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Conversa que ficou

 
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Um dia disseram-me que os cães entendem a desilusão. Abeiram-se da pessoa, inevitavelmente da pessoa que mais fraqueza denote, e cheiram as extremidades. Páram fixos a olhar nos olhos, porque é sempre nos olhos que estão as fraquezas. E condescendem. Condescendem tanto a ponto de nos começarem a ver como iguais. Lambem as mãos. Deitam-se sobre os pés, achando assim que consolam aquele ser com o qual se deparam, e que precisa mais de afeto do que eles estão a necessitar naquele momento. Recordo-me de quem me explicou isso. Era um velhote que nunca tinha visto. Parecia alienado, sentado num banco de um parque público. Com a mão direita sobre uma garrafa de cerveja quase vazia, e a outra gesticulando de uma forma contemporalizadora. Gostei dele. Sentei-me a seu lado, e falou-me sempre sobre animais. Disse que tinha abraçado a vida há muitos anos, e que os pássaros voam rasos quando estão para morrer. E que há muita sabedoria na quietude e mudança de comportamento dos gatos. Eles conhecem-nos melhor quando se afeiçoam, do que nos conhecemos a nós próprios. Escutei-o com atenção até anoitecer. A conversa terminou quando um homem cabisbaixo passou junto de nós, e pareceu querer começar a cheirar o chão. Ambos observámo-lo, e aí falei eu. Perguntei se ele tinha ainda alguma esperança de vida. Finalmente esvaziou a cerveja que lhe restava, e respondeu que sim. Saber o sabor do vento. Um desejo como outro qualquer. Despedimo-nos com um até breve, sabendo que provavelmente nunca mais voltaríamos a cruzar olhares, ou a trocar experiências.


Ruacuzuaco

 
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ruacuzuaco
 
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Enviado por Tópico
Rogério Beça
Publicado: 25/05/2024 17:59  Atualizado: 25/05/2024 18:05
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 Re: Conversa que ficou
Tem graça.
No fim-de-semana da Páscoa passei por uma experiência parecida com esta, em Veneza.
Pus-me a falar com um espanhol que vivia lá há mais de 40 anos.
Falou-me da influência de Provença na região.
Falou-me de como o facto de ser tão marítima a tornou influente na altura da expansão.
Pediu-me para reparar como as ruas ali, ao contrário de outros locais de Itália se chamarem Calle, em vez de Via. Para suportar a sua teoria e o seu conhecimento, claro.

Com uma taça de vinho branco às 9h à porta dum café e eu com um "expresso corto".

Como eu gostei deste teu escrito.
O outro registo que eu estava à espera.
Aparentemente não sabes escrever mal!

Fazes parte dos meus favoritos, não que isso te sirva para nada, mas, pelo menos para mim é bom sinal...

a ver vamos...

O texto também favoritei.

Abraço

Ps.: este é um registo que até o cheiramázedo aprovaria e teria inveja, por não ter escrito.


Enviado por Tópico
Rogério Beça
Publicado: 26/05/2024 16:22  Atualizado: 28/05/2024 20:29
Usuário desde: 06/11/2007
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Mensagens: 2026
 Re: Conversa que ficou
Boa tarde,
O que está escrito no fórum, apesar de ser um copypaste deste comentário, mais uns detalhes, é um texto do Espaço Crítico, que aconselho vivamente a participar.
Precisamos de mais pessoas a fazê-lo e parece-me bem capaz. Como qualquer outro, que amiúde não o faz por insegurança ou timidez.

Na realidade, o Espaço Crítico nestes moldes, foi uma ideia que surgiu duma conversa entre mim e o Benjamin Pó, sobre como alguns comentários mais elaborados podem ter interesse para os utilizadores e visitantes do site.

Com alguma facilidade, e por comparação com outros que se limitam a breves frases, numa tarde muito preenchida, esses comentários mais extensos, que poderiam ser interessantes, iriam cair rapidamente no esquecimento.

Aliás, como certos poemas.
Numa fase embrionária do site, alguns utilizadores publicavam 20 poemas, não dando a hipótese a mais ninguém para constar da página inicial (com mais visibilidade). A administração passou a limitar o número de poemas ao máximo 3 por cada 12 horas.

São dúvidas pertinentes que podem surgir a quem começa.

Abraço