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O cãozito Bóbi

 
Era tempo de férias grandes, na escola que Jacinto frequentava no ciclo preparatório, hoje inexistente. Como habitualmente, um desses meses coincidia com as férias de seus pais. Na sua companhia e de sua irmã passaria esse período nas aldeias de nascimento de seus progenitores, dois pequenos lugares serranos, sendo o acesso da aldeia onde sua mãe nasceu, algo rudimentar, mas seria lá que passaria mais tempo. Um local muito especial para ele, donde poderia observar belas panorâmicas, fazer bate-papo com a natureza e explorar pormenores até então desconhecidos.

O acordar naqueles locais beirões, bem distantes e diferentes do buliço que presenteava diariamente os habitantes da capital, Lisboa, era deveras encantador. Os pássaros que saltavam pelos campos, que quase entravam pelas habitações dentro, num ambiente bucólico e aprazível, cantavam melodias naturais, que eram muito agradáveis ao ouvido. Como era bom aquele amanhecer nos verões daquele tempo.

Jacinto, enquanto criança, pelos seus 10/12 anos, gostava de se levantar cedo e percorrer os caminhos que se encostavam à aldeia, acariciando-a, e o podiam levar a destinos que os seus amigos da cidade jamais poderiam sonhar. Era ver os carreiros de formigas, os gafanhotos que saltavam à sua frente, uma lagartixa que escondia por entre os arbustos e toda uma permanência viva que era habitual naqueles belos espaços e suas envolvências. Para ele, aquelas descobertas, que se sucediam, eram grandes conquistas.

Muitas vezes a família percorria os caminhos que uniam aldeias vizinhas, no sentido de visitar pessoas e locais dos quais vinham acumulando saudades, no tempo.

Num desses passeios entre a aldeia onde permanecia mais tempo, Carvalho Pequeno e uma outra, Estirão, quando do regresso a casa o grupo viu-se confrontado com a visita de um pequeno cão, de cor preta, que passou a acompanhá-los até à chegada ao ponto de partida. E, mais interessante, começou a ganhar empatia com Jacinto, numa sequência de mútuos sentir e fidelidade. Logo Jacinto começou por dar o nome de Bóbi (um dos mais que tradicionais, dos diversos que são dados a muitos membros da família canina) ao cãozito e ele, a esse nome, começou a responder.
Para Jacinto os dias seguintes mais agradáveis se tornaram.

Bóbi ficou numa antiga capoeira, que havia servido para guardar os pintos que os avós costumavam comprar no mercado da vila de Agranel até crescerem e poderem conviver com as restantes aves, galos e galinhas.
Mais cedo se passou a levantar Jacinto e logo ia procurar Bóbi, soltando-o e levando-o a passear pelos campos fora, onde corriam, brincavam numa cumplicidade inigualável. Bóbi assim que sentia o cheiro do seu recente amigo e possível futuro dono, logo começava a latir, denotando uma alegria infinda.

E o tempo de férias ia passando, começando-se a pensar da impossibilidade de Jacinto poder levar o cão para Lisboa. A casa na capital era muito pequena e já albergava quatro pessoas, para além dos que amiúde eram recebidos. Ora vindos das aldeias ou por motivos que justificavam lá permanecer.

O pai de Jacinto, Celestino, falou com seu sogro, que todas as manhãs saia cedo para o campo, às vezes com o gado, para que levasse consigo o cão e o deixasse por lá, longe daquele lugar. Isso serviria para o despistar da localização da casa onde ficava Jacinto e, assim, desanuviar aquele entendimento que cada vez se sentia mais forte.

Quando Jacinto se levanta e vai ao encontro do seu novo amigo e não o encontra, ficou em sobressalto. Correu para casa e pergunta à mãe, a D. Aliete, onde estava Bóbi ao que lhe respondeu que não sabia. Isto para tentar terminar ali toda aquela situação.
Mas Jacinto insistiu, chorando: - Mãe para onde levaram o Bóbi?
E ela finalmente diz: - O teu pai pediu ao avô que o levasse com ele, para o campo, e o deixasse por lá, porque nós não temos condições de o levar para Lisboa. A casa é pequena e sem espaços capaz de ter animais desse tipo lá. Já chega o canário!
Jacinto retorquiu: - Para onde foi o avó?
Responde a mãe: - Para o Vale Fonteiro.

Ao ouvir isto, Jacinto sai de casa a correr para junto do lavadouro e segue o trilho que o poderia levar ao Vale Fonteiro, mas desconhece aquele caminho. Então começa a gritar: - Bóbi! Bóbi! Bóbi!

Não haviam passado dez minutos quando se sente a vegetação rasteira a mexer e se começa a ouvir um latido, era o Bóbi. Jacinto agarra-se a ele, chorando (desta feita de satisfação), enquanto o cãozito lambia as mãos do menino, seu amigo. Regressaram a casa a correr.

Este episódio, apesar de tudo, comoveu todo o ambiente caseiro.
Até a irmã de Jacinto, Zita, mais nova dois anos, se fartou de chorar, mas não havia volta a dar, faltavam cinco dias para o regresso e o cão tinha de ficar por ali.

Celestino descortinou outra ideia para a resolução do assunto.

Numa das suas idas à aldeia onde nasceu, Longueiral, onde existia uma taberna que era de seus pais, anexa à casa onde nasceu, combinou com um antigo colega de escola, que morava numa aldeia mais para a serra, Cabeceiras, que ficasse com o cão. Isto depois de lhe contar toda a história.
Então magicou que diria a Jacinto que teve de vender o cão e o interessado teria pago vinte escudos por ele.

No dia seguinte assim procedeu.

Nessa manhã Jacinto tem mais um desgosto, quando chega ao local onde Bóbi ficava, não estava lá. Pensou que o avô o tivesse levado, novamente, para o campo e correu gritando pelo seu nome. Mas, desta vez, esperou, esperou e nada.

Triste regressou a casa, onde seu pai já se encontrava, e logo perguntou pelo cão, ao que o pai lhe disse: - Tive de o vender por vinte escudos a um senhor que estava interessado nele, que mora lá para os lados da serra.
Jacinto ficou cabisbaixo, muito choroso, sentindo que mais nada podia fazer para reaver o seu amiguinho, limitando-se a aceitar o dinheiro que o seu pai lhe deu, da aludida e amargurante negociação.

No dia seguinte deu-se o regresso a Lisboa, numa viagem onde o semblante de Jacinto era de autêntica nostalgia, pelas saudades que tinha do seu amigo Bóbi.

Chegados a Lisboa, daquelas férias do ano de 1966, por ocasião do Mundial de futebol que ocorreria em Inglaterra, onde Eusébio viria a ser rei.
Agarrou nos seus vinte escudos, foi à papelaria do sr. Miguel e gastou o dinheiro todo em cromos do Mundial.
Foram 50 saquetas, 300 cromos, mas saíram muitos repetidos.

Passou o tempo e aquela tensão foi-se dissipando, mas as saudades perduraram por alguns anos. Ao Jacinto, sempre lhe ficou um profundo vazio, por aquele duplo acontecer.

Nunca mais viu o Bóbi e a colecção de cromos, do Mundial 66, não conseguiu completar.

António MR Martins


António MR Martins
Tem 12 livros editados. O último título "Juízos na noite", colecção Entre Versos, coordenada por Maria Antonieta Oliveira, In-Finita, 2019.
Membro do GPA-Grupo Poético de Aveiro
Sócio n.º 1227 da APE - Associação Portugues...

 
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António MR Martins
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 21/02/2011 18:17  Atualizado: 21/02/2011 18:17
 Re: O cãozito Bóbi
UM POEMA EXTENSIVO, MARAVILHOSO, DEIXO MEU ABRAÇO.

MARTISNS