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1964: QUANDO FOMOS ÀS RUAS POR DITADURA

 
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1964: QUANDO FOMOS ÀS RUAS POR DITADURA

Ordem Social pode ser um jogo de luzes e sombras. Não raro é no ambiente tolerante e permissivo de regimes democráticos que o autoritarismo irrompe arrebatador com suas promessas de legalidade e manutenção da ordem. É como se liberdade demais fosse um problema para manter os tijolos da pirâmide no lugar... A busca humana por melhoria da qualidade de vida se expressa, também, em aspectos materiais que dependem d'um ambiente de negócios seguro. Pode-se assumir como regra geral que rupturas institucionais não interessam à maioria dos operadores de capitais e empreendedores. O homem comum, por outro lado, se preocupa menos com o lado d'onde vem o chicote da repressão... Direita ou esquerda; monarquia ou república; colônia ou nação independente... Não importa: A vida de quem não tem muito muda muito pouco quando tudo muda.

Sem embargo, a apatia do povo pobre contrasta com a indignação de quem é ou se sente classe média. Para estes, sim, mudanças fazem toda a diferença. Sempre é no miolo da pirâmide social que as movimentações a causar fissuras estruturais acontecem. É ali que surgem os ideólogos, os conspiradores e, sobretudo, as lideranças que vociferam contra "tudo isto que está aí". Curiosa, n'esse sentido, é a noção de CONTROLE SOCIAL. Em regimes democráticos, controle social corresponde a estruturas de avaliação de políticas públicas por parte da sociedade civil, ao passo que, em regimes autoritários, falar em controle social é o mesmo que falar em forças policiais e instituições de repressão responsáveis pela manutenção do próprio regime.

Dificilmente, porém, a sensação de liberdade dos cidadãos é ampliada em sistemas nos quais há controle repressivo às manifestações públicas de desacordo com o Governo e suas políticas. Não por acaso, estados democráticos se esforcem por não parecerem excessivamente militarizados e tampouco condicionadores da expressão da imprensa ou dos movimentos sociais. Em ditaduras, como se sabe, forças policiais são omnipresentes. Controlar e reprimir são sinônimos n'esses regimes. Todavia, à medida em que o controle das pessoas pelo Estado é ampliado, o controle do Estado pelas pessoas é desestimulado, o que amplia o risco de corrupção dos processos, bem como a impunidade geral de corruptos. Afinal, os crimes que realmente concorrem para o abalo da Ordem Social são aqueles em que os pobres, estacionados na base da pirâmide social, deixam de seguir as regras. N'outras palavras, quando o marmiteiro se torna bandido... É esse movimento de manada de pobres e miseráveis em direcção à ilegalidade e o bandidismo que, de facto, assusta às classes superiores, não alguma forma tropicalista de COMUNISMO ou ANARQUISMO.

Como se explicitou no início d'este texto, para os pobres há uma percepção muito clara que as coisas mudam muito pouco em sua realidade com as mudanças de regime, portanto, movimentos de sublevação que encontram massivo apoio das camadas inferiores da sociedade dificilmente estão ligados a ideias, sim a lideranças, ou melhor a personalidades. Não é a utopia d'um sistema onde o rico deixa de ser rico e o pobre continua pobre -- como o comunismo cubano, por exemplo -- que fala aos corações e mentes das periferias, sim a percepção de que estruturas de bem estar social estão alcançando inclusive os mais pobres. A força política do bem estar social é que efetivamente levou à consagração do binômio ESTADO DEMOCRÁTICO e CAPITALISMO FINANCEIRO que configura o que ainda hoje se reconhece como Primeiro Mundo ou Mundo Desenvolvido.

No golpe de Estado --, ou revolução, como querem alguns actualmente -- de 1964, a classe média foi às ruas para pedir a ruptura n'um regime democrático que vinha patinando sobre mares de lama pelo menos desde o suicídio de Getúlio Vargas, dez anos antes. Havia muita insatisfação com um Governo cuja permissividade para com os opositores, típica de regimes democráticos, fora utilizada como narrativa para a suspensão d'este próprio Governo. Com efeito, milhares de senhoras honestas e homens de bem foram, de terço na mão, saíram às avenidas das grandes cidades brasileiras para pedir que seus valores, a saber, TRADIÇÃO, FAMÍLIA E PROPRIEDADE, fossem não apenas respeitados, mas estabelecidos como fundamentos da Ordem Social. Cientes de que apenas um regime autoritário seria capaz de conter as forças culturais e os movimentos sociais que se pleiteavam mudanças na sociedade brasileira, essa classe média conservadora abraçou a disrupção legalista do Movimento de 64 (contra pobres e subversivos) enquanto fazia vistas grossas para as agressões contra os Direitos Humanos de minorias, além de se colocava como cúmplice e apoiadora de políticas públicas, por via de regra, excludentes e repressoras.

É como se houvesse uma ideia geral de que o Brasil só poderia dar certo violentando seu próprio povo... De facto, descendentes de indígenas, escravos e miseráveis desesperados só poderiam ser governados pela autoridade do chicote, não por pactos sociais. Historicamente excluídos de quaisquer decisões sobre a condução da coisa pública, essas classes sempre serão vistas com desconfiança e pavor pelo resto da população. Os regimes vão se sucedendo em seus ciclos de poder, mas a questão social brasileira permanecia invariável como nação promotora de grandes fortunas a administrar a insatisfação de imensas populações miseráveis. Por isso que tantos advogam que o problema do Brasil não é seu governo, sim seu povo. Há séculos se defende que o país só seja viável oprimindo os mais pobres e mantendo-os em seu lugar. Conservar tradição, família e propriedade era, sobretudo, manter o pobre em seu lugar. Pôr tanques de guerra nas ruas das cidades para criminalizar a classe política era, também, para manter o pobre em seu lugar. A democracia é o único sistema que tolera opositores que militam por seu fim.

O resultado não foi bom. Após 21 anos de ditadura militar no Brasil o país continuava subdesenvolvido e desigual. Apesar de toda a repressão às liberdades individuais e aos movimentos sociais, o conservadorismo católico soçobrou, quer face à modernidade laica, quer ao fundamentalismo neopentecostal. Embora cristão em sua maioria, somos um povo violento acostumado a um quotidiano inseguro. Dez Mandamentos não foram capazes de nos conciliar! Ao contrário, o emaranhado de certezas paradoxais dos crentes tem nos levado, democraticamente, ao autoritarismo.

Como em 1964, a classe média ordeira e temente a Deus clama hoje por um Estado Policial e Judicial capaz de implementar o projeto de Ordem e Progresso de nossas elites desde sempre, criminalizando os costumes, os lazeres e mesmo a religiosidade dos incivilizados. Mas, como sempre, trata-se de manter o pobre em seu lugar, sob controle.

Betim - 27 10 2020


Ubi caritas est vera
Deus ibi est.


 
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RicardoC
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