Crónicas : 

Eu elogio, tu elogias, ele elogia

 
EU ELOGIO, TU ELOGIAS, ELE ELOGIA
Maria José Limeira

Enquanto estive em redação de jornal, briguei.
Fazia o tipo de jornalismo-guerrilha, enfrentando tudo e todos.
Num tempo em que era proibido contestar.
Onde havia polêmica e tumulto, eu estava no meio.
Nesse tempo, meu livro de cabeceira era o Código Penal Brasileiro, onde estavam meus limites para enfrentar as inúmeras ações judiciais impetradas contra mim, por conta de minhas palavras ferinas.
As pessoas queriam me ver na cadeia, a todo custo.
Quando me afastei do jornalismo, estava coberta de feridas. Algumas, incuráveis.
Depois que dei minha humilde contribuição à história das lutas sociais no País, recolhi-me à minha insignificância. Fui cuidar da minha família e dos meus filhos pequenos, que precisavam do meu amparo, escrever literatura ficcional, e minhas memórias, e
fazer Poesia.
Jurei a mim mesma não contestar mais nada, nem ninguém.
Mas, os jovens autores continuaram me procurando.
Queriam minha opinião sobre seus escritos.
Eram textos simplórios, na maioria desabafos, que eles chamavam de poemas.
Partindo do principio de que todo texto é bom, ainda que, em alguns detalhes, não prestem, eu distribuía elogios a torto e a direito, sem exceção.
Não os publicava diretamente na imprensa.
Entregava-os aos autores.
Eles que fizessem o uso que quisessem de minhas opiniões.
Geralmente, divulgavam meus elogios nos jornais locais.
Estava eu na maior tranqüilidade agindo assim, em paz com o mundo e comigo mesma, feliz da vida, quando dois fatos vieram atrapalhar meu torpor pastoral.
O primeiro fato.
Um poeta bissexto enviou-me seu primeiro livro, que escrevera com todo amor, dedicando-o a seu velho pai.
Eram textos abaixo da crítica.
Garatujas!
Queria que eu escrevesse o prefácio.
Fiquei em situação difícil.
Sem poder elogiar, e incapaz de dizer o que pensava, para não magoar o amigo, resolvi silenciar.
Passaram-se dois anos, após o que, recebi telefonema.
Era o dito cujo, procurando notícias do prefácio do seu livro.
Encostada contra a parede, não havia saída.
Disse-lhe que não tivera tempo de escrevê-lo.
Do outro lado da linha, uma voz irritada desencavou todos os palavrões do Aurélio contra mim, extensivos à minha pobre mãe já falecida.
Agüentei tudo calada. Conhecia a peça. Sabia de que era capaz.
Devolvi os originais através de portador. Sem o prefácio.
Alguns anos depois, o autor faleceu. De coma alcoólica. Sem publicar o livro.
O segundo fato acontecido.
Um amigo mandou-me livro de sua autoria, recém-publicado. Um romance, contando a saga de sua própria família.
Éramos amigos de muitos anos.
Enfrentáramos juntos os percalços da vida, comungando os mesmos ideais e militando no mesmo partido político.
Sua obra foi uma grata surpresa para mim. Eu desconhecia que ele era escritor.
Escrevi texto bonito, dando minha opinião sobre o livro. Mandei o escrito ao amigo através de portador.
O portador, num rasgo de generosidade, publicou meu texto no jornal, sem passar pelo crivo do autor.
O livro era bom, bem escrito. Teci-lhe muitos elogios.
Mas, no meio do foguetório, fiz uns reparos que não ocuparam mais de uma linha (apenas uma linha!), que se perdeu no todo.
Alguns dias depois, o autor me telefonou e disse:
-Por que a senhora está me perseguindo? De hoje em diante, não fale mais comigo!
Disse, e desligou, sem me dar tempo de responder.
Hoje, quando nos encontramos por acaso, na cidade, ele muda de calçada.
Vira o rosto para o outro lado.
Faz que não me vê.
Nosso passado lindo, de lutas, amizade e companheirismo, foi enterrado, por conta daquela única frase que escrevi de reparos a um texto.

(Do livro “Crônicas do amanhecer”).



 
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MariaJoséLimeira
 
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Enviado por Tópico
Rogério Beça
Publicado: 23/06/2008 13:21  Atualizado: 23/06/2008 13:21
Usuário desde: 06/11/2007
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Mensagens: 1943
 Re: Eu elogio, tu elogias, ele elogia
É um verbo sacana que toda a gente gosta.

Elogiar...

Texto para refletir acerca da relação que temos com os outros. Pessoal e profissional...

Gostei...

Ups! Um elogio...