Crónicas : 

poeta castrado, não!

 
Eu era daqueles fulanos que, quando via uma velha com um cãozinho ou um gatinho pequeninho, pensava que o pequeno animal só servia para o consolo nas noites da sua viuvez.

Mas mudei de ideias, assim que a Paloma se foi embora sem um tchau, até outro dia.
Ela nunca compreendeu que um poeta tem que forçosamente se inspirar nuns bons bocados de carne sem ser bifes.
Fiquei só.
Na dependura dos dias e dias à boa vida, enfrascando remédios a ver se ia desta para melhor.
Andava pelas ruas meio perdido, sem um único consolo, sem ligar puto aos amigos que reinavam com a minha solidão.
Eu tinha de vencer esta guerra.
E mentalizei-me que tinha mesmo de vencer esta guerra contra a filha da mãe da solidão.
Até que numa rua, numa bendita rua, achei um gatinho com um miar tão sereno que parecia o Roberto Carlos dos gatos. Com duas festinhas e um naco de Bolicao, depressa criámos um apego, e levei-o para o apartamento onde logo à entrada lhe impus regras.
Levantou a patinha no sentido de dizer ter entendido que cagar e mijar era só na rua.

Beto foi o nome que escolhi, mas estive na dúvida, pois ele tinha ar de Indiana Jones. Com o Beto lá em casa passei a esquecer os problemas e sobretudo, a minha inspiração poética começou a vir ao de cima. Os meus sonetos voltaram ao que eram.

De vez em quando lá me vinha lamber o tendão de Aquiles, passeava pelos meus ombros num equilíbrio que eu nunca imaginei que ele tivesse.
Os dias eram melhores assim.
A solidão já não era.
O que mais admiro nos gatos é facto de eles caírem sempre de pé, e comprovei isso duma altura de quinze metros, e o Beto, pumba, de pé.
O seu modo de contemplar, tenho de dizer, ensinou-me bastante. E isso era notório nos sonetos que eu sonetava pois já conseguia rimar tudo e mais alguma. A coisa entre eu e o Beto ia certinha, cada um de nós sabia ocupar o seu lugar.

Um dia, pela manhã, bateram-me à porta. Era a vizinha.
De início pensei que ela queria brincar comigo à batalha naval, mas não, veio queixar-se do meu lindo gatinho que, por jeitos, andava metido com a gata dela, uma siamesa toda pimpona, segundo ela.

- Desculpe, minha senhora, mas tem a certeza que é o meu gato que anda a fazer isso?

- Sim, sim, esse malvado, que me entra pela varanda adentro, pela calada da noite, e depois salta para cima da minha pobre e indefesa gatinha, possuindo-a como um louco vertebrado.

- Deve haver aqui um engano, mas…eu vou tratar disso.

E nesse mesmo instantes chamei o Beto ao escritório e tive uma longa conversinha com ele. De homem para gato.
Ou ele se deixa desses comportamentos ou então sou forçado a mandá-lo castrar. Lógico que lhe vieram as lágrimas aos olhos e, após terminado o sermão, meteu o rabito entre as pernas e foi para o sofá da sala estender-se a ver um filme do Fred Aster.

O certo é que a nossa relação nunca mais foi a mesma, ao ponto de um dia o Beto ir-se embora sem se despedir.
Só rezei para que ele não se metesse com esses gatos vagabundos, que só trazem más influências.

A tristeza começou a querer parte de mim, na tentativa de se intrometer em todos os caminhos. Tentei contrariar entretendo-me com o meu pirilau mas não havia solução.
O Beto fazia-me falta. E tudo por causa daquela gata maldita que se a apanhasse na hora torcia-lhe as orelhas. E foi por falar em torcer as orelhas que me deu a curiosidade paranormal de conhecer a gata e talvez, quem sabe, ela não me levasse até ao meu bolinha de pêlo.

Para ir ter com a gata, fiz exactamente o que faria o Beto. Esperei pela noite e, assim que o escuro se fez, com uma quase espargata, consegui chegar à varanda da vizinha num faz de conta que era gato, miando.
Chegado à varanda, restou-me esperar que a gata aparecesse por ali.
Aguentei uma boa meia hora atrás de um enorme jarro de hortênsias, de folhas longas e viçosas, que foi o que me valeu quando me deu um aperto intestinal e não tinha onde limpar.

Só a gata é que demorava a vir. Como já sabia para o que é que ia, levei no bolso uma faneca do meio-dia para atrair a gata. Mas nada de gata nem gatinha mimosa nem a puta que a pariu que já estava a ficar farto de esperar quando nisto, houve luzes a acender dentro da casa. Era a vizinha mais um velho bem constituído, monetariamente, a julgar-lhe pela carteira assim que a abriu.

Depois os dois no trapézio. Ela por baixo e ele por cima, a suar como um porco.
Lembro que escorreguei numa das folhas que tinha utilizado e um barulho fez alertar os amantes. Fiz um miau meio liriquista e escondi-me melhor.

- Aqui há gato! Tens algum em casa? – Falou o velho.

- Detesto gatos! Já por isso coloquei umas hortênsias venenosas que são uma verdadeira ratoeira para os gatos atrevidos, para castrá-los.

Depois riu-se, riu-se muito e voltou ao ataque. Já eu, ó pernas para que te quero,
comecei a sentir um formigueiro na parte inferior do realejo que só parei lá para os lados de Bagdad,
sempre com um pensamento,
repito, sempre com um pensamento, rimado: que venha de lá a solidão, mas agora, poeta castrado, não!
 
Autor
flavio silver
 
Texto
Data
Leituras
1748
Favoritos
1
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
15 pontos
7
0
1
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
sampaiorego
Publicado: 20/04/2010 17:27  Atualizado: 20/04/2010 17:27
Membro de honra
Usuário desde: 31/03/2010
Localidade: algures virado para o mar com gaivotas
Mensagens: 1147
 Re: poeta castrado, não!
tomei um red bull e fiz a leitura de uma só encanada - gostei do beto e da vizinha e da personagem secundária. a que conta a história

abraço

sampaio[r]ego

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 20/04/2010 17:46  Atualizado: 20/04/2010 17:48
 Re: poeta castrado, não!
imaginei cá um vazarrão, e hortências em profusão, senão; como disfarçar tanta cagada.
o interessante da tua escrita Flavio, é que sempre nos força a beber do copo, numa só golada.

e outra... felinos são traiçoeiros pra cacete!... gatas; ah! essas dão pra aturar! é felino... mas aí é outra história pra você contar.rss

abraço fraterno, amiguirmão.

Silveira

Enviado por Tópico
Betha Mendonça
Publicado: 20/04/2010 18:40  Atualizado: 20/04/2010 18:40
Colaborador
Usuário desde: 30/06/2009
Localidade:
Mensagens: 6699
 Re: poeta castrado, não!
Flávio do Céu!
A tua narração é tão realista que vi (graças não vivi!) as cenas dessa tragicomédia.Com risada compulsiva, meu filho acha que enlouqueci de vez (como se isso já não fosse fato!).Nota mil!
Bjins, Betha.


Enviado por Tópico
Alberto da fonseca
Publicado: 20/04/2010 19:09  Atualizado: 20/04/2010 19:09
Membro de honra
Usuário desde: 01/12/2007
Localidade: Natural de Sacavém,residente em Les Vans sul da Ardéche França
Mensagens: 7071
 Re: poeta castrado, não!
EXCELENTE TEXTO FLÁVIO. NO FIM SEMPRE É MELHOR IR ÀS GATAS DO QUE ESPIAR AS DITAS..

ABRAÇO FLAVIO

A. DA FONSECA


Enviado por Tópico
Amora
Publicado: 20/04/2010 20:00  Atualizado: 20/04/2010 20:00
Colaborador
Usuário desde: 08/02/2008
Localidade: Brasil
Mensagens: 4705
 Re: poeta castrado, não!
Depois de muito sorrir resta-me dizer da minha admiração gigante por esse texto! Que capacidade, que capacidade, de, felina e elegantemente, gritar por liberdade! Aplausos!

E um beijo.