Textos : 

O mundo do sr. Con

 
O MUNDO DO SR. CON – 2021

Oitavo dia do ano – quinta-feira
O corpo cansado e dolorido depois de quase uma hora soldando as grades de Gasparetto. Expostas na calçada. Olhava-as de relance com “O Hospital” nas mãos. Se quisesse e tivesse coragem e disposição as terminaria. Mas isso contrariaria seus princípios éticos. Trabalhar demais sempre lhe acarretava problemas. Portanto era melhor ler Hailey e a descrição de uma autopsia.
Foi salvo no finalzinho do expediente uma solda na bicicleta de Chilado – o vendedor de algodão doce. Doze reais para amainar seus desejos etílicos.
Depois da rotina no mercado e na loja do futuro compadre. Na pensão negociou um litro de vinho Gaúcho com a senhoria para paga-la no sábado. Requentou a torta.
No começo da tarde mudou o tempo. Nublou e começou a chover. O cheirinho de terra molhada. O barulho dos pingos estatelando-se no telhado e no terraço. Uma Glacial adormecia no congelador. No aconchego de seu quartinho na penumbra bebericava o vinho e lia Hailey.
- Fecha essa janela Seu Constantino está dando muito trovão e relâmpago – pediu-lhe medrosamente a senhoria que tinha pavor deles. Ela desligara a tv da sala e refugiou-se no quarto junto com Caçulinha cobrindo-se com o lençol.
Com trouxe o litro de vinho e o deixou ao lado da cama. As vezes assemelhava-se com seu mestre Bukowski - o mais underground dois escritores americanos. Trabalhou quatro anos no tribunal foi demitido a bem do serviço público – Faltava muito principalmente nas segundas – nessa época tinha família – abandonou tudo. Grande filha da puta. Por isso não reclamava de sua sina.
Secou o litro. Preparou o prato do almoço e foi para a sala assisti o jornal Hoje e ficou consternado com a triste noticia da morte do icônico Genival Lacerda. Como sobremesa a glacinha estupidamente gelada e duzentos pessoas morreram vitimas da Covid.
Nono-dia – sexta-feira
No banheiro cantarolou baixinho debaixo do chuveiro:
“Quem não conhece Severina Xique-Xique
Que montou uma boutique para a vida melhorar
.....
Ele tá de olho é na boutique dela”
A sua simplória homenagem ao grande ícone do forró tradicional Genival Lacerda.
Uma pausa para esfriar o transformador de solda. Quinze minutos depois voltou a ativa até a chegada do velho mestre Guilbert, parceiro de muitas patacoadas alcoolicas, hoje um respeitável cidadão temente a Jesus. Venceu a Covid depois de três semanas de puro sofrimento com todos malignos sintomas: dores intensas de cabeça e no corpo, febre e calafrio de bater o queixo – recuperou-se com Azitromicina, paracetamol e chá de boldo.
Um blackout ocorreu depois das oito que deixou toda ilha sem energia elétrica dando margem a varias teorias da conspiração, durou até ao meio-dia – depois que todos se preparavam para o pior. Os feirantes, vendedores de galinhas entupiram seus congeladores de gelo. Con recebeu duzentos e cincoenta reais de uma cliente como adiantamento de uma encomenda.
No mercado com uma cerveja na mão e o caderno na outra perambulou, ouvindo uns e outros, procurando inspiração para um novo projeto literário.
- Sabe guardar segredo? – perguntou um boyola novo assediando o barbeiro Biracy no banheiro do mercado, fingindo que lavava as mãos enquanto o visualizava.
E assim Con ia anotando pequenos acontecimentos corriqueiro e anormais do mercado.
Um bom ovo frito na banha de porco misturado no arroz branco.
As sete da noite as janelas e porta do terraço eram fechadas para evitar a fuga dos gatos abusados para a rua. Mas Con contrariava essa norma deixando aberta a sua do quarto.. nesses últimos meses vinha sofrendo de uma pequena insônia, dormindo as parcelas, nesses intervalos lia um pouco sofregamente, dessa vez foi Turguniev que lhe fez companhia em “Pais e Filhos”. Dormia bem mesmo quando estava bêbado....
Nono dia – sábado
Ao suspender a porta de rolo da oficina, sentiu uma fisgada dilacerante nas costas, na altura dos rins e depois uma dor que o obrigou a sentar-se na cadeira abacial para tomar um ar. Respirou fundo. Mesmo com essa dificuldade colocou as três folhas de janela na calçada, mudou de roupa, ligou o transformador de solda, deitou a ultima grade ao contrário e começou a solda-la. Quinze minuto depois tudo concluído, deu gracias a la vida.
Começo da tarde
A bomba d’agua enchendo a caixa baixa e a filha lavando as roupas no quintal. As oito fechou o atelier e seguiu para comprar os ferros do portão da irmã de Joãozinho mecânico da rua Bom Jesus. Tomou um susto ao saber dos novos preços dos ferros que aumentaram assustadoramente quase 100%. E o pior teria que repassar para os clientes com preços nada agradáveis. Pensou em mudar de ramo, mas fazer o quê? Dos duzentos e quarenta reais que levou, sobrou apenas vinte reais que dividiu com a senhoria. Gasparetto adiantou um vale de cincoenta reais e zarpou feliz com a Family para Alcantara. Com quitou-se com seus vizinhos Gordinho e a Pasteleira Dona Ciça.
Estirado no colchão depois de algumas latas pelo mercado, ouvia a Senado FM – na sala de jantar, a senhoria bem espirituosa viajava ao passado distante, narrando reminiscências da Casa Grande da rua Afonso Pena.
O terror de ficar sem uma caneta o obrigou a sair no meio da noite para compra-la. A dele sumiu misteriosamente de cima da cama, quando a procurou depois do jantar não a encontrou. Revirou tudo minunciosamente literalmente de cabeça para baixo, colchão, livros, cadernos. Entrou em pânico, era inadmissível ficar sem uma numa noite de sábado. – E agora poeta? – Coçou a rala barba grisalha, sentia-se como um viciado sem sua droga. Pensou em pedir emprestado. Desistiu. Corajosamente tomou a decisão de ir compra-la. Vestiu a bermuda e a camisa polo roxa. A senhoria estranhou ao vê-lo.
- Para onde o senhor vai nessa hora?
- Vou comprar uma caneta – respondeu abrindo a porta e a gata preta esgueirou-se por ela.
O movimento típico das noites de sábado – Zamba atendendo, a batateira agoniada, um moto-taxista comendo uma maça sentado sobre ela, tia Neneca ensaiando uns passos de regae, mamando uma cerveja em pé no bar de Zé Filho
Assustado encostou no finado Bispo, a filha mais nova que lhe atendeu – comprou uma fiada e retornou de imediato para a pensão para alivio da preocupada senhoria. Desnudou-se ficando apenas de calção e deitou-se, apanhou “O Lobo das Estepes” de Hesse e começou a relê-lo.

 
Autor
efemero25
Autor
 
Texto
Data
Leituras
34
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
0 pontos
0
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.