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Brasil

 

No dealbar dos anos sessenta, os tais da outra história, já o menino Lovat singrava os atlânticos horizontes até às brasileiras praias. Pendurado à janela do navio atracado, agarrando nas sôfregas mãos o mundo trôpego das serpentinas do seu primeiro Carnaval, que de algures acima da vigia do camarote de segunda do Vera Cruz caíam, materializando a alegria na cidade do Rio de Janeiro.
Depois, ainda se lembrava do primeiro e escuro dia em São Paulo, a trepidante metrópole que lhe entupia os ouvidos de ruído e os poros de fina fuligem, tornando-se logicamente uma 'avis rara' para os novos coleguinhas, que chacoteavam dos seus desastrados movimentos, que rapidamente lhe continuaram a causar outras feridas, cedo lhe arejando o sangue.
Também aí a sua primeira experiência de fogo, a meio da noite acordado do sofá-cama e levado de esbugalhados olhos, balbuciando já na rua espantos, embrulhado em mantas, observandos das janelas do bonde as labaredas na fábrica e os vizinhos que cirandavam carregados de malas sobre o chão coberto de mangueiras. Também aí as primeiras políticas: a vassourinha do Jânio e a incongruência de Jango.
Em Santos, teve de frequentar um colégio de freiras, alternando o catecismo com a selvagem vida de rua, às pedradas aos moleques, trepando árvores e escalando muros. Acontecimento líquido de intensa euforia era a chuva de Verão, súbita e abundante, que deixava maravilhosas poças gigantes em que adorava conquistar a plena humidade.
Quando esquecia as lições de catequese e era castigado vingava-se, quer em sarcásticas imprecações do tipo "-Externato-carrapato: entra burro e sai macaco!", quer fazendo batota nas quermesses, de onde levava prendas sem pagar a senha. Bem feito, que o obrigavam a andar de calções azuis, camisa branca e lacinho, a cantar hinos, a fazer formaturas no pátio, e a ir de uniforme branquinho à missa, logo conspurcado na lama das bátegas, ignorando os sacramentos.
Lá ia aos poucos, de bilateral má vontade, sendo "civilizado dentro dos ocidentais bons princípios", com primeira comunhão e tudo, de vela na mão, valendo unicamente pelo encantamento dos acordes do órgão da igreja do Embaré...
Erin evoca sem pressa muitas outras recordações dos informais tempos que se seguiram, da vivência da liberdade dos Pampas, onde provavelmente ainda ontem Wirsung, o amigo, deambulava, observando, entre gritos do "quero-quero" e do "bem-te-vi", os darwinistas ninhos dos "joão-de-barro".


José Jorge Frade

Capítulo 8 de "Lúcido Mar"
 
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josejorgefrade
 
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