formigas. Que este amor só me veja de partida.
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Do Caderno H |
em 18/07/2007 00:10:00 (4374 leituras) |
A Arte de Ler O leitor que mais admiro é aquele que não chegou até a presente linha. Neste momento já interrompeu a leitura e está continuando a viagem por conta própria.
A Carta Quando completei quinze anos, meu compenetrado padrinho me escreveu uma carta muito, muito séria: tinha até ponto-e-vírgula! Nunca fiquei tão impressionado na minha vida.
A Coisa A gente pensa uma coisa, acaba escrevendo outra e o leitor entende uma terceira coisa... e, enquanto se passa tudo isso, a coisa propriamente dita começa a desconfiar que não foi propriamente dita.
As Indagações A resposta certa, não importa nada: o essencial é que as perguntas estejam certas.
A Voz Ser poeta não é dizer grandes coisas, mas ter uma voz reconhecível dentre todas as outras.
Ars Longa Um poema só termina por acidente de publicação ou de morte do autor.
Arte Poética Esquece todos os poemas que fizeste. Que cada poema seja o número um.
Biografia Era um grande nome — ora que dúvida! Uma verdadeira glória. Um dia adoeceu, morreu, virou rua... E continuaram a pisar em cima dele.
Cartaz para uma feira do livro Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não lêem.
Citação De um autor inglês do saudoso século XIX: "O verdadeiro gentleman compra sempre três exemplares de cada livro: um para ler, outro para guardar na estante e o último para dar de presente."
Citação 2 E melhor se poderia dizer dos poetas o que disse dos ventos Machado de Assis: "A dispersão não lhes tira a unidade, nem a inquietude a constância."
Contradições ... mas o que eles não sabem levar em conta é que o poeta é uma criatura essencialmente dramática, isto é, contraditória, isto é, verdadeira. E por isso, é que o bom de escrever teatro é que se pode dizer, como toda a sinceridade, as coisas mais opostas. Sim, um autor que nunca se contradiz deve estar mentindo.
Cuidado A poesia não se entrega a quem a define.
Das Escolas Pertencer a uma escola poética é o mesmo que ser condenado à prisão perpétua.
Destino Atroz Um poeta sofre três vezes: primeiro quando ele os sente, depois quando ele os escreve e, por último, quando declamam os seus versos.
Do Estilo O estilo é uma dificuldade de expressão.
Dos Leitores Há leitores que acham bom o que a gente escreve. Há outros que sempre acham que poderia ser melhor. Mas, na verdade, até hoje não pude saber qual das duas espécies irrita mais.
Dos Livros Há duas espécies de livros: uns que os leitores esgotam, outros que esgotam os leitores.
Dupla Delícia O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado.
Educação O mais difícil, mesmo, é a arte de desler.
Fatalidade O que mais enfurece o vento são esses poetas invertebrados que o fazem rimar com lamento.
Feira de Livro O que os poetas escrevem agrada ao espírito, embeleza a cútis e prolonga a existência.
Leitura Se é proibido escrever nos monumentos, também deveria haver uma lei que proibisse escrever sobre Shakespeare e Camões.
Leitura 2 Livro bom, mesmo, é aquele de que às vezes interrompemos a leitura para seguir — até onde? — uma entrelinha... Leitura interrompida? Não. Esta é a verdadeira leitura continuada.
Leituras — Você ainda não leu O Significado do Significado? Não? Assim você nunca fica em dia. — Mas eu estou só esperando que apareça. O Significado do Significado do Significado.
Leituras 2 Não, não te recomendo a leitura de Joaquim Manuel de Macedo ou de José de Alencar . Que idéia foi essa do teu professor? Para que havias tu de os ler, se tua avozinha já os leu? E todas as lágrimas que ela chorou, quando era moça como tu, pelos amores de Ceci e da Moreninha, ficaram fazendo parte do teu ser, para sempre. Como vês, minha filha, a hereditariedade nos poupa muito trabalho.
Lógica & Linguagem Alguém já se lembrou de fazer um estudo sobre a estatística dos provérbios? Este, por exemplo: "Quem cospe para o céu, na cara lhe cai". Tal desarranjo sintático faria a antiga análise lógica perder de súbito a razão.
O Assunto E nunca me perguntes o assunto de um poema: um poema sempre fala de outra coisa.
O Poema O poema essa estranha máscara mais verdadeira do que a própria face.
O Trágico Dilema Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um dos dois é burro.
Palavra Escrita Por vezes, quando estou escrevendo este cadernos, tenho um medo idiota de que saiam póstumos. Mas haverá coisa escrita que não seja póstuma? Tudo que sai impresso é epitáfio.
Poema Mas por que datar um poema? Os poetas que põem datas nos seus poemas me lembram essas galinhas que carimbam os ovos...
Poesia & Lenço E essa que enxugam as lágrimas em nossos poemas com defluxos em lenços... Oh! tenham paciência, velhinhas... A poesia não é uma coisa idiota: a poesia é uma coisa louca!
Poesia & Peito Qual Ioga, qual nada! A melhor ginástica respiratória que existe é a leitura, em voz alta, dos Lusíadas.
Refinamentos Escrever o palavrão pelo palavrão é a modalidade atual da antiga arte pela arte.
Ressalva Poesia não é a gente tentar em vão trepar pelas paredes, como se vê em tanto louco aí: poesia é trepar mesmo pelas paredes.
Sinônimos Esses que pensam que existem sinônimos, desconfio que não sabem distinguir as diferentes nuanças de uma cor.
Sonho Um poema que ao lê-lo, nem sentirias que ele já estivesse escrito, mas que fosse brotando, no mesmo instante, de teu próprio coração.
Tempo Coisa que acaba de deixar a querida leitora um pouco mais velha ao chegar ao fim desta linha.
Veneração Ah, esses livros que nos vêm às mãos, na Biblioteca Pública e que nos enchem os dedos de poeira. Não reclames, não. A poeira das bibliotecas é a verdadeira poeira dos séculos.
Vida Só a poesia possui as coisas vivas. O resto é necropsia.
Pensamentos extraídos do livro "Do Caderno H", Editora Globo - Porto Alegre, 1973, págs. diversas.
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... Olhar |
em 17/07/2007 13:47:07 (3970 leituras) |
“- quando olho as pessoas vejo-as sempre mortas, (pausa) - entram no teu olhar e ficam vagarosas a morrer? - não. É já mortas que as vejo - mesmo as que amaste? - nunca amei ninguém - não acredito - só poderia amar quem eu não visse morto. E isso ainda não aconteceu.” |
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Biografia de Rui Nunes |
em 17/07/2007 13:36:36 (4549 leituras) |
Escritor português e professor de Filosofia, Rui Nunes nascido em Novembro de 1947. Licenciou-se em Filosofia pela Universidade de Lisboa e enveredou pela actividade de escritor em paralelo com a de professor de Filosofia, na Escola Secundária Rainha D. Amélia, em Lisboa. Na década de 60, passou pelos jornais, tendo visto censurados muitos dos trabalhos. Com muitas dificuldades, publicou o seu primeiro livro As Margens em 1968, tendo que suportar as despesas da edição. Contudo, a sua actividade literária só assume continuidade a partir de 1976, quando, depois de ter regressado da Austrália, em 1974, publica Sauromaquia. Imprimindo à sua escrita um discurso de características próprias, Rui Nunes não nega a influência de escritores que a vida lhe foi permitindo conhecer, nomeadamente Kafka. Temas como a dor, a doença e a morte são recorrentes nos seus livros. Porém, e apesar desta temática recorrente que flúi na sua obra, o autor assume o acto de escrita como uma forma de sublimar a dor e com preciosos e comprovados (por ele) poderes terapêuticos. Por isso, gosta e tem prazer em escrever. Leitor da obra de Agustina Bessa-Luís, Maria Velho da Costa, Maria Gabriela Llansol e de José Saramago, entre outros. Rui Nunes aprecia também outros géneros artísticos, nomeadamente o cinema (Bergman) e a música (Barroca e Jazz), admitindo que estes podem suscitar-lhe o gosto pela escrita. Premiado, em 1992, com o Prémio do Pen Club Português de Ficção, atribuído ao seu livro Osculatriz, os seus novos títulos foram sempre, saudavelmente, apreciados pela crítica literária. Considerado por Manuel Frias, membro do Júri que atribuiu ao seu livro Grito, em 1998, o Prémio GPRN (Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores (APE)), "uma das estrelas mais brilhantes da constelação literária portuguesa - ocultada, tantas vezes pelas nuvens do fácil e do óbvio", Rui Nunes entende que o sucesso de um livro não se prende com a quantidade das vendas, mas sim com o "espaço de cumplicidade" entre autor e leitor que é capaz de criar |
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Volúpia |
em 14/07/2007 02:00:00 (4367 leituras) |
No divino impudor da mocidade, Nesse êxtase pagão que vence a sorte, Num frêmito vibrante de ansiedade, Dou-te meu corpo prometido à morte!
A sombra entre a mentira e a verdade... A nuvem que arrastou o vento norte... Meu corpo! Trago nele um vinho forte: Meus beijos de volúpia e de maldade!
Trago dálias vermelhas no regaço... São os dedos do sol quando te abraço, Cravados no teu peito como lanças!
E do meu corpo os leves arabescos Vão-te envolvendo em círculos dantescos Felinamente, em voluptuosas danças...
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De joelhos |
em 14/07/2007 02:00:00 (7414 leituras) |
"Bendita seja a Mãe que te gerou." Bendito o leite que te fez crescer. Bendito o berço aonde te embalou A tua ama, para te adormecer!
Bendita essa canção que acalentou Da tua vida o doce alvorecer... Bendita seja a Lua, que inundou De luz, a Terra, só para te ver...
Benditos sejam todos que te amarem, As que em volta de ti ajoelharem Numa grande paixão fervente e louca!
E se mais que eu, um dia, te quiser Alguém, bendita seja essa Mulher, Bendito seja o beijo dessa boca!
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Anseios |
em 14/07/2007 01:50:00 (4768 leituras) |
Meu doido coração aonde vais, No teu imenso anseio de liberdade? Toma cautela com a realidade; Meu pobre coração olha que cais!
Deixa-te estar quietinho! Não amais A doce quietação da soledade? Tuas lindas quimeras irreais, Não valem o prazer duma saudade!
Tu chamas ao meu seio, negra prisão! Ai, vê lá bem, ó doido coração, Não te deslumbres o brilho do luar!...
Não 'stendas tuas asas para o longe... Deixa-te estar quietinho, triste monge, Na paz da tua cela, a soluçar...
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Amar |
em 12/07/2007 23:31:22 (10410 leituras) |
Que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar? amar e esquecer, amar e malamar, amar, desamar, amar? sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso, sozinho, em rotação universal, senão rodar também, e amar? amar o que o mar traz à praia, o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha, é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto, o que é entrega ou adoração expectante, e amar o inóspito, o áspero, um vaso sem flor, um chão de ferro, e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta, distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas, doação ilimitada a uma completa ingratidão, e na concha vazia do amor à procura medrosa, paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa, amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
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Estrela da Tarde |
em 12/07/2007 12:10:00 (20882 leituras) |
Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia Era tarde, tão tarde, que a boca, tardando-lhe o beijo, mordia Quando à boca da noite surgiste na tarde tal rosa tardia
Quando nós nos olhámos tardámos no beijo que a boca pedia E na tarde ficámos unidos ardendo na luz que morria Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia Era tarde de mais para haver outra noite, para haver outro dia
Meu amor, meu amor Minha estrela da tarde Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde Meu amor, meu amor Eu não tenho a certeza Se tu és a alegria ou se és a tristeza Meu amor, meu amor Eu não tenho a certeza
Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram Dos nocturnos silêncios que à noite de aromas e beijos se encheram Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados não adormeceram E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram
Foram noites e noites que numa só noite nos aconteceram Era o dia da noite de todas as noites que nos precederam Era a noite mais clara daqueles que à noite amando se deram E entre os braços da noite de tanto se amarem, vivendo morreram
Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é riso, se é pranto É por ti que adormeço e acordo e acordado recordo no canto Essa tarde em que tarde surgiste dum triste e profundo recanto Essa noite em que cedo nasceste despida de mágoa e de espanto
Meu amor, nunca é tarde nem cedo para quem se quer tanto!
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Meu amor, meu amor |
em 12/07/2007 12:10:00 (7665 leituras) |
Meu amor meu amor meu corpo em movimento minha voz à procura do seu próprio lamento.
Meu limão de amargura meu punhal a escrever nós parámos o tempo não sabemos morrer e nascemos nascemos do nosso entristecer.
Meu amor meu amor meu nó e sofrimento minha mó de ternura minha nau de tormento
este mar não tem cura este céu não tem ar nós parámos o vento não sabemos nadar e morremos morremos devagar devagar.
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Ao longo da muralha... |
em 12/07/2007 12:10:00 (4552 leituras) |
Ao longo da muralha que habitamos Há palavras de vida há palavras de morte Há palavras imensas,que esperam por nós E outras frágeis,que deixaram de esperar Há palavras acesas como barcos E há palavras homens,palavras que guardam O seu segredo e a sua posição
Entre nós e as palavras,surdamente, As mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras e nocturnas palavras gemidos Palavras que nos sobem ilegíveis À boca Palavras diamantes palavras nunca escritas Palavras impossíveis de escrever Por não termos connosco cordas de violinos Nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar E os braços dos amantes escrevem muito alto Muito além da azul onde oxidados morrem Palavras maternais só sombra só soluço Só espasmos só amor só solidão desfeita
Entre nós e as palavras, os emparedados E entre nós e as palavras, o nosso dever falar.
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De noite... |
em 10/07/2007 18:40:00 (4347 leituras) |
De noite, amada, amarra teu coração ao meu e que eles no sonho derrotem as trevas como um duplo tambor combatendo no bosque contra o espesso muro das folhas molhadas. Noturna travessia, brasa negra do sonho. Interceptando o fio das uvas terrestres com pontualidade de um trem descabelado que sombra e pedras frias sem cessar arrastasse. Por isso, amor, amarra-me ao movimento puro, à tenacidade que em teu peito bate.
Com as asas de um cisne submergido, para que as perguntas estreladas do céu responda nosso sonho com uma só chave, com uma só porta fechada pela sombra.
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Desejo |
em 05/07/2007 19:30:00 (13996 leituras) |
Desejo a você... Fruto do mato Cheiro de jardim Namoro no portão Domingo sem chuva Segunda sem mau humor Sábado com seu amor Filme do Carlitos Chope com amigos Crônica de Rubem Braga Viver sem inimigos Filme antigo na TV Ter uma pessoa especial E que ela goste de você Música de Tom com letra de Chico Frango caipira em pensão do interior Ouvir uma palavra amável Ter uma surpresa agradável Ver a Banda passar Noite de lua Cheia Rever uma velha amizade Ter fé em Deus Não ter que ouvir a palavra não Nem nunca, nem jamais e adeus. Rir como criança Ouvir canto de passarinho Sarar de resfriado Escrever um poema de Amor Que nunca será rasgado Formar um par ideal Tomar banho de cachoeira Pegar um bronzeado legal Aprender uma nova canção Esperar alguém na estação Queijo com goiabada Pôr-do-Sol na roça Uma festa Um violão Uma seresta Recordar um amor antigo Ter um ombro sempre amigo Bater palmas de alegria Uma tarde amena Calçar um velho chinelo Sentar numa velha poltrona Tocar violão para alguém Ouvir a chuva no telhado Vinho branco Bolero de Ravel... E muito carinho meu.
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O Gondoleiro do Amor |
em 02/07/2007 18:00:00 (21131 leituras) |
TEUS OLHOS são negros, negros, Como as noites sem luar... São ardentes, são profundos, Como o negrume do mar;
Sobre o barco dos amores, Da vida boiando à flor, Douram teus olhos a fronte Do Gondoleiro do amor.
Tua voz é cavatina Dos palácios de Sorrento, Quando a praia beija a vaga, Quando a vaga beija o vento.
E como em noites de Itália Ama um canto o pescador, Bebe a harmonia em teus cantos O Gondoleiro do amor.
Teu sorriso é uma aurora Que o horizonte enrubesceu, — Rosa aberta com o biquinho Das aves rubras do céu;
Nas tempestades da vida Das rajadas no furor, Foi-se a noite, tem auroras O Gondoleiro do amor.
Teu seio é vaga dourada Ao tíbio clarão da lua, Que, ao murmúrio das volúpias, Arqueja, palpita nua:
Como é doce, em pensamento, Do teu colo no languor Vogar, naufragar, perder-se O Gondoleiro do amor!?
Teu amor na treva é — um astro, No silêncio uma canção, É brisa — nas calmarias, É abrigo — no tufão;
Por isso eu te amo, querida, Quer no prazer, quer na dor... Rosa! Canto! Sombra! Estrela! Do Gondoleiro do amor. |
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Hino ao Sono |
em 02/07/2007 17:55:41 (5636 leituras) |
Ó SONO! ó noivo pálido Das noites perfumosas, Que um chão de nebulosas Trilhas pela amplidão! Em vez de verdes pâmpanos, Na branca fronte enrolas As lânguidas papoulas, Que agita a viração.
Nas horas solitárias, Em que vagueia a lua, E lava a planta nua Na onda azul do mar, Com um dedo sobre os lábios No vôo silencioso, Vejo-te cauteloso No espaço viajar!
Deus do infeliz, do mísero! Consolação do aflito! Descanso do precito, Que sonha a vida em ti! Quando a cidade tétrica De angústia e dor não geme... É tua mão que espreme A dormideira ali.
Em tua branca túnica Envolves meio mundo... E teu seio fecundo De sonhos e visões, Dos templos aos prostíbulos, Desde o tugúrio ao Paço, Tu lanças lá no espaço Punhados de ilusões!...
Da vide o sumo rúbido, Do hatchiz a essência, O ópio, que a indolência Derrama em nosso ser, Não valem, gênio mágico, Teu seio, onde repousa A placidez da lousa E o gozo de viver...
Ó sono! Unge-me as pálpebras... Entorna o esquecimento Na luz do pensamento Que abrasa o crânio meu. Como o pastor da Arcádia, Que uma ave errante aninha... Minh'alma é uma andorinha... Abre-lhe o seio teu.
Tu, que fechaste as pétalas Do lírio, que pendia, Chorando a luz do dia E os raios do arrebol, Também fecha-me as pálpebras... Sem Ela o que é a vida? Eu sou a flor pendida Que espera a luz do sol.
O leite das eufórbias P'ra mim não é veneno... Ouve-me, ó Deus sereno! Ó Deus consolador! Com teu divino bálsamo Cala-me a ansiedade! Mata-me esta saudade, Apaga-me esta dor.
Mas quando, ao brilho rútilo Do dia deslumbrante, Vires a minha amante Que volve para mim, Então ergue-me súbito... É minha aurora linda... Meu anjo... mais ainda... É minha amante enfim!
Ó sono! Ó Deus noctívago! Doce influência amiga! Gênio que a Grécia antiga Chamava de Morfeu, Ouve!... E se minhas súplicas Em breve realizares... Voto nos teus altares Minha lira de Orfeu!
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Arma secreta |
em 09/09/2007 20:00:00 (8367 leituras) |
Tenho uma arma secreta ao serviço das nações. Não tem carga nem espoleta mas dispara em linha recta mais longe que os foguetões.
Não é Júpiter, nem Thor, nem Snark ou outros que tais. É coisa muito melhor que todo o vasto teor dos Cabos Canaverais.
A potência destinada às rotações da turbina não vem da nafta queimada, nem é de água oxigenada nem de ergóis de furalina.
Erecta, na noite erguida, em alerta permanente, espera o sinal da partida. Podia chamar-se VIDA. Chama-se AMOR, simplesmente.
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Amor vivo |
em 08/09/2007 23:00:00 (10925 leituras) |
Amar! Mas d'um amor que tenha vida... Não sejam sempre tímido a arpejos, Não sejam só delírios e desejos D'uma douda cabeça escandecida...
Amor que viva e brilhe! Luz fundida Que penetre o meu ser - e não só beijos Dados no ar - delírios e desejos - Mas amor... dos amores que têm vida...
Sim, vivo e quente! E já a luz do dia Não virá Dissipá-lo nos meus braços Como névoa de fantasia...
Nem murchará do sol à chama erguida... Pois que podem os astros dos espaços Contra débeis amores... se têm vida?
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A Mulher |
em 08/09/2007 22:50:00 (32885 leituras) |
I
Um ente de paixão e sacrifício, De sofrimento cheio, eis a mulher! Esmaga o coração dentro do peito, E nem te doas coração, sequer!
Sê forte, corajoso, não fraquejes Na luta: sê em Vénus sempre Marte; Sempre o mundo é vil e infame e os homens Se te sentem gemer hão-de pisar-te!
Se à vezes tu fraquejas, pobrezinho, Essa brancura ideal de puro arminho Eles deixam pra sempre maculada;
E gritam então vis: "Olhem, vejam É aquela a infame!" e apedrejam a pobrezita, a triste, a desgraçada!
II
Ó Mulher! Como é fraca e como és forte! Como sabes ser doce e desgraçada! Como sabes fingir quando em teu peito A tua alma se estorce amargurada!
Quantas morrem saudosas duma image Adorada que amaram doidamente! Quantas e quantas almas endoidecem Enquanto a boca ri alegremente!
Quanta paixão e amor às vezes têm Sem nunca o confessarem a ninguém Doces almas de dor e sofrimento!
Paixão que faria a felicidade Dum rei; amor de sonho e de saudade, Que se esvai e que foge num lamento!
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Eu |
em 08/09/2007 22:50:00 (5064 leituras) |
Até agora eu não me conhecia, Julgava que era Eu e eu não era Aquela que em meus versos descrevera Tão clara como a fonte e como o dia.
Mas que eu não era Eu não o sabia E, mesmo que o soubesse, o não dissera... Olhos fitos em rútila quimera Andava atrás de mim... E não me via!
Andava a procurar-me - pobre louca! - E achei o meu olhar no teu olhar, E a minha boca sobre a tua boca!
E esta ânsia de viver, que nada acalma, É a chama da tua alma a esbrasear as apagadas cinzas da minha alma!
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Rosas |
em 08/09/2007 22:50:00 (7129 leituras) |
Rosa! És a flor mais bela e mais gentil! Entre as flores que a natureza encerra! Bendito sejas tu, Ó mês de Abril Que de rosas inundas toda a terra!
Brancas, vermelhas ou da cor sombria Do desespero e do pezar mais fundo, Sois símbolo d'amor e d'alegria, Vós sois a obra-prima deste mundo!
Ao ver-vos tão bonitas e mimosas, Esqueço a minha dor, minha saudade, P'ra só vos contemplar, ó orgulhosas!
Eu abençoo então a Natureza E curvo-me ante vós com humildade, Ó rainhas da graça e da beleza!
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Há palavras que nos beijam |
em 08/09/2007 22:50:00 (9901 leituras) |
Há palavras que nos beijam Como se tivessem boca. Palavras de amor, esperança, De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas Quando a noite perde o rosto; Palavras que se recusam Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas Entre palavras sem cor, Esperadas inesperadas Como poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama Letra a letra revelado No mármore distraído No papel abandonado)
Palavras que nos transporta Aonde a noite é mais forte, Ao silêncio dos amantes Abraçados contra a morte.
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Viagem |
em 08/09/2007 22:47:59 (4447 leituras) |
Se eu voltasse a nascer, e as minhas mãos me ensinassem o caminho que vai do coração ao mundo, e os meus olhos me abrissem o círculo que o mar desenha no horizonte, e o meu nariz respirasse a luz que a manhã solta de dentro da névoa, e os meus lábios pedissem o pão de estrelas que as aves trocam entre si, e os meus passos me conduzissem para onde ninguém precisa de voltar, o tecido da minha vida seria transparente como o vidro da janela que não abro, o fio que vou puxando seria eterno como os números que contam os dias de um deus, a tesoura da noite ficaria na caixa que não precisei de abrir. Se eu voltasse a nascer, e as velas do sonho me envolvessem com o linho do seu vento. |
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Alegoria floral |
em 08/09/2007 22:47:23 (3176 leituras) |
Um dia em que a mulher nasça do caule da roseira que cresce no quintal; ou um dia em que a nuvem desça do céu para vestir de névoa os seus seios de flor: seguirei o caminho da água nos canteiros que me levam ao caule, e meter-me-ei pela terra em busca da raíz. Nesse dia em que os cabelos da mulher se confundirem com os fios luminosos que o sol faz passar pela folhagem; e em que um perfume de pólen se derramar no ar liberto da névoa: procurarei o fundo dos seus olhos, onde corre uma tranparência de ribeiro. Um dia irei tirar essa mulher de dentro da flor, despi-la das suas pétalas, e emprestar-lhe o véu da madrugada. Então, vendo-a nascer com o dia, desenharei nuvens com a cor dos seus lábios, e empurrá-las-ei para o mar com o vento brando da sua respiração. Depois, cobrirei essa mulher que nasceu da roseira com o lençol celeste; e vê-la-ei adormecer, como um botão de rosa, esperando que a nuvem desça do céu para a roubar ao sonho da flor.
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Flores |
em 08/09/2007 22:33:24 (4915 leituras) |
É nestas flores, em particular, que vejo desenhar-se uma linha que me leva de mim a ti, passando sobre um campo invisível, onde já não se ouvem os pássaros, e onde o vento não faz cair as folhas. Estamos em frente de um canteiro puramente abstracto, e cada uma destas flores nasceu das frases em que o amor se manifesta, e do movimento dos dedos sobre a pele, traçando um fio de horizonte em que os meus olhos se perdem. Por isso estão vivas, e alimentam-se da seiva que bebem nos teus lábios, quando os abres, e por instantes a vida inteira se resume ao sorriso que neles se esboça.
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Poetas |
em 08/09/2007 14:50:00 (2797 leituras) |
Ai as almas dos poetas Não as entende ninguém; São almas de violetas Que são poetas também.
Andam perdidas na vida, Como as estrelas no ar; Sentem o vento gemer Ouvem as rosas chorar!
Só quem embala no peito Dores amargas e secretas É que em noites de luar Pode entender os poetas
E eu que arrasto amarguras Que nunca arrastou ninguém Tenho alma pra sentir A dos poetas também!
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Alcoólicas (trechos) |
em 02/09/2007 01:50:00 (4032 leituras) |
I
É crua a vida. Alça de tripa e metal. Nela despenco: pedra mórula ferida. É crua e dura a vida. Como um naco de víbora. Como-a no livor da língua Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me No estreito-pouco Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida Tua unha plúmbea, meu casaco rosso. E perambulamos de coturno pela rua Rubras, góticas, altas de corpo e copos. A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos. E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima Olho d’água, bebida. A vida é líquida.
II
Também são cruas e duras as palavras e as caras Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos Vão se fazendo remansos, lentilhas d’água, diamantes Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte É um rei que nos visita e nos cobre de mirra. Sussurras: ah, a vida é líquida.
III
Alturas, tiras, subo-as, recorto-as E pairamos as duas, eu e a Vida No carmim da borrasca. Embriagadas Mergulhamos nítidas num borraçal que coaxa. Que estilosa galhofa. Que desempenados Serafins. Nós duas nos vapores Lobotômicas líricas, e a gaivagem se transforma em galarim, e é translúcida A lama e é extremoso o Nada. Descasco o dementado cotidiano E seu rito pastoso de parábolas. Pacientes, canonisas, muito bem-educadas Aguardamos o tépido poente, o copo, a casa.
Ah, o todo se dignifica quando a vida é líquida
IX
Se um dia te afastares de mim, Vida — o que não creio Porque algumas intensidades têm a parecença da bebida — Bebe por mim paixão e turbulência, caminha Onde houver uvas e papoulas negras (inventa-as) Recorda-me, Vida: passeia meu casaco, deita-te Com aquele que sem mim há de sentir um prolongado vazio. Empresta-lhe meu coturno e meu casaco rosso: compreenderá O porquê de buscar conhecimento na embriaguês da via manifesta. Pervaga. Deita-te comigo. Apreende a experiência lésbica: O êxtase de te deitares contigo. Beba. Estilhaça a tua própria medida.
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Amador sem coisa amada |
em 31/08/2007 15:40:00 (7156 leituras) |
Resolvi andar na rua com os olhos postos no chão. Quem me quiser que me chame ou que me toque com a mão.
Quando a angústia embaciar de tédio os olhos vidrados, olharei para os prédios altos, para as telhas dos telhados.
Amador sem coisa amada, aprendiz colegial. Sou amador da existência, não chego a profissional.
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O amor é uma companhia |
em 31/08/2007 15:30:00 (18778 leituras) |
O amor é uma companhia. Já não sei andar só pelos caminhos, Porque já não posso andar só. Um pensamento visível faz-me andar mais depressa E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo, E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar. Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas. Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona. Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.
Alberto Caeiro
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Dá-me a tua mão |
em 31/08/2007 15:21:13 (9329 leituras) |
Dá-me a tua mão, Deixa que a minha solidão prolongue mais a tua - para aqui os dois de mãos dadas nas noites estreladas, a ver os fantasmas a dançar na lua.
Dá-me a tua mão, companheira, atá o Abismo da Ternura Derradeira.
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O que me dói |
em 26/08/2007 00:40:00 (13086 leituras) |
O que me dói não é O que há no coração Mas essas coisas lindas Que nunca existirão... São as formas sem forma Que passam sem que a dor As possa conhecer Ou as sonhar o amor.
São como se a tristeza Fosse árvore e, uma a uma, Caíssem suas folhas Entre o vestígio e a bruma.
Fernando Pessoa, 5-9-1933
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Musa |
em 20/08/2007 15:12:47 (4516 leituras) |
Aqui me sentei quieta Com as mãos sobre os joelhos Quieta muda secreta Passiva como os espelhos
Musa ensina-me o canto Imanente e latente Eu quero ouvir devagar O teu súbito falar Que me foge de repente.
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A cor da rosa |
em 17/08/2007 18:20:00 (11860 leituras) |
Alvejava de neve outrora a rosa, Nem como agora, doce recendia; Baixo voava Amor sem tento um dia, E na rama espinhosa De sua flor virgínea se feria. Do sangue divina! gota amorosa Da ligeira ferida lhe corria, E as flores da roseira onde caía Tomavam do encarnado a cor lustrosa. Agora formosa A rúbida flor Recorda de Amor A chaga ditosa.
Para os braços da mãe voou chorando; Um beijo lhe acalmou penas e ardores: E tão doce o remédio achou das dores, Que Amor só desejou de quando em quando Que assim penando, Com seus clamores Novos favores Fosse alcançando.
Súbito voa, pelos ares fende; As rosas viu de sua dor trajadas, E que só de suas glórias namoradas Nada dissessem com razão se ofende: A mão lhe estende, E delicioso Cheiro amoroso Nelas recende.
Vós que as rosas gentis buscais, amantes, Nos jardins do prazer, E, em vez da flor, espinhos penetrantes Só chegais acolher, Resignados sofrei, sede constantes, Que a desventura, Que a mágoa e dor Sempre em doçura Converte Amor.
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Ao rosto vulgar dos dias |
em 17/08/2007 18:20:00 (5141 leituras) |
Monstros e homens lado a lado, Não à margem, mas na própria vida. Absurdos monstros que circulam Quase honestamente. Homens atormentados, divididos, fracos. Homens fortes, unidos, temperados. Ao rosto vulgar dos dias, A vida cada vez mais corrente, As imagens regressam já experimentadas, Quotidianas, razoáveis, surpreendentes.
Imaginar, primeiro, é ver. Imaginar é conhecer, portanto agir.
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Eu sou a concha das praias |
em 17/08/2007 18:10:00 (7000 leituras) |
Eu sou a concha das praias Que anda batida da onda E, de vaga em outra vaga, Não tem aonde se esconda. Mas se um menino, da areia A colher e a for guardar No seio... ali adormece E é ali seu descansar. Pois sou a concha da praia Que anda batida da onda... Sê tu esse seio infante, Aonde a triste se esconda!
Eu sou quem vaga perdido, Sob o sol, com passo incerto, Contando por suas dores As areias do deserto. Mas se um palmar, no horizonte, Se vê, súbito, surgir, Tem ali a tenda e a fonte E é ali o seu dormir. Pois sou quem vaga perdido, Sob o sol, com passo incerto... Sê tu sombra de palmeira, Sê-me tenda no deserto!
Sou o peito sequioso E o viúvo coração, Que em vão chama, em vão procura Outro peito, seu irmão. Mas se avista, um dia, a alma Por quem andou a chamar, Tem ali ninho e ventura E é ali o seu amar. Pois sou quem anda chorando À procura dum irmão... Sê tu a alma que me fale, Inda uma hora ao coração!
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Resposta a Vinícius de Moraes |
em 17/08/2007 18:00:00 (6950 leituras) |
Camarada diamante!
Não sou um diamante nato nem consegui cristalizá-lo: se ele te surge no que faço será um diamante opaco de quem por incapaz de vago quer de toda forma evitá-lo, senão com o melhor, o claro, do diamante, com o impacto: com a pedra, a aresta, com o aço do diamante industrial, barato, que incapaz de ser cristal raro vale pelo que tem de cacto.
(João Cabral de Melo Neto, p.390) |
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20 anos sem Drummond - Parte III |
em 15/08/2007 19:23:32 (2643 leituras) |
Mundo grande
Não, meu coração não é maior que o mundo. É muito menor. Nele não cabem nem as minhas dores. Por isso gosto tanto de me contar. Por isso me dispo, por isso me grito, por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias: preciso de todos.
Sim, meu coração é muito pequeno. Só agora vejo que nele não cabem os homens. Os homens estão cá fora, estão na rua. A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava. Mas também a rua não cabe todos os homens. A rua é menor que o mundo. O mundo é grande.
Tu sabes como é grande o mundo. Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão. Viste as diferentes cores dos homens, as diferentes dores dos homens, sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso num só peito de homem... sem que ele estale.
Fecha os olhos e esquece. Escuta a água nos vidros, tão calma, não anuncia nada. Entretanto escorre nas mãos, tão calma! Vai inundando tudo... Renascerão as cidades submersas? Os homens submersos – voltarão?
Meu coração não sabe. Estúpido, ridículo e frágil é meu coração. Só agora descubro como é triste ignorar certas coisas. (Na solidão de indivíduo desaprendi a linguagem com que homens se comunicam.)
Outrora escutei os anjos, as sonatas, os poemas, as confissões patéticas. Nunca escutei voz de gente. Em verdade sou muito pobre.
Outrora viajei países imaginários, fáceis de habitar, ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.
Meus amigos foram às ilhas. Ilhas perdem o homem. Entretanto alguns se salvaram e trouxeram a notícia de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias, entre o fogo e o amor.
Então, meu coração também pode crescer. Entre o amor e o fogo, entre a vida e o fogo, meu coração cresce dez metros e explode. – Ó vida futura! Nós te criaremos.
Carlos Drummond de Andrade |
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20 anos sem Drummond |
em 15/08/2007 19:22:30 (6058 leituras) |
TRECHOS DA ÚLTIMA ENTREVISTA que Carlos Drummond de Andrade concedeu ao jornalista Geneton Moares Neto (Jornal do Brasil).
Dezessete dias antes de dar adeus ao mundo, Carlos Drummond de Andrade confessava que tinha um único e prosaico medo: o de escorregar, levar uma queda boba e quebrar o fêmur. A confissão é exemplar do temperamento do maior poeta brasileiro. Quem batesse à porta do apartamento 701 do prédio de número 60 da Rua Conselheiro Lafayette, em Copacabana, à procura de declarações grandiloqüentes sobre a vida, a arte e a eternidade iria se deparar com um homem teimosamente prosaico, despido de todo e qualquer traço de vaidade e orgulho diante de uma obra que começou a brotar em Itabira para o mundo em 1918, ano da publicação de um poema chamado Prosa, num jornalzinho que só saiu uma vez.
O Drummond que se revela de corpo inteiro na longa entrevista que nos concedeu em duas sessões - nos dias 20 e 30 de julho - é um homem desiludido com o mundo. Agnóstico. Confessadamente solitário. Cético diante da posteridade. Injustamente rigoroso no julgamento da obra que produziu. Para todos os efeitos, Drummond considerava-se apenas o pacífico mineiro de Itabira portador da carteira de identidade no 803.412. E só. Tinha uma íntima esperança: queria ver a filha única, a escritora Maria Julieta, recuperada da doença. Tanto é que tentou adiar a entrevista para ‘quando as coisas melhorassem’. Não melhoraram. Os azares de agosto desabaram sobre os ombros frágeis do poeta. O câncer ósseo levou Maria Julieta. E tirou do poeta a vontade de viver. A imagem do Drummond cambaleante nas alamedas do cemitério no enterro da filha única era um mau presságio.
Reprodução das páginas centrais do suplemento 'Idéias', do JB, com trechos da última entrevista de Drummond. Menos de uma semana antes da morte da filha, Drummond, enfim, cedera à nossa insistência em obter um longo depoimento - não sem, antes, brindar-nos com o dúbio qualitativo de ‘implacável’. A entrevista fazia parte do projeto de publicação de um livro de depoimentos sobre os 60 anos do célebre poema No meio do caminho, no próximo ano. Drummond, naturalmente, não concordava nem de longe com a idéia de homenagear a data. ‘Não vale a pena; a data não merece consideração alguma’. Mas, provocado, falou como em poucas vezes: o depoimento, transcrito, rendeu cerca de mil linhas datilografadas. Um trecho - que antecipava a decisão do poeta de deixar de escrever - foi publicado no Idéias há duas semanas. Depois da morte da filha, Drummond tentou sustar a publicação da entrevista porque a considerava ‘muito festiva’. Acabou permitindo, sob a condição de que o editor avisasse que ela tinha sido concedida antes da morte de Maria Julieta. Em poucos dias, a entrevista transformou-se na cerimônia de adeus do maior poeta brasileiro. Mais do que nunca, neste depoimento, Drummond insiste que será esquecido em pouco tempo. Não será. E não terá sido por acaso que o clima no seu enterro não era propriamente de comoção. Porque todo mundo ali sabia que, nos versos, Drummond vive. E, na morte, encontrou o que tanto queria: a paz.
O MEDO
“A maior chateação da velhice é você ficar privado do uso completo de suas faculdades. A pessoa velha tem de moderar o ritmo do andar, porque, do contrário, o coração começa a pular. Não pode fazer grandes excessos. Não tomar um pileque de vez em quando porque isso provocará consequências maléficas. Ela tem de ser moderada até nos amores. “O medo que tenho é levar uma queda, me machucar, quebrar a cabeça, coisas assim, porque, na idade em que estou, a primeira coisa que acontece numa queda é a fratura do fêmur. Isso eu receio”.
“...Cantaremos o medo da morte/ depois morreremos de medo/ e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas” (Congresso Internacional do Medo - trecho)
A QUEIXA
“Antes, as pessoas que sabiam escrever a língua se destacavam na literatura e nas artes em geral. Mas hoje há escritores premiados que não conhecem a língua natal... “Quem hoje não sabe a língua e se manifesta mal é que aprendeu de maus professores. A decadência do ensino no Brasil é uma coisa que tem pelo menos trinta a quarenta anos - e talvez mais”.
“Precisamos educar o Brasil/ Compraremos professores e livros/ assimilaremos finas culturas/ abriremos dancings e subvencionaremos as elites/ Cada brasileiro terá sua casa/ com fogão e aquecedor elétrico, piscina/ salão para conferências científicas./ E cuidaremos do Estado Técnico” (Hino Nacional - trecho)
A VIDA
“Minha vida? Acho que foi pouco interessante. O que é que eu fui? Fui um burocrata, um jornalista burocratizado. Não tive nenhum lance importante na minha vida. Nunca exerci um cargo que me permitisse tomar uma grande decisão política ou social ou econômica. Nunca nenhum destino ficou dependendo da minha vida ou do meu comportamento ou da minha atitude. “Eu me considero - e sou realmente - um homem comum. Não dirijo nenhuma empresa pública ou privada. A sorte dos trabalhadores não depende de mim”.
“Sou apenas um homem/ Um homem pequenino à beira de um rio/ Vejo as águas que passam e não as compreendo/ ...Sou apenas o sorriso na face de um homem calado” (América - trecho)
O PAÍS
“Eu lamento que haja pouco consumo de livro no Brasil. Mas aí é um problema muito mais grave. É o problema da deseducação, o problema da pobreza - e, portanto, o da falta de nutrição e da falta de saúde. Antes de um escritor se lamentar porque não é lido como são lidos os escritores americanos ou europeus, ele deve se lamentar de pertencer a um país em que há tanta miséria e tanta injustiça social”.
“Precisamos descobrir o Brasil/ Escondido atrás das florestas/ com a água dos rios no meio/ o Brasil está dormindo, coitado” (Hino Nacional - trecho)
O VOTO
“Acho o Partido Verde muito limitado. Por que somente verde? Eu seria partidário de todas as cores do arco-íris - do vermelho vivo do sangue que palpita nas artérias ao azul do céu. O Partido que gostaria de ver implantado no Brasil, com condições de assumir o poder ou de partilhar o poder com partidos mais burgueses seria o Partido Socialista. “Quando há eleição, não voto mais. Deixei de votar, porque me desinteressei. Deixei de votar porque a lei me faculta deixar de votar aos setenta anos. Ainda votei, até os oitenta e poucos. Depois, verifiquei que o quadro político não agradava nem me seduzia. As opções não eram agradáveis para mim”.
“Eu também já fui brasileiro/ moreno como vocês/ Ponteei viola, guiei forde/ e aprendi na mesa dos bares/ que o nacionalismo é uma virtude/ Mas há uma hora em que os bares se fecham/ e todas as virtudes se negam” (Também já fui brasileiro - trecho)
A BELEZA
“A beleza ainda me emociona muito. Não só a beleza física, mas a beleza natural. Hoje, com quase oitenta e cinco anos, tenho uma visão da natureza muito mais rica do que eu tinha quando era jovem. Eu reparava mais em certas formas de beleza. Mas, hoje, a natureza, para mim, é um repertório surpreendente de coisas magníficas e coisas belas. Contemplar o vôo do pássaro, contemplar uma pomba ou uma rolinha que pousa na minha janela... Fico estático vendo a maravilha que é aquele bichinho que voou para cima de mim, à procura de comida ou de nem sei o quê. A inter-relação dos seres vivos e a integração dos seres vivos no meio natural, para mim, é uma coisa que considero sublime”.
“Amar um passarinho é uma coisa louca/ Gira livre na longa azul gaiola/ que o peito me constrange/ enquanto a pouca liberdade de amar logo se evola... O passarinho baixa a nosso alcance/ e na queda submissa o vôo segue/ e prossegue sem asas, pura ausência” (Sonetos do pássaro - trecho)
A SOLIDÃO
“Se eu me sinto solitário? Em parte, sim, porque perdi meus pais e meus irmãos todos. Nós éramos seis irmãos. E, em parte, porque perdi também amigos da minha mocidade, como Pedro Nava, Mílton Campos, Emílio Moura, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Gustavo Capanema e outros que faziam parte da minha vida anterior, a mais profunda. Isso me dá um sentimento de solidão. Por outro lado, a solidão em si é muito relativa. Uma pessoa que tem hábitos intelectuais ou artísticos, uma pessoa que gosta de música, uma pessoa que gosta de ler nunca está sozinha. Ela terá sempre uma companhia: a companhia imensa de todos os artistas, todos os escritores que ela ama, ao longo dos séculos”.
“Precisava de um amigo/ desses calados, distantes,/ que lêem verso de Horácio/ mas secretamente influem/ na vida, no amor, na carne/ Estou só, não tenho amigo/ E a essa hora tardia/ como procurar um amigo?” (A bruxa - trecho)
A POESIA
“Não lamento, na minha carreira intelectual, nada que tenha deixado de fazer. Não fiz muita coisa. Não fiz nada organizado. Não tive um projeto de vida literária. As coisas foram acontecendo ao sabor da inspiração e do acaso. Não houve nenhuma programação. Não tendo tido nenhuma ambição literária, fui mais poeta pelo desejo e pela necessidade de exprimir sensações e emoções que me perturbavam o espírito e me causavam angústia. Fiz da minha poesia um sofá de analista. É esta a minha definição do meu fazer poético. Não tive a pretensão de ganhar prêmios ou de brilhar pela poesia ou de me comparar com meus colegas poetas. Pelo contrário. Sempre admirei muito os poetas que se afinavam comigo. Mas jamais tive a tentação de me incluir entre eles como um dos tais famosos. Não tive nada a me lamentar. Também não tenho nada do que me gabar. De maneira nenhuma. Minha poesia é cheia de imperfeições. Se eu fosse crítico, apontaria muitos defeitos. Não vou apontar. Deixo para os outros. Minha obra é pública. “Mas eu acho que chega. Não quero inundar o mundo com minha poesia. Seria uma pretensão exagerada”.
“Não serei o poeta de um mundo caduco/ Também não cantarei o mundo futuro/ Estou preso à vida e olho meus companheiros/ Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças” (Mãos dadas - trecho)
A CRIAÇÃO
“Pelo menos na minha experiência pessoal, há uma emoção grande e uma alegria no momento de escrever o poema. Uma vez feito, é como o ato amoroso. Você sente o orgasmo, sai a poluição e depois aquilo acabou. Fica a lembrança agradável, mas você não pode dizer que aquele orgasmo foi melhor do que o outro! O mecanismo não é o mesmo, a reação não é a mesma”.
“É sempre no passado aquele orgasmo/ é sempre no presente aquele duplo/ é sempre no futuro aquele pânico/ É sempre no meu peito aquela garra/ É sempre no meu tédio aquele aceno/ É sempre no meu sono aquela guerra” (O enterrado vivo - trecho)
A NOVA REPÚBLICA
“Não teria cabimento eu escrever uma Constituição (ri). Não tenho a menor intenção e esta idéia nunca me passou pela cabeça. A Constituição de que eu mais gostaria é esta - ‘Artigo primeiro: Não há artigo primeiro. Artigo segundo: também não há artigo segundo. Parágrafo. Revogam-se as disposições em contrário’. Nem sei quem é o autor desta idéia. “O Brasil está vivendo um fase de profunda inquietação e transformação de valores. É cedo para julgar um político, um presidente, um ministro. Nós estamos - ao mesmo tempo - participando da ação e querendo ser juízes. O observador, o participante, nunca é o juiz. A gente pode julgar o marechal Deodoro da Fonseca porque nós já sabemos no que deu a República com quase cem anos. Então, é uma figura histórica. Mas julgar historicamente e moralmente um nosso contemporâneo me parece uma das coisas mais difíceis de fazer. Não tenho opinião a respeito. “O poeta não se situa em nenhuma república. O poeta se situa como poeta”.
“O que desejei é tudo/ Retomai minhas palavras/ meus bens, minha inquietação/ fazei o canto ardoroso/ cheio de antigo mistério/ mas límpido e resplendente” (Cidade prevista - trecho)
O ESTADO NOVO
“A minha relação com o poder foi uma relação amistosa com o ministro Gustavo Capanema, pelo fato de nós sermos companheiros antigos. Nunca participei do poder. Nunca desejei. Nunca teria vocação. Eu era da estrita confiança do ministro. Esculhambavam-me e acusavam-me de fazer favoritismo político e de arranjar nomeação de pessoas para falarem bem de mim nos jornais, o que é absolutamente falso. Eu não tinha poder! E eu não trairia a confiança de Gustavo Capanema (ministro da Educação do primeiro governo de Getúlio Vargas) fazendo coisas assim. Nunca tive a oportunidade de conversar com Getúlio, embora fosse acusado de poeta ligado ao Estado Novo. Eu não tinha nada com o Estado Novo. Nunca participei de homenagens ao governo. E saí de lá com as mãos abanando”.
“Tenho apenas duas mãos/ e o sentimento do mundo/ mas estou cheio de escravos” (Sentimento do mundo - trecho)
A ACADEMIA
“A Academia nunca me inspirou desprezo. Não posso desprezá-la porque não acho que é uma instituição digna de desprezo. O que há é o seguinte: não tenho espírito acadêmico, não tenho a tendência para ser acadêmico. A Academia, então, não me produz uma sensação de desprezo nem de desgosto. Apenas relativo distanciamento. Mas devo assinalar que, dentro da Academia, estão alguns dos meus melhores amigos. São companheiros de juventude, como Afonso Arinos, Abgar Renaut, Ciro dos Anjos - que não é só meu amigo: é meu compadre. Não tenho nada individualmente contra os acadêmicos. Acredito que - sendo uma instituição composta por quarenta pessoas - dificilmente, em qualquer lugar do mundo, essas quarenta pessoas serão bons escritores. Haverá, sempre, uma parcela de escritores menores e, até, de maus escritores”.
“Ah, não me tragam originais/ para ler, para corrigir, para louvar/ sobretudo, para louvar/ Não sou leitor nem espelho/ de figuras que amam refletir-se no outro/ à falta de retrato interior” (Apelo aos meus dessemelhantes em favor da paz - trecho)
O JORNALISMO
“Trabalhei na imprensa durante a minha vida toda, com um ligeiro intervalo em que me dediquei só à burocracia do Ministério da Educação. Sempre tive muita consideração dos meus companheiros. E muita liberdade. Mas me recordo que, há tempos atrás, num momento de molecagem, para testar a resistência do copy-desk, no Jornal do Brasil, escrevi a palavra bunda. Cortaram e botaram a palavra traseiro. Hoje, a palavra bunda circula até em fotografia, em desenho, por toda parte. Uma das coisas mais celebradas pela grande imprensa é a bunda. A televisão está lá - mostrando bunda de homem, o que, a nós, não interessa... “Não participei da elaboração do grande jornal diário e intenso. Como cronista, escrevia em casa. O jornal, gentilmente, mandava apanhar a minha matéria. Como jornalista, não tive a emoção da grande reportagem e dos grandes acontecimentos que eu teria de enfrentar numa fração de segundo para que a matéria saísse no dia seguinte”.
“O fato ainda não acabou de acontecer/ E já a mão nervosa do repórter o transforma em notícia/ O marido está matando a mulher/ A mulher ensanguentada grita/ Ladrões arrombam o cofre/ A polícia dissolve o meeting/ A pena escreve/ Vem da sala de linotipos a doce música mecânica” (Poema do jornal)
A VOCAÇÃO
“Eu acredito que a poesia tenha sido uma vocação, embora não tenha sido uma vocação desenvolvida conscientemente ou intencionalmente. Minha motivação foi esta: tentar resolver, através de versos, problemas existenciais internos. São problemas de angústia, incompreensão e inadaptação ao mundo”.
“Quando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida” (Poema de Sete Faces - trecho)
ADEUS
“Quem é que fala hoje em Humberto de Campos? Quem é que fala em Emílio de Menezes? Quem é que fala em Goulart de Andrade? Quem é que fala em Luís Edmundo? Ninguém se recorda deles! Não fica nada! É engraçado. Mas não fica, não. Não tenho a menor ilusão. E não me aborreço: acho muito natural. É assim mesmo que é a vida. “Não vou dizer como o Figueiredo: ‘Quero que me esqueçam!’ Podem falar. Não me interessa, porque não acredito na vida eterna. Para mim, é indiferente. “Nenhum poema meu entrou para a História do Brasil. O que aconteceu foi o seguinte: ficaram como modismos e como frases feitas: ‘tinha uma pedra no meio do caminho’ e ‘e agora, José?’. Que eu saiba, só. Mais nada. “Não tenho a menor pretensão de ser eterno. Pelo contrário: tenho a impressão de que daqui a vinte anos eu já estarei no Cemitério de São João Baptista. Ninguém vai falar de mim, graças a Deus. O que eu quero é paz”.
“Quero a paz das estepes/ a paz dos descampados/ a paz do Pico de Itabira/ quando havia Pico de Itabira/ A paz de cima das Agulhas Negras/ A paz de muito abaixo da mina mais funda e esboroada de Morro Velho/ A paz da paz” (Apelo a meus dessemelhantes em favor da paz - trecho)
Fonte: Memória Viva de Carlos Drummond de Andrade |
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Meu ser evaporei na lida insana |
em 14/08/2007 18:00:00 (24357 leituras) |
Meu ser evaporei na lida insana Do tropel de paixões, que me arrastava; Ah! cego eu cria, ah! mísero eu sonhava Em mim quase imortal a essência humana.
De que inúmeros sóis a mente ufana Existência falaz me não dourava! Mas eis sucumbe a Natureza escrava Ao mal, que a vida em sua orgia dana.
Prazeres, sócios meus, e meus tiranos! Esta alma, que sedenta em si não coube, No abismo vos sumiu dos desenganos.
Deus, oh Deus!... Quando a morte à luz me roube, Ganhe um momento o que perderam anos, Saiba morrer o que viver não soube.
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Atitude |
em 13/08/2007 22:10:00 (6146 leituras) |
Minha esperança perdeu seu nome... Fechei meu sonho, para chamá-la. A tristeza transfigurou-me como o luar que entra numa sala.
O último passo do destino parará sem forma funesta, e a noite oscilará como um dourado sino derramando flores de festa,
Meus olhos estarão sobre espelhos, pensando nos caminhos que existem dentro das coisas transparentes.
E um campo de estrelas irá brotando atrás das lembranças ardentes.
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O Poeta Inventa Viagem, retorno e Morre de Saudade |
em 11/08/2007 12:50:00 (4430 leituras) |
Se for possível, manda-me dizer:
- É lua cheia. A casa está vazia -
Manda-me dizer, e o paraíso
Há de ficar mais perto, e mais recente
Me há de parecer teu rosto incerto.
Manda-me buscar se tens o dia
Tão longo como a noite. Se é verdade
Que sem mim só vês monotonia.
E se te lembras do brilho das marés
De alguns peixes rosados
Numas águas
E dos meus pés molhados, manda-me dizer:
- É lua nova -
E revestida de luz te volto a ver.
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Árias Pequenas.para Bandolim |
em 11/08/2007 12:30:00 (3022 leituras) |
Antes que o mundo acabe, Túlio,
Deita-te e prova
Esse milagre do gosto
Que se fez na minha boca
Enquanto o mundo grita
Belicoso. E ao meu lado
Te fazes árabe, me faço israelita
E nos cobrimos de beijos
E de flores
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Plano |
em 03/08/2007 19:50:00 (4028 leituras) |
Trabalho o poema sobre uma hipótese: o amor que se despeja no copo da vida, até meio, como se o pudéssemos beber de um trago. No fundo, como o vinho turvo, deixa um gosto amargo na boca. Pergunto onde está a transparência do vidro, a pureza do líquido inicial, a energia de quem procura esvaziar a garrafa; e a resposta são estes cacos que nos cortam as mãos, a mesa da alma suja de restos, palavras espalhadas num cansaço de sentidos. Volto, então, à primeira hipótese. O amor. Mas sem o gastar de uma vez, esperando que o tempo encha o copo até cima, para que o possa erguer à luz do teu corpo e veja, através dele, o teu rosto inteiro.
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O amor é o amor |
em 01/08/2007 17:30:00 (5459 leituras) |
O amor é o amor - e depois? Vamos ficar os dois a imaginar, a imaginar?...
O meu peito contra o teu peito cortando o mar, cortando o ar. Num leito há todo o espaço para amar!
Na nossa carne estamos sem destino, sem medo, sem pudor, e trocamos - somos um? somos dois? - espírito e calor!
O amor é o amor - e depois?
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Redacção |
em 01/08/2007 17:00:00 (3396 leituras) |
Uma senhora pediu-me um poema de amor.
Não de amor por ela, mas «de amor, de amor».
À parte aquelas trivialidades «minha rosa, lua do meu céu interior» que podia eu dizer para ela, a não destinatária, que não fosse por ela?
Sem objecto, o poema é uma redacção dos 100 Modelos de Cartas de Amor.
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Dos Milagres |
em 01/08/2007 16:10:00 (5867 leituras) |
O milagre não é dar vida ao corpo extinto,
Ou luz ao cego, ou eloquência ao mudo...
Nem mudar água pura em vinho tinto...
Milagre é acreditarem nisso tudo
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Folhas de Rosa |
em 01/08/2007 13:30:00 (5356 leituras) |
Todas as prendas que me deste, um dia, Guardei-as, meu encanto, quase a medo, E quando a noite espreita o pôr-do-sol, Eu vou falar com elas em segredo ...
E falo-lhes d'amores e de ilusões, Choro e rio com elas, mansamente... Pouco a pouco o perfume do outrora Flutua em volta delas, docemente ...
Pelo copinho de cristal e prata Bebo uma saudade estranha e vaga, Uma saudade imensa e infinita Que, triste, me deslumbra e m'embriaga
O espelho de prata cinzelada, A doce oferta que eu amava tanto, Que reflectia outrora tantos risos, E agora reflecte apenas pranto,
E o colar de pedras preciosas, De lágrimas e estrelas constelado, Resumem em seus brilhos o que tenho De vago e de feliz no meu passado...
Mas de todas as prendas, a mais rara, Aquela que mals fala à fantasia, São as folhas daquela rosa branca Que a meus pés desfolhaste, aquele dia...
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Só |
em 01/08/2007 13:30:00 (4623 leituras) |
Eu tenho pena da Lua! Tanta pena, coitadinha, Quando tão branca, na rua A vejo chorar sozinha!...
As rosas nas alamedas, E os lilases cor da neve Confidenciam de leve E lembram arfar de sedas
Só a triste, coitadinha... Tão triste na minha rua Lá anda a chorar sozinha ...
Eu chego então à janela: E fico a olhar para a lua... E fico a chorar com ela! ...
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Congresso internacional do medo |
em 28/07/2007 10:45:10 (7619 leituras) |
Provisoriamente não cantaremos o amor, que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos. Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços, não cantaremos o ódio porque este não existe, existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro, o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos, o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas, cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas, cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte, depois morreremos de medo e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas
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Preparação para a morte |
em 28/07/2007 01:50:00 (26218 leituras) |
A vida é um milagre. Cada flor, Com sua forma, sua cor, seu aroma, Cada flor é um milagre. Cada pássaro, Com sua plumagem, seu vôo, seu canto, Cada pássaro é um milagre. O espaço, infinito, O espaço é um milagre. A memória é um milagre. A consciência é um milagre. Tudo é milagre. Tudo, menos a morte. – Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.
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Cantares de sem nome e de partida |
em 22/07/2007 13:50:00 (4974 leituras) |
Ó tirânico Amor, ó caso vário Que obrigas um querer que sempre seja De si contínuo e áspero adversário... Luiz Vaz de Camões
Cubram-lhe o rosto, meus olhos ofuscam-se; ela morreu jovem. John Webster
I
Que este amor não me cegue nem me siga. E de mim mesma nunca se aperceba. Que me exclua do estar sendo perseguida E do tormento De só por ele me saber estar sendo. Que o olhar não se perca nas tulipas Pois formas tão perfeitas de beleza Vêm do fulgor das trevas. E o meu Senhor habita o rutilante escuro De um suposto de heras em alto muro.
Que este amor me faça descontente E farta de fadigas. E de fragilidades tantas Eu me faça pequena. E diminuta e tenra Como só soem ser aranhas e formigas.
Que este amor só me veja de partida.
II
E só me veja
No não merecimento das conquistas. De pé. Nas plataformas, nas escadas Ou através de umas janelas baças: Uma mulher no trem: perfil desabitado de carícias E só me veja no não merecimento e interdita: Papéis, valises, tomos, sobretudos
Eu-alguém travestida de luto. (E um olhar de púrpura e desgosto, vendo através de mim navios e dorsos).
Dorsos de luz de águas mais profundas. Peixes. Mas sobre mim, intensas, ilhargas juvenis Machucadas de gozo.
E que jamais perceba o rocio da chama: Este molhado fulgor sobre o meu rosto.
III
Isso de mim que anseia despedida (Para perpetuar o que está sendo) Não tem nome de amor. Nem é celeste Ou terreno. Isso de mim é marulhoso E tenro. Dançarino também. Isso de mim É novo: Como que come o que nada contém. A impossível oquidão de um ovo. Como se um tigre Reversivo, Veemente de seu avesso Cantasse mansamente.
Não tem nome de amor. Nem se parece a mim. Como pode ser isso? Ser tenro, marulhoso Dançarino e novo, ter nome de ninguém E preferir ausência e desconforto Para guardar no eterno o coração do outro.
IV
E por que, também não doloso e penitente? Dolo pode ser punhal. E astúcia, logro. E isso sem nome, o despedir-se sempre Tem muito de sedução, armadilhas, minúcias Isso sem nome fere e faz feridas. Penitente e algoz: Como se só na morte abraçasses a vida.
É pomposo e pungente. Com ares de santidade Odores de cortesã, pode ser carmelita ou Catarina, ser menina ou malsã.
Penitente e doloso Pode ser o sumo de um instante. Pode ser tu-outro pretendido, teu adeus, tua sorte. Fêmea-rapaz, ISSO sem nome pode ser um todo Que só se ajusta ao Nunca. Ao Nunca Mais.
V
O Nunca Mais não é verdade. Há ilusões e assomos, há repentes De perpetuar a Duração. O Nunca Mais é só meia-verdade: Como se visses a ave entre a folhagem E ao mesmo tempo não. (E antevisses Contentamento e morte na paisagem).
O Nunca Mais é de planície e fendas. É de abismos e arroios. É de perpetuidade no que pensas efêmero E breve e pequenino No que sentes eterno.
Nem é corvo ou poema o Nunca Mais.
VI
Tem nome veemente. O Nunca mais tem fome. De formosura, desgosto, ri E chora. Um tigre passeia o Nunca Mais Sobre as paredes do gozo. Um tigre te persegue. E perseguido és novo, devastado e outro. Pensas comicidade no que é breve: paixão? Há de se diluir. Molhaduras, lençóis E de fartar-se, O nojo. Mas não. Atado à tua própria envoltura Manchado de quimeras, passeias teu costado.
O Nunca Mais é a fera.
VII
Rios de rumor: meu peito te dizendo adeus. Aldeia é o que sou. Aldeã de conceitos Porque me fiz tanto de ressentimentos Que o melhor é partir. E te mandar escritos. Rios de rumor no peito: que te viram subir A colina de alfafas, sem éguas e sem cabras Mas com a mulher, aquela, Que sempre diante dela me soube tão pequena. Sabenças? Esqueci-as. Livros? Perdi-os. Perdi-me tanto em ti Que quando estou contigo não sou vista E quando estás comigo vêem aquela.
VIII
Aquela que não te pertence por mais queira (Porque ser pertencente É entregar a alma a uma Cara, a de áspide Escura e clara, negra e transparente), Ai! Saber-se pertencente é ter mais nada. É ter tudo também. É como ter o rio, aquele que deságua Nas infinitas águas de um sem-fim de ninguéns. Aquela que não te pertence não tem corpo. Porque corpo é um conceito suposto de matéria E finito. E aquela é luz. E etérea.
Pertencente é não ter rosto. É ser amante De um Outro que nem nome tem. Não é Deus nem Satã. Não tem ilharga ou osso. Fende sem ofender. É vida e ferida ao mesmo tempo, "Esse" Que bem me sabe inteira pertencida.
IX
Ilharga, osso, algumas vezes é tudo o que se tem. Pensas de carne a ilha, e majestoso o osso. E pensas maravilha quando pensas anca Quando pensas virilha pensas gozo. Mas tudo mais falece quando pensas tardança E te despedes. E quando pensas breve Teu balbucio trêmulo, teu texto-desengano Que te espia, e espia o pouco tempo te rondando a ilha. E quando pensas VIDA QUE ESMORECE. E retomas Luta, ascese, e as mós vão triturando Tua esmaltada garganta... Mesmo assim mesmo Canta! Ainda que se desfaçam ilhargas, trilhas... Canta o começo e o fim. Como se fosse verdade A esperança.
X
Como se fosse verdade encantações, poemas Como se Aquele ouvisse arrebatado Teus cantares de louca, as cantigas da pena. Como se a cada noite de ti se despedisse Com colibris na boca. E candeias e frutos, como se fosses amante E estivesses de luto, e Ele, o Pai Te fizesse porisso adormecer... (Como se se apiedasse porque humana És apenas poeira, E Ele o grande Tecelão da tua morte: a teia).
Como se fosse vão te amar e por isso perfeito. Amar o perecível, o nada, o pó, é sempre despedir-se. E não é Ele, o Fazedor, o Artífice, o Cego O Seguidor disso sem nome? ISSO...
O amor e sua fome.
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Esperança |
em 18/07/2007 00:10:00 (7979 leituras) |
Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano Vive uma louca chamada Esperança E ela pensa que quando todas as sirenas Todas as buzinas Todos os reco-recos tocarem Atira-se E — ó delicioso vôo! Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada, Outra vez criança... E em torno dela indagará o povo: — Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes? E ela lhes dirá (É preciso dizer-lhes tudo de novo!) Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam: — O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...
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Verão |
em 17/07/2007 13:47:29 (3470 leituras) |
VERÃO
a paisagem dissolve-se na cintilação. Cresce a cobra na vereda de som a explodir na carqueja. Fecha-se a poeira gota a gota na luz. Abre-se na pedra a ruga. O seu gume sorri na boca. Um nome suporta a voz. A trepadeira. |
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Caminho |
em 17/07/2007 13:40:00 (5989 leituras) |
Há mentiras de mais e compromissos (Poemas são palavras recompostas) E por tantas perguntas sem respostas Mascara-se a verdade com postiços.
Não vida, nem sombra, nem razão, É jaula de doidice furiosa, Eriçada de gritos, angulosa, Com estilhaços de vidro pelo chão.
E carrego de mais esta jornada E protestos não servem, nem suores, Já mordidos os membros de tremores, Já vencida a bandeira e arrastada.
Depois se me apagaram os amores Que a viagem fizeram desejada.
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As palavras que te envio são interditas |
em 15/07/2007 02:40:00 (5572 leituras) |
As palavras que te envio são interditas até, meu amor, pelo halo das searas; se alguma regressasse, nem já reconhecia o teu nome nas suas curvas claras.
Dói-me esta água, este ar que se respira, dói-me esta solidão de pedra escura, estas mãos nocturnas onde aperto os meus dias quebrados na cintura.
E a noite cresce apaixonadamente. Nas suas margens nuas, desoladas, cada homem tem apenas para dar um horizonte de cidades bombardeadas.
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Amiga |
em 14/07/2007 02:00:00 (4126 leituras) |
Deixa-me ser a tua amiga, Amor, A tua amiga só, já que não queres Que pelo teu amor seja a melhor, A mais triste de todas as mulheres.
Que só, de ti, me venha mágoa e dor O que me importa a mim?! O que quiseres É sempre um sonho bom! Seja o que for, Bendito sejas tu por mo dizeres!
Beija-me as mãos, Amor, devagarinho... Como se os dois nascêssemos irmãos, Aves cantando, ao sol, no mesmo ninho...
Beija-mas bem!... Que fantasia louca Guardar assim, fechados, nestas mãos, Os beijos que sonhei p'rà minha boca!...
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Doce certeza |
em 14/07/2007 02:00:00 (4932 leituras) |
Por essa vida fora hás-de adorar Lindas mulheres, talvez; em ânsia louca, Em infinito anseio hás-de beijar Estrelas d'oiro fulgindo em muita boca!
Hás-de guardar em cofre perfumado Cabelos d'oiro e risos de mulher, Muito beijo de amor apaixonado; E não te lembrarás de mim sequer!...
Hás-de tecer uns sonhos delicados... Hão-de por muitos olhos magoados, Os teus olhos de luz andar imersos!...
Mas nunca encontrarás pela vida fora, Amor assim como este que chora Neste beijo de amor que são meus versos!...
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Os ombros suportam o mundo |
em 12/07/2007 23:31:55 (5535 leituras) |
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. Tempo de absoluta depuração. Tempo em que não se diz mais: meu amor. Porque o amor resultou inútil. E os olhos não choram. E as mãos tecem apenas o rude trabalho. E o coração está seco.
Em vão as mulheres batem à porta,
não abrirás. Ficaste sozinho, a luz apagou-se, mas na sombra teus olhos resplandecem enormes. És todo certeza, já não sabes sofrer. E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice? Teus ombros suportam o mundo e ele não pesa mais que a mão de uma criança. As guerrras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios provam apenas que a vida prossegue e nem todos se libertaram ainda. Alguns, achando bárbaro o espetáculo, prefeririam ( os delicados ) morrer. Chegou um tempo em que não adianta morrer. Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação.
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El Abandonado |
em 12/07/2007 12:10:00 (3976 leituras) |
No preguntó por ti ningún día, salido de los dientes del alba, del estertor nacido, no buscó tu coraza, tu piel, tu continente para lavar tus pies, tu salud, tu destreza un día de racimos indicados? No nació para ti solo, para ti sola, para ti la campana con sus graves circuitos de primavera azul: lo extenso de los gritos del mundo, el desarrollo de los gérmenes fríos que tiemblan en la tierra, el silencio de la nave en la noche, todo lo que vivió lleno de párpados para desfallecer y derramar? Te pregunto: a nadie, a ti, a lo que eres, a tu pared, al viento si en el agua del río ves a ti corriendo una rosa magnánima de canto y transparencia, o si en la desbocada primavera agredida por el primer temblor de las cuerdas humanas cuando canta el cuartel a la luz de la luna invadiendo la sombra del cerezo salvaje, no has visto la guitarra que te era destinada, y la cadera ciega que quería besarte?
Yo no sé: yo sólo sufro de no saber quién eres y de tener la sílaba guardada por tu boca, de detener los días más altos y enterrarlos en el bosque, bajo las hojas ásperas y mojadas, a veces, resguardado bajo el ciclón, sacudido por los más asustados árboles, por el pecho horadado de las tierras profundas, entumecido por los últimos clavos boreales, estoy cavando más allá de los ojos humanos, más allá de las uñas del tigre, lo que a mis brazos llega para ser repartido más allá de los días glaciales.
Te busco, busco tu efigie entre las medallas que el cielo gris modela y abandona, no sé quién eres pero tanto te debo que la tierra está llena de mi tesoro amargo. Qué sal, qué geografía, qué piedra no levanta su estandarte secreto de lo que resguardaba? Qué hoja al caer no fue para mí un libro largo de palabras por alguien dirigidas y amadas? Bajo qué mueble oscuro no escondí los más dulces suspiros enterrados que buscaban señales y sílabas que a nadie pertenecieron?
Eres, eres tal vez, el hombre o la mujer o la ternura que no descifró nada. O tal vez no apretaste el firmamento oscuro de los seres, la estrella palpitante, tal vez al pisar no sabías que de la tierra ciega emana el día ardiente de pasos que te buscan.
Pero nos hallaremos inermes, apretados entre los dones mudos de la tierra final.
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Cavalo á Solta |
em 12/07/2007 12:10:00 (11552 leituras) |
Minha laranja amarga e doce meu poema feito de gomos de saudade minha pena pesada e leve secreta e pura minha passagem para o breve, breve instante da loucura
Minha ousadia meu galope minha rédea meu potro doido minha chama minha réstia de luz intensa de voz aberta minha denúncia do que pensa do que sente a gente certa
Em ti respiro em ti eu provo por ti consigo esta força que de novo em ti persigo em ti percorro cavalo à solta pela margem do teu corpo
Minha alegria minha amargura minha coragem de correr contra a ternura.
Por isso digo canção castigo amêndoa travo corpo alma amante amigo por isso canto por isso digo alpendre casa cama arca do meu trigo
Meu desafio minha aventura minha coragem de correr contra a ternura
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Um Homem na Cidade |
em 12/07/2007 12:10:00 (6588 leituras) |
Agarro a madrugada como se fosse uma criança uma roseira entrelaçada uma videira de esperança tal qual o corpo da cidade que manhã cedo ensaia a dança de quem por força da vontade de trabalhar nunca se cansa.
Vou pela rua desta lua que no meu Tejo acende o cio vou por Lisboa maré nua que se deságua no Rossio.
Eu sou um homem na cidade que manhã cedo acorda e canta e por amar a liberdade com a cidade se levanta.
Vou pela estrada deslumbrada da lua cheia de Lisboa até que a lua apaixonada cresça na vela da canoa.
Sou a gaivota que derrota todo o mau tempo no mar alto eu sou o homem que transporta a maré povo em sobressalto.
E quando agarro a madrugada colho a manhã como uma flor à beira mágoa desfolhada um malmequer azul na cor.
O malmequer da liberdade que bem me quer como ninguém o malmequer desta cidade que me quer bem que me quer bem!
Nas minhas mãos a madrugada abriu a flor de Abril também a flor sem medo perfumada com o aroma que o mar tem flor de Lisboa bem amada que mal me quis que me quer bem!
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salsugem |
em 12/07/2007 12:10:00 (4696 leituras) |
Salsugem
Há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida pensava eu....como seriam felizes as mulheres à beira-mar debruçadas para a luz caiada remendando o pano das velas esperando o mar e a longitude do amor embarcado..... ....por vezes uma gaivota pousava nas águas outras era o sol que cegava e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite... ....os dias lentíssimos....sem ninguém e nunca me disseram o nome daquele oceano esperei sentada à porta.... dantes escrevia cartas punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua assim envelheci.... acreditando que algum homem ao passar se espantasse com a minha solidão.... (anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no coração. Mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.) .... um dia houve que nunca mais avistei cidades crepusculares e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta.... .... inclino-me de novo para o pano deste século recomeço a bordar ou a dormir tanto faz sempre tive dúvidas de que alguma vez me visite a felicidade.
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Soneto à lua |
em 06/07/2007 19:00:00 (16095 leituras) |
Por que tens, por que tens olhos escuros E mãos lânguidas, loucas e sem fim Quem és, quem és tu, não eu, e estás em mim Impuro, como o bem que está nos puros?
Que paixão fez-te os lábios tão maduros Num rosto como o teu criança assim Quem te criou tão boa para o ruim E tão fatal para os meus versos duros?
Fugaz, com que direito tens-me presa A alma que por ti soluça nua E não és Tatiana e nem Teresa:
E és tampouco a mulher que anda na rua Vagabunda, patética, indefesa Ó minha branca e pequenina lua!
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Tua pele queima meus dedos... |
em 05/07/2007 12:40:00 (5394 leituras) |
" Com minha razão apenas, com os meus dedos, com lentas águas lentas inundadas, caio no império dos miosótis, numa tenaz atmosfera de luto, numa olvidada sala decaída, num cacho de trevos amargos.
Caio na sombra,no meio de destruídas coisas, e espio aranhas,e apascento bosques de secretas madeiras inconclusas, e ando entre úmidas fibras arrancadas ao vivo ser de substância e silêncio.
Doce matéria,oh rosa de asas secas, no meu afundamento as tuas pétalas subo com pesados pés de rubra fadiga, e na tua catedral dura me ajoelho batendo nos meus lábios com um anjo.
É que sou eu diante da tua cor do mundo, diante das tuas pálidas espadas mortas, diante dos teus corações reunidos, diante da tua silenciosa multidão..."
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Vozes d'Africa |
em 02/07/2007 17:56:47 (14031 leituras) |
DEUS! ó Deus! onde estás que não respondes? Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes Embuçado nos céus? Há dois mil anos te mandei meu grito, Que embalde desde então corre o infinito... Onde estás, Senhor Deus?...
Qual Prometeu tu me amarraste um dia Do deserto na rubra penedia — Infinito: galé!... Por abutre — me deste o sol candente, E a terra de Suez — foi a corrente Que me ligaste ao pé...
O cavalo estafado do Beduíno Sob a vergasta toma ressupino E morre no areal. Minha garupa sangra, a dor poreja, Quando o chicote do simoun dardeja O teu braço eternal.
Minhas irmãs são belas, são ditosas... Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas Dos haréns do Sultão. Ou no dorso dos brancos elefantes Embala-se coberta de brilhantes Nas plagas do Hindustão.
Por tenda tem os cimos do Himalaia... O Ganges amoroso beija a praia Coberta de corais... A brisa de Misora o céu inflama: E ela dorme nos templos do Deus Brama, — Pagodes colossais...
A Europa é sempre Europa, a gloriosa!... A mulher deslumbrante e caprichosa, Rainha e cortesã. Artista — corta o mármore de Carrara; Poetisa — tange os hinos de Ferrara, No glorioso afã!...
Sempre a láurea lhe cabe no litígio... Ora uma c'roa, ora o barrete frígio Enflora-lhe a cerviz. O Universo após ela — doudo amante — Segue cativo o passo delirante Da grande meretriz.
Mas eu, Senhor!... Eu triste abandonada Em meio das areias esgarrada, Perdida marcho em vão! Se choro... bebe o pranto a areia ardente; Talvez... p'ra que meu pranto, ó Deus clemente! Não descubras no chão...
E nem tenho uma sombra de floresta... Para cobrir-me nem um templo resta No solo abrasador... Quando subo às Pirâmides do Egito Embalde aos quatro céus chorando grito: "Abriga-me, Senhor!..."
Como o profeta em cinza a fronte envolve, Velo a cabeça no areal que volve O siroco feroz... Quando eu passo no Saara amortalhada... Ai! dizem: "Lá vai África embuçada No seu branco albornoz..."
Nem vêem que o deserto é meu sudário, Que o silêncio campeia solitário Por sobre o peito meu. Lá no solo onde o cardo apenas medra Boceja a Esfinge colossal de pedra Fitando o morno céu.
De Tebas nas colunas derrocadas As cegonhas espiam debruçadas O horizonte sem fim... Onde branqueja a caravana errante, E o camelo monótono, arquejante Que desce de Efraim...
Não basta inda de dor, ó Deus terrível?! É, pois, teu peito eterno, inexaurível De vingança e rancor?... E que é que fiz, Senhor? que torvo crime Eu cometi jamais que assim me oprime Teu gládio vingador?!...
Foi depois do dilúvio... Um viandante, Negro, sombrio, pálido, arquejante, Descia do Arará... E eu disse ao peregrino fulminado: "Cão!... serás meu esposo bem-amado... — Serei tua Eloá..."
Desde este dia o vento da desgraça Por meus cabelos ululando passa O anátema cruel. As tribos erram do areal nas vagas, E o Nômada faminto corta as plagas No rápido corcel.
Vi a ciência desertar do Egito... Vi meu povo seguir — Judeu maldito — Trilho de perdição. Depois vi minha prole desgraçada Pelas garras d'Europa — arrebatada — Amestrado falcão!...
Cristo! embalde morreste sobre um monte... Teu sangue não lavou de minha fronte A mancha original. Ainda hoje são, por fado adverso, Meus filhos — alimária do universo, Eu — pasto universal...
Hoje em meu sangue a América se nutre — Condor que transformara-se em abutre, Ave da escravidão, Ela juntou-se às mais... irmã traidora Qual de José os vis irmãos outrora Venderam seu irmão.
Basta, Senhor! De teu potente braço Role através dos astros e do espaço Perdão p'ra os crimes meus! ... Há dois mil anos... eu soluço um grito... Escuta o brado meu lá no infinito, Meu Deus! Senhor, meu Deus!! ... |
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Biografia |
em 02/07/2007 17:54:58 (7095 leituras) |
Antônio Frederico de Castro Alves foi filho do Dr. Antônio José Alves, cirurgião e professor da Faculdade de Medicina da Bahia, e de sua mulher D. Clélia Brasília da Silva Castro. Sua família, após passar por Muritiba, mudou-se para São Félix onde ele aprendeu as primeiras letras.
Passou assim a infância no sertão baiano, do qual havia de guardar indelével impressão. Em 1854, porém, já estava com a família na capital. Ingressou em 1856, com o irmão mais velho, José Antônio, no Colégio São João. Em 1858 a família comprou a quinta da Boa Vista e se mudou para lá. Nesse mesmo ano, ingressou no Ginário Baiano, dirigido pela afamado educador Abílio César Borges, futuro Barão de Macaúbas.
Sua mãe faleceu em 1859.
No colégio, estimulado no lar por seu pai, iria encontrar uma atmosfera literária, produzida pelos oiteiros, ou saraus, festas de arte, música, poesia, declamação de versos. Aos 13 anos fez os primeiros versos. No dia 9 de setembro de 1860 teria recitado os primeiros versos em festa no Ginásio Baiano.
O pai se casou por segunda vez em 24 de janeiro de 1862 com a viúva Maria Ramos Guimarães. No dia seguinte ao do casamento, o poeta e seu irmão José Antônio partiram para Recife, enquanto o pai se mudava para o solar do Sodré.
Em março, submeteu-se à prova de admissão para o ingresso na Faculdade de Direito do Recife sendo reprovado. Mas seria em Recife tribuno e poeta sempre requisitado nas sessões públicas da Faculdade, nas sociedades estudantis, na platéia dos teatros, incitado desde logo pelos aplausos e ovações, que começara a receber, e ia num crescendo de apoteose. Era um belo rapaz, de porte esbelto, tez pálida, grandes olhos vivos, negra e basta cabeleira, voz possante, dons e maneiras que impressionavam a multidão, impondo-se à admiração dos homens e arrebatando paixões às mulheres. Ocorrem então os primeiros romances, que nos fez sentir em seus versos, os mais belos poemas líricos do Brasil.
Em 1863 a atriz portuguesa Eugênia Câmara se apresentou no Teatro Santa Isabel. Influência decisiva em sua vida exerceria a atriz, vinda ao Brasil com Furtado Coelho. No dia 17 de maio, Castro Alves publicou no primeiro número de «A Primavera» seu primeiro poema contra a escravidão: «A canção do africano». A tuberculose se manifestou e em 1863 teve uma primeira hemoptise.
Em 1864 seu irmão José Antônio se suicidou em Curralinho. Ele enfim consegue matricular-se na Faculdade de Direito do Recife e em outubro viaja para a Bahia. Só retornaria ao Recife em 18 de março de 1865, acompanhado por Fagundes Varela. A 10 de agosto, recitou «O Século» na Faculdade de Direito e se ligou a uma moça desconhecida, Idalina. Alistou-se a 19 de agosto no Batalhão Acadêmico de Voluntários para a Guerra do Paraguai. Em 16 de dezembro, voltou com Fagundes Varela a Salvador. Seu pai morreu no ano seguinte, a 23 de janeiro de 1866. Castro Alves voltou ao Recife, matriculando-se no segundo ano da faculdade. Nessa ocasião, fundou com Rui Barbosa e outros amigos uma sociedade abolicionista.
Em 1866 se tornou amante de Eugênia Câmara.
Teve fase de intensa produção literária e a do seu apostolado por duas grandes causas: uma, social e moral, a da abolição da escravatura; outra, a república, aspiração política dos liberais mais exaltados. Data de 1866 o término de seu drama «Gonzaga ou a Revolução de Minas», representado na Bahia e depois em São Paulo, no qual conseguiu consagrar as duas grandes causas de sua vocação. No dia 29 de maio, resolveu partir para Salvador, acompanhado de Eugênia. Na estréia de «Gonzaga», dia 7 de setembro, no Teatro São João, foi coroado e conduzido em triunfo. |
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