Contos : 

“NEGORIDES”

 
Eurides é nome próprio que vem do grego. Significa impetuoso, muito agitado.

Ele era negro e não tinha nada de impetuosidade capaz de lhe lembrar o nome. Os braços desciam além da cintura e projetavam-se mais longos do que o normal, induzindo a uma comparação com o protótipo do ancestral que moldou a todos para a atualidade. Hábil impressor tipográfico administrava com maestria sua Heidelberg alemã que roncava quase que doze horas seguidas, naquele pavilhão perlustrado de sarcasmo, ambiente coletivo, onde todos se sujeitavam à troça e à fanfarronice dos companheiros. Faltava-lhe um epíteto, talvez, “o rei da automática”, ou “o rei negro da impressão”.

Com ou sem epítetos, ele sobrevivia e não dava bola para os chistes que surgiam a cada quarto de hora, mas cada um era respeitado ao modo de seu comportamento. Ria como se estivesse engolindo o riso e assim era melhor. Nada que se lhe quisesse impor resistia por muito tempo. Seu modo sereno de apreciar as piadas que faziam com ele, resumia-se num amarelo sorriso disfarçado no canto da boca e a compenetração no manete da Heidelberg que comandava. Agia assim por estratégia; penso. Pau pra toda obra, abandonava vez em quando, a automação da “alemãzinha” e tomava a guia da velha Minerva formato quatro, negra, feito ele, encostada num descanso forçado no aguardo de uma emergência, quando a engenhoca importada não suportava.

Essa é linguagem pouco conhecida, que Eurides dominava com maestria. Formato quatro significa a divisão de uma folha de papel do tamanho de uns dois metros por dois metros, mais ou menos, em quatro pedaços com medidas iguais. As especificações, Minerva e Heidelberg, denominam o gênero máquinas de impressão tipográfica, ofício que já não mais representa o significado de tantos anos atrás, ocasião em que nos encontramos pela vez derradeira.

O surgimento de uma nova metodologia, nas técnicas de impressão, impusera o risco de aposentadoria para profissionais de impressão das tipografias, geniais operários que nem Eurides, e trouxe uma revolução sistêmica nas comunicações, fazendo que as pessoas ficassem mais próximas umas das outras. É impossível que não nos adaptemos a essa nova modalidade de coexistência, representada pela proliferação do computador. Sim, esse mesmo instrumento que aposentou de vez a tipografia que durou de Gutenberg a Eurides, é o mesmo que cria a possibilidade da comunicação imediata entre as pessoas. Mas que Eurides não conhece, infelizmente.

Dentro dessa nova dinâmica topei cara a cara com Josélia Engels. Moçoila bonita, com face de traços largos, seu rosto emoldurava o quadrilátero impreciso de uma página eletrônica, onde fizera inserir o seu apelo de busca do pai, Eurides da Silva.

Estava lá, bem legível o recado. Diante de um castelo qualquer da Alemanha, clamava pela condescendência de algum residente na distante Caratinga de Minas Gerais, que não conhecia. Dessem-lhe notícias do pai, pois não o via por mais de duas décadas. Percebi logo que a busca de Josélia iria esbarrar em “Negorides”, aquele mesmo, que conheci anos atrás, na mesma cidade de Caratinga. Só podia ser ele.

Sem perder o fluxo da informação, estendi a abrangência do apelo e pude dividir o êxito com a jovem Josélia, em menos de uma semana. Encontrei-o. Estava ainda lá, escarafunchando uma Heidelbergzinha, tão desatualizada, em uma romântica tipografia num encontro de ruas da cidade onde sempre esteve.

A descoberta de “Negorides” me valeu a amizade da filha, com a promessa de eternizar o encontro através de um registro fotográfico, para posterior envio às terras saxônicas.

Com origem no “entrudo” português, para mim o carnaval é a expectativa de fuga do grande centro. Submeto-me ao suave descanso que os três dias da carne proporcionam. Prefiro sempre o bucolismo da cidade pequena no interior. Preparei então, o espírito e a máquina fotográfica. O espírito era meu mesmo, o adereço digital, de minha irmã, a quem encarreguei de fazer as fotos. Visitaríamos “Negorides” na segunda de carnaval. Fiz um compromisso com Josélia e estava disposto a cumpri-lo.

Ao final de meia dúzia de horas, longas e cansativas, seguidas a um indigesto congestionamento de almas no terminal de embarque da capital, em razão da folia, chegamos a nosso primeiro destino; uma longa espera nos levaria até Entre Folhas, onde nosso pai nos aguardava de tornozelo quebrado.

No entroncamento de vias, que ligam as cidades grandes, sentamo-nos no banco liso de madeira e conversávamos. O trânsito era intermitente.

A conversa entre minha irmã e eu foi interrompida abruptamente com a aparição inesperada de “Negorides”. Foi tudo tão rápido que parecia impossível classificar aquilo como verdade. Caminhando em nossa direção, trazia na aparência os mesmos traços de trinta e oito anos atrás. Apenas o encanecido dos cabelos fazia diferença, no contraste da moldura de seus olhos grandes, e o sorriso largo e amarelo sendo engolido, estrategicamente, como forma de defesa, na medida em que eu me aproximava, insistindo em chamá-lo pelo nome.

Não demorou muito para me reconhecer. Nos abraçamos com carinho e eu lhe falei de Josélia. Ele também me falou da filha, feliz ao seu modo. Prontamente posicionou-se para uma série de fotos, a meu comando, que fizemos ali mesmo, na beira da estrada. - Não o encontraria - disse. Com o feriado de Momo, só voltaria ao serviço depois das cinzas.
Se alguma força estranha o levara ao meu encontro, não discutirei, o certo, pois, é que terei cumprido efetivamente o compromisso firmado com Josélia Engels, quando, do outro lado do mundo, ela puder, lendo essas anotações, folhear as fotografias do pai, de quem não tinha notícias há vinte e três anos. Valeu! Foi grande também minha felicidade, não só por atender Josélia, mas por tê-lo encontrado e ter podido abraçá-lo.


Leia de Wagner M. Martins

FALA, FILHO DA MÃE!!! - Capa Paulo Vieira

UM BICHINHO À TOA. - Capa: Camilinho

Participação:

Livro OLHA PROCÊ VÊ! de Elias Rodrigues de Oliveira

No prelo:

UM INTRUSO NO QUINTAL

Publicado em "FALA, FILHO DA MÃE!!!" editora Biblioteca24x7, São Paulo, 2010
 
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wagner
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