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Uma Casa sob o Rio

 
O vagabundo, sedutor, inclinou-se sobre o rio. Ficou longo tempo, imóvel, a observar a corrente, como se tentasse encontrar-se a si próprio no torvelinho das águas. A seguir, perguntou ao homem de cabelos revoltos pelo vento e barba de dois dias, aí reflectido:
— É um mundo paralelo, este?
— É o meu lugar secreto. — respondeu a outra metade.
— Eu gosto de vidas paralelas…
— O meu coração irá bater ao compasso do teu. — predisse o seu eu.
— E depois?
— Depois… Param os dois, para voltar a bater em uníssono. Um fica à espera do outro.
— Vamos ser nossos. Vamos sonhar! — exclamou subitamente o vagabundo com ar arrebatado.
— O barulho da realidade acordar-nos-á do sonho.
Para impedir que as palavras do rio cumprissem a profecia, o vagabundo, sem hesitar, mergulhou nele.
Uma mulher vestida de seda aproximou-se da margem. Uma orquídea selvagem adornava-lhe a juba negra.
A lua flutuava nas águas, tal qual uma incendiada flor de lótus. A figura líquida do vagabundo seduzia. E o seu alfabeto também.
— Há um beijo de chocolate nos nossos lábios, para saborearmos devagarinho…
— Encosto-me a ti. — murmurou a mulher — Tanto que quase me derreto nos teus braços quentes.
— Braços também eles derretidos pelo calor da tua pele. — acrescentou o vagabundo.
Corpo desfalecido…
— Beatriz… Beatriz… — a voz do vagabundo perdia-se na noite.
Gemidos baixos… Beatriz roçava o seu corpo esguio no infinito.
Corpos. Dois corpos, duas almas. Sussurros…
Uma alma. Um respirar.
Luar… Vinho… Rosas… Poesia…
Uma alma é uma pátria. E uma pátria é uma casa.
Um lobo — ou seria apenas o vento disfarçado de saltimbanco? — uivou, algures, na lua cheia de água. Os salgueiros estremeceram de terror e a armadura do tempo afogou-se, sem que o vagabundo pudesse, ou sequer quisesse, salvá-la.
— Gostas de vidas secretas? — indagou.
— A minha imaginação tem asas… — confessou Beatriz, com sensualidade.
— Só aqui vivo personagens secretas. — acrescentou o vagabundo que, tal como um camaleão, se disfarçava na corrente.
— Ninguém é verdadeiramente livre. São tantos os dias que passo no gorjear dos pássaros, que já me esqueci da voz dos homens… Numa outra vida fomos almas gémeas. — ao dizer isto, acariciou o dorso das águas, como se estas fossem um gato cinzento e lânguido.
— Numa outra vida fomos a mesma pessoa. — objectou o vagabundo — almas gémeas somos nesta, porque as minhas mãos de sol querem amadurecer a tua pele.
— Tu és um sedutor…
— E tu és seduzível! Um sedutor precisa de inspiração.
— Um poeta também.
— Eu sou um poeta do momento. Faço poesia com a vida.
— Não sei se a vida é uma papoila encarnada, se é uma saudade de ti em carne viva…
— Então, vamos os dois para o luar, com um cálice de vinho do Porto seguro nas mãos. Hei-de pintar os teus lábios de rubi e beber deles, como se sorvesse do Santo Graal a perfeição suprema.
Beatriz semicerrou os olhos, em êxtase.
— Tu não existes.
— Pois não. Sou apenas uma alma vagabunda.
— És um vagabundo como o vento, que se insinua no meu corpo e nos meus cabelos.
— E na tua alma também.
— És um estilhaço da minha alma.
— E tu da minha.
— Um dia, nós partimo-nos.
— Agora encontramo-nos para crescermos espiritualmente, percorrer caminhos de descoberta e abrir novos trilhos. Caminhos que ainda não existem… — o vagabundo interrompeu-se para escutar a canção das estrelas — É magnético. Os olhos atrair-se-ão até ficarem colados e irão, depois, atrair os corpos, que se colarão também.
— Isso é porque preciso ver-me nos teus olhos e tu nos meus. — argumentou Beatriz com convicção.
Como se não a tivesse ouvido, o vagabundo continuou a colocar na boca os seus pensamentos.
— Até que, húmidos, suados, os olhos e os corpos, numa amálgama de sentidos e de poemas, escorrerão um do outro.
— Encontrar-se-ão outra vez no chão e levantar-se-ão.
— O universo não existe. Só tu e eu encarnamos a realidade.
— Somos nós, o universo!
— Hoje és o meu universo. Somos dois mundos prestes a colidir. Nada irá sobreviver.
— A vida sobrevive-nos.
Um barco azul passou rente ao vagabundo. As velas esvoaçavam, aflitas, como as asas das borboletas. Nenhum dos dois apanhou o barco. A vida acenou-lhes, de longe, sem nunca largar o leme.
— Fundir-nos-emos. Ficaremos do mesmo tamanho, mas mais brilhantes.
— Se calhar, porque a poeira das estrelas irá cair sobre nós… — aventurou dizer Beatriz, enquanto passeava as suas íris de avelã pela via láctea. Por isso, não sabia dizer se fora ela ou se fora o eco das coisas passadas, quem repetiu:
— És um sedutor.
— Mas, foste tu quem me seduziu.
Beatriz abeirou-se do lodo, o qual tingia as margens, e pediu, num convite cheio de volúpia:
— Quero sentir a tua barba arranhar-me a pele.
— E eu quero sentir-me tocado… Sentir-te arranhada… Tocar-te… Sentir que me estás a sentir… Queimar a tua pele com a minha respiração… Suar… A seguir arrefecê-la com a boca… Lamber o teu suor…
— A tua essência é que me toca. Dá-me alma.
— Quando aninhas a tua alma nos meus olhos, o mundo detém-se. Ouço só o bater do teu coração, porque o meu adormece nas dobras do teu corpo.
— O meu corpo é como este rio, dá vida ao teu coração.
— Por isso, mergulhei sem Norte no teu rio.
— Vem ver o meu fundo e o que nele cresce. Banha-te em mim… Fica dentro de mim. Serei a tua concha, o teu abrigo.
O vagabundo, mais sedutor do que nunca, estendeu a mão a Beatriz. Esta, libertando-se da seda que a envolvia, imergiu na misteriosa floresta de limos.
O pio de uma coruja feriu a noite, transformada em madrugada.
— Decerto, a ave matará a poesia… — segredou Beatriz no ouvido do vagabundo. Os seus corpos confundiram-se, metamorfoseando-se numa raiz de marfim.
— A poesia é para matar. — sentenciou o vagabundo — A morte é paixão!
Um peixe fugido do arco-íris veio aquietar-se nas reentrâncias daquela estranha raiz.
— Como é bom retornar a casa…
Os olhos da Beatriz aprisionaram o olhar do vagabundo. Ou será que foi ao contrário? Onde começava um e acabava o outro?
Ouviu-se o canto de Oxum — a deusa do rio — e, fecundas, as águas principiaram a adormecer.
O vagabundo soprou a lua e esta, tal qual a chama de uma vela, apagou-se. Do céu, começaram a chover estrelas em pó.
No leito do rio, uma pálida raiz de marfim brilhou mais do que todas as outras…

 
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LurdesBreda
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 20/07/2008 13:56  Atualizado: 20/07/2008 13:56
 Re: Uma Casa sob o Rio
Lurdes,
teu texto é magnífico! Mergulhei profundamente nele.
Belíssimo. Aqui no Brasil, a deusa das águas dos rios chama-se Iara, uma divindade que encanta os pescadores em noites de lua cheia, seduzindo-os até que se joguem nas águas, por amor a ela.
Bem-vinda com toda essa carga poética.