Poemas : 

Pedra e água

 
É como uma pedra na ribeira. Às vezes se afoga. Sonha com a estiagem e sobrevive de pequenos momentos em que a turbulência e fluxo da água a descobrem temporariamente... um lampejo de sol, um vislumbre do que seria a vida sob brisa suave do vento e o calor acolhedor das manhãs ensolaradas.

Ela não se resigna, sofre intempéries da água, se desfaz em seu fluxo, afunda, emerge momentaneamente, impotente num turbilhão implacável, indiferente e sem remorsos. Se desgasta aos poucos, continuamente perde a forma.

Impassível, todo dia é remodelada. Não se lembra mais de quem era... Apenas sabe, no âmago de seu interior rochoso: “esse polido não sou eu”. Como pode a água deformar as pedras?

Ela não se move. Está presa. Apenas um destino implacável a libertaria. Um terremoto, talvez. Quem sabe até uma tempestade violenta a moveria dali.

Mas para onde? E se sucumbisse ainda mais nas águas? Se fosse arrastada a um mergulho nas profundezas do oceano, perdendo de vez seus breves e preciosos momentos de sol e brisa? Pior! E se fosse quebrada durante o processo? Conseguiria viver partida? É possível existir em pedaços?

Dessas introspecções, surge pensamentos contenciosos mimetizando clareza mental. A pedra não se mistura à água. Não é sua amiga. Isso é certo! Mas é conhecida. Uma velha inimiga, que se não fosse a relação conflituosa consigo, certamente seria admirada.

A água é antagonizada porque sua natureza fluida não combina com a natureza estática, inerte, rígida da pedra. A resiliência sempre será inimiga natural da dureza. A solidez traz confiança.

Já a água se deixa levar, contorna, se ajusta a formas externas. Se infiltra onde não deveria, transborda quando menos esperamos. É tão imprevisível. Não é confiável. Sempre passa, nunca permanece. É traiçoeira, te atrai, mata tua sede, lava tua pele, mas te afoga se te descuidares.

Não! Não há negociação ou conciliação. Vai permanecer ali, vivendo de sonhos e pequenos momentos de sol e brisa, mas está convicta consigo: Pedra é pedra. Água é água.

 
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BenjamimH
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Enviado por Tópico
Benjamin Pó
Publicado: 30/08/2025 15:15  Atualizado: 30/08/2025 15:15
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 Pedra e água p/ BenjamimH
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Olha, olha, outro Benjamin! Só por isso, teria de comentar.

O certo é que o texto vale a pena, com momentos criativos como aquele em que a água -- normalmente símbolo de vida, pureza, verdade -- passa a metáfora de imprevisibilidade e de suspeição, visto que "é traiçoeira, te atrai, mata tua sede, lava tua pele, mas te afoga se te descuidares."

A propósito, deixo aqui uma cena do filme "Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo", em que duas personagens, mãe e filha, numa outra dimensão, ganham a forma de pedras e dialogam em silêncio. Não encontrei a versão legendada em português, por isso, coloco a tradução em baixo.



Joy?

Onde estamos?

Num dos universos onde não havia condições para a vida surgir.

Na verdade, a maioria é assim.

É agradável.

Sim.

Podemos ficar aqui quietas e tudo parece muito distante.

Joy?

Desculpa-me por ter estragado tudo.

Chiu...

Aqui, não tens de te preocupar com isso.

Sê apenas uma pedra.

Sinto-me tão estúpida...

Credo, por favor... Toda a gente é estúpida!

Pequenos seres humanos estúpidos.

Somos assim mesmo. Durante a maior parte da História, "sabíamos" que a Terra era o centro do universo. Matámos e torturámos pessoas que diziam o contrário.
Até descobrirmos que a Terra gira à volta do Sol, que é apenas um sol entre biliões deles.

E agora, olha para nós a tentarmos lidar com o facto de tudo isso existir num só universo entre sabe-se lá quantos. Cada nova descoberta é apenas um lembrete...

Somos todos pequenos e estúpidos. E sabe-se lá que grande descoberta virá a seguir para nos fazer sentir nacos de merda ainda mais pequenos.

Tento na língua.

A sério?

Estava a brincar. Era uma piada.

Ha ha ha.

Era a porra de uma piada!

Porra.

O que foi?

Estou presa nisto há tanto tempo... A viver tudo ao mesmo tempo, que esperava que visses algo que eu não vi. Que me convencesses que existe outro caminho.