Contos : 

Quando o destino decide que somos apenas peças de um jogo de xadrez.

 
Ele tinha suor nas mãos ao chegar na festa onde era, por assim dizer, o convidado de honra, pelo que estava um pouco mais ansioso do que poderia admitir.
Era novato e já havia vencido uma dura prova.
Nos lugares que frequentava, sempre fôra o que passava mais despercebido de seu grupo de amigos, dada sua timidez, que foi criada e exacerbada pelo rigor das exigências de sua mãe.
Rigorosa e castradora, ela nunca permitiu que ele brilhasse, ainda que fosse o melhor de sua sala de aula. Com medo de ser repreendido sempre com veemência, tornara-se um tanto introspectivo.
Assim, nunca sonhou em participar de uma corrida de carros, mas sabemos que todos os garotos em algum momento, nas brincadeiras com carrinhos imagina-se o vencedor.
Agora, um jovem adulto, de uma brincadeira num autódromo, as coisas foram se sucedendo sem que na verdade ele as impulsionasse ou que as impedisse de acontecer, até o momento que a adrenalina inundou suas veias e o contaminou pelo desejo de vencer.
Ele frequentara uma escola de pilotagem onde os alunos foram gentilmente desafiados pelos organizadores a participarem de uma prova entre eles.
Na solidão do cockpit ele se sentiu, afinal, livre do jugo de sua mãe, à espera dos intermináveis segundos que separavam da largada, pela primeira vez decidiu que não precisaria se anular e quando a bandeira desceu, acelerou.
Acelerou tanto que quando a corrida terminou foi convidado a correr de novo, desta vez não como brincadeira no final de um curso de direção. Ia correr entre os leões. Isso fôra há duas corridas atrás e agora venceu, sem deixar margem para dizerem que foi sorte ou comentários negativos.
Ao passar pela entrada da festa, foi imediatamente levado ao organizador, entre acenos e tapinhas nas costas. Ele nunca se sentira assim, mas sabia que era isso o que sempre quis.
O patrocinador falava de seus planos para o futuro e dava instruções às pessoas para a homenagem, dizendo que algo breve, o que para ele seria significativo em seus primeiros dias de ‘alforria’.
O lugar era elegante e o salão ficava um nível abaixo da entrada que se dava por uma escadaria de uns poucos degraus. Ele observava o local e quando olhou para o alto da escada, um tanto distraído pois ainda não estava acostumado a isso, notou que lá vinha ela descendo os degraus com seu porte único.
Seus cabelos loiros, ligeiramente ondulados balançavam como o pêndulo do hipnotizador prendendo o olhar dele. Ele estava dois passos adiante do grupo dos patrocinadores em relação a ela. Ela caminhava firmemente em sua direção e um nó se fazia na garganta dele: ela vinha resoluta na sua direção.
Olhos verdes, traços delicados, um quê de inocência e outro de serpente no rosto. Um sorriso semi-oculto completava o quadro. Ela esboçou esse sorriso ao passar direto por ele, deixando apenas seu perfume envolvente no ar.
Despertado do sonho de acreditar que ela vinha na sua direção ele olhou para trás e a viu abraçar seu patrocinador: “Tolo – disse como se fosse a voz da consciência em 3a pessoa, advertindo a si mesmo - acreditou mesmo que ela vinha falar contigo?
Mas antes de prosseguir em sua autocrítica, ouviu o chefe dizer: “Filha, que bom você veio, sua mãe está onde?"
Entre o alívio de um vexame interior e a certeza que ela seria alguém distante de seu alcance, seu patrocinador o chamou e a apresentou: - "Esta é minha filha"; a ela disse - "Este é nosso novo campeão" Ele estendeu-lhe a mão – um tanto indeciso, como sempre fora obrigado a se comportar pelas regras de sua mãe – mas ela ofereceu-lhe o rosto para cumprimentar com um beijo.
Ao se aproximar sentiu mais o perfume envolvente que ela usava e ao tocar rosto a rosto foi uma vibração que não se pode explicar com palavras.
Seu chefe e patrocinador puxou-o pelo braço para irem falar com algum figurão do esporte e disse à sua filha que já voltaria. Ele foi mecanicamente levado, enquanto ela se afastava na direção de uma das mesas.
Ele voltou a pensar em termos de tornar-se um corredor, devia conectar-se a outros possíveis patrocinadores e por isso não a viu mais naquele dia.
Os dias se passaram, ele estava em uma aula de anatomia na faculdade, onde os alunos – todos em pé – observam os professores darem os nomes dos ossos de um esqueleto de algum doador, montado com arames.
Deu um passo para trás para ver melhor e esbarrou em alguém, virando-se de imediato para pedir desculpas. Ficou frente a frente com ela, reconhecendo-a prontamente. Antes que pudesse imaginar se ela o reconheceria, ela disse: - “Olá, que surpresa, não sabia que você era desta classe”.
A conversa mal iniciada, encerrou-se pela advertência do professor: - "Vamos fazer silêncio?"
Ao final da aula voltaram a conversar e ele, de forma absolutamente não usual disse a ela: - “Puxa, parece que não querem que a gente converse, primeiro seu pai me arrasta a falar com os empresários, agora, mal abrimos a boca e já levamos uma bronca do professor...” – e continuou – “Vamos tomar algo no ‘Amarelo’ (Amarelo era o nome de uma lanchonete perto da faculdade) está muito calor..!?"
A noite já avançava pela madrugada quando a moça da lanchonete disse que eles estavam fechando. Haviam ficado lá por horas e nem notaram o tempo passar. Notaram muito menos, quando sentados no banco da praça o céu começou a dar ares do dia nascer.
Meio sem vontade e sem jeito, decidiram ir embora e ele a acompanhou até a porta da pensão onde ela morava. Ela novamente ofereceu-lhe o rosto para um beijo de despedida, mas quando ele se aproximou, ela virou-se de frente e beijaram-se calorosamente.
Não esqueçamos que isso acontecia em 1975.
A relação entre eles evoluiu rapidamente e com a mesma velocidade recebeu a desaprovação da mãe dela que sonhava em casá-la com um pretendente rico que orbitava a casa dela na Capital.
Ela repugnava a insistência do rapaz, a quem já declarara não haver a correspondência de sentimentos, mas ele não desistia com o apoio de quem desejava fosse sua futura sogra.
Indiferentes a tais pretensões, eles viviam uma vida de sonho: ele seguia vencendo provas e isso lhe rendia recursos, convites, viagens. Ela tinha os mesmos gostos dele: música, comida, lugares. Conversavam longamente por horas, estudavam juntos, riam juntos. Viajaram por toda a América do Sul. Mas, o que eles de melhor e tinham em comum, era terem decidido que iam ficar juntos, começar uma família e viver a vida que tivessem pela frente, juntos.
Já havia se passado quase 2 anos e naquele sábado ela tinha um casamento de alguém da família e ele foi convidado a acompanhá-la. Ele tinha um compromisso mais cedo e viria de onde estava para buscá-la e irem juntos. Mas o destino disse que o compromisso dele ia demorar uns minutos além do previsto.
Não era fácil comunicar um pequeno atraso na época, nada de celulares ou redes sociais, apenas o velho telefone fixo.
Ele ligou para avisar que se atrasaria, talvez quinze minutos, porém iria busca-la mesmo assim, mas quem atendeu foi a mãe dela. Essa recebeu o recado e “gentilmente” se propôs a avisar.
Era a oportunidade que uma mãe que queria interferir em um relacionamento esperava. Disse à filha que ele ligou para avisar que a encontraria na igreja, mas o ‘rapaz’ as levaria em seu carro. Ela relutou, mas não conseguiu falar com ele e acabou aceitando.
Ele havia acabado de passar na casa dela e a empregada contara o que se passou, estava nervoso, irritado com aquelas atitudes, esperava que ficassem juntos de vez e tudo aquilo acabasse.
O trânsito no cruzamento à frente estava totalmente congestionado e ele não teria a chance de desviar e tentar outro caminho. Passaram umas pessoas do lado do carro dele que vinham do cruzamento e ele as indagou o que estava acontecendo.
Um acidente horrível” uma delas respondeu. E ele pensou que era só o que faltava. Iria se atrasar muito mesmo. Muitos minutos depois chegava próximo ao cruzamento. Havia um ônibus e um carro quase sob o coletivo.
Mais alguns metros e ele pôde ver o carro e seu sangue gelou.
Era o carro do pretendente. Ele abandonou o seu e correu lá, sendo tomado pelo desespero quando viu o corpo dela entre as ferragens. Ele atirou-se entre os vidros que lhe cortaram fundo, mas isso não importava, só queria tirá-la de lá ou nem precisava sair.
Os bombeiros só conseguiram contê-lo, pois já faltavam as forças de tanto sangue que ele perdera. Foi sedado e levado ao hospital. Quando acordou e teve alta do hospital ela já havia sido sepultada.
Durante muito tempo ele acreditou que a vida tinha acabado, não foi fácil chegar à aceitação que a vida, mesmo muito dura e triste, deve continuar. Depois de mais algum tempo, para ajudar a enfrentar a dor, ele resolveu escrever poemas.


"Somos apenas duas almas perdidas/Nadando n'um aquário ano após ano/Correndo sobre o mesmo velho chão/E o que nós encontramos? Só os mesmos velhos medos" (Gilmour/Waters)



Este conto é baseado em uma história real.
 
Autor
Sergius Dizioli
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 22/12/2020 20:30  Atualizado: 22/12/2020 20:30
 Re: Quando o destino decide que somos apenas peças de um ...
Se essa História tem continuação queria ver o final feliz do personagem.


Enviado por Tópico
AJ_Cardiais
Publicado: 23/12/2020 00:05  Atualizado: 23/12/2020 00:05
Colaborador
Usuário desde: 27/10/2012
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Mensagens: 690
 Re: Quando o destino decide que somos apenas peças de um ...
Cara, que história triste... Eu estou imaginando como deve ter ficado essa mãe, porque ela foi a culpada pela morte da filha. E esse poeta só deve escrever poemas tristes. Escreve o resto da história. O que aconteceu com ele, depois disso?

Abraços.


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 23/12/2020 10:53  Atualizado: 23/12/2020 10:53
 Re: Quando o destino decide que somos apenas peças de um ...


Triste, melancólico como tantas vezes é a vida


um abraço poeta Mr.Sergius


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 23/12/2020 16:19  Atualizado: 23/12/2020 16:19
 Re: Quando o destino decide que somos apenas peças de um ...
Uma linda história porém com um triste fim,
Mas o amor verdadeiro vai além da eternidade.
O destino pode nos surpreender de diversas formas mas nada melhor que escrever poemas para acalmar o coração. um grande abraço e uma ótima tarde


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 23/12/2020 19:01  Atualizado: 23/12/2020 19:01
 Re: Quando o destino decide que somos apenas peças de um ...
és mais burro que uma puta. quando entrei aqui nem sabia que usavas esse chapéu de esconde esconde senão nem tinha entrado. também andas a pedir esmola! froda-se! escreve qualquer coisa de jeito e dá um a essa cabeça de merda. o destino é que tem culpa! és mesmo burro. ó infeliz, feliz natal



Enviado por Tópico
Migueljaco
Publicado: 26/12/2020 14:16  Atualizado: 26/12/2020 14:16
Colaborador
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Mensagens: 10200
 Re: Quando o destino decide que somos apenas peças de um ...
Bom dia Mr.Sergius , teu conto embute um enredo denso e profundo na dramaturgia intrínseca a cada cena aqui exalada contextualizando este todo dramático, parabéns pelo vosso instigante conto, um abraço, MJ.