Contos : 

A Flor do Canto do Jardim

 
(baseado num cartoon de Quino)

Há muitos anos atrás, num dia de ócio adulto e das brincadeiras de crianças que do ócio nunca são clientes, andava eu esquecendo o tempo repousando pela casa quando o meu filho de tenra idade me veio mostrar um desenho. Apesar do seu traço ainda incerto e da simplicidade rude das linhas, o desenho pintava na sua jovem face uma expressão de puro orgulho. Estava mesmo feliz com aquela obra que lhe tinha demorado tempo demais numa tarde sempre curta como aquelas tardes de Verão.
- Vês? Desenhei aquela flor do canto do jardim!
Realmente era a flor do canto do jardim. Aquela voluptuosa flor de caule grosso que crescia na esquina mais luminosa do pequeno jardim defronte da casa. Era vermelha e estava mal desenhada. Mas o esforço tinha sido demasiado para reparos desse tipo.
- Está muito bem! Ficou mesmo parecido. Mas sabes o que é mesmo importante que tu consigas desenhar nos dias de hoje? – perguntei eu enquanto lhe estendia a mão para ele me dar o papel.
Então peguei na folha, desenhei com o lápis de cor preta um grande cifrão no lado de trás do papel, mostrei-lhe e disse: É isto!

Houve uma ocasião em que fiquei de o ir buscar à escola. Era um dia ventoso de Outono, lembro-me bem das folhas que tinham caído para cima do meu carro quando nele entrei já atrasado para buscar o meu filho no caminho de casa. Lembro-me dos pequenos montes de folhas em cima da chapa de preto brilhante e das que ficaram presas nos limpa pára-brisas. A escola era numa rua muito perto da casa onde vivíamos, era virada para uma grande avenida por onde uns metros mais à frente surgia a pequena rua de bairro pacato onde morávamos.
Quando finalmente cheguei, atrasadíssimo por causa de um péssimo dia de trabalho lá no banco, encontrei-o sentado no degrau da entrada do recinto, encostado às grades. Parei o carro em frente dele, encostado ao passeio, abri o vidro do lado do passageiro e chamei-o. Já ele se encaminhava para o carro quando viu uma senhora de salto alto e saia justa a passar por um homem de péssimo aspecto que, encostado a uma árvore, estendia a mão aos transeuntes e balbuciava qualquer coisa.
O meu filho ficou parado a olhar, primeiro para a senhora que já se afastava com passos firmes e depois para o homem que tornou a devolver o olhar vazio de indignidade de pedinte para o chão sujo do passeio.
Chamei-o mas ele continuava a olhar para o desgraçado. Então saí do carro e fui buscá-lo pela mão para entrar pela porta que abri em frente dele. Durante isto não sei se ele continuava ou não a olhar para o desprezível homem, só sei que tinha de lhe dizer qualquer coisa, mas apenas saiu: Meu filho, nunca gastes dinheiro mal gasto com quem não te dê lucros.

Lembro-me duma vez, anos mais tarde, que estávamos a ver televisão em família e, numa das notícias daquele dia, vimos um grupo de homens e mulheres em manifestação pelas ruas de uma qualquer cidade do nosso país. A reportagem mostrava imagens de pessoas que gritavam frases de indignação e levantavam cartazes que diziam coisas como “Pão e Trabalho!” e “Justiça para os mais pobres!”. Lembro-me mesmo bem de como naquele momento em que o meu filho me disse “Pai, esta gente é fracassada e parasita, não é?” senti-me tão orgulhoso como aquela criança de à anos que tinha acabado de desenhar a grande flor do canto do jardim.
Embora ainda estivesse mal desenhado tinha custado um esforço demasiado grande para qualquer tipo de reparos. Por isso olhei para ele a sorrir e disse apenas: Vejo que começas a entender.

E eis que o meu querido filho cresceu e finalmente se licenciou. É agora um excelente engenheiro e controla toda a produtividade de uma fábrica de grandes máquinas, principalmente daquelas utilizadas em construção civil e no equipamento de outras fábricas.
Um dia, numa visita ao seu local de trabalho, confessou-me: Estive a pensar… Se utilizássemos peças usadas neste ponto baixaríamos a qualidade, é certo, mas quem é que vai espreitar para dentro de um motor de uma máquina destas dimensões? Até somos nós que depois fazemos a manutenção! E assim duplicaríamos os lucros da fábrica, que é o mais importante!
Ao ouvir isto fiquei mais orgulhoso que nunca pelo meu querido filho e amei-o mais que nunca. Lembrei-me outra vez daquela tarde de Verão e da flor do canto do jardim que foi o começo da formação que o levou a ser agora o homem que é!
Depois de me despedir dele, enquanto ia saindo das instalações da fábrica, estava tão feliz e sentia-me tão realizado por saber que o meu filho me tinha saído bom, que nem me apercebi que o chão metálico da pequena plataforma que dava para as escadas estava molhado e escorreguei, caindo pelos degraus.
Nas longas semanas que estive em convalescença na cama do hospital ouvia várias conversas entre o meu filho e o médico que me acompanhava, numa delas o doutor disse-lhe que as fracturas não eram graves mas que o internamento ia ser longo e caro.
O meu filho olhou para mim de relance antes de se virar para o médico: Mas quando é que o meu pai poderá ir para casa? É que, sabe, o seguro da fábrica não cobre nenhuma destas despesas. Optámos por uma modalidade mais barata que só cobre os acidentes com os empregados.
A resposta não foi a que o meu filho queria ouvir. Aparentemente eu iria precisar de reabilitação, de enfermeiras e de fisioterapeutas, mesmo depois de estar em casa.
E é por isso que eu agora lhe estou a contar isto a si, aqui, na rua, já quase sem me poder mexer por estar cada vez pior da minha saúde. E é por isso que lhe peço. Por favor! Dê-me uma esmolinha que eu tenho um filho que me saiu bom!...


Emanuel Madalena

 
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EmanuelMadalena
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 15/05/2007 17:14  Atualizado: 15/05/2007 17:14
 Re: A Flor do Canto do Jardim
Muito bom a prosear também, Emanuel. É um prazer conhecer o seu trabalho e sejo muito bem-vindo aqui.

Enviado por Tópico
goretidias
Publicado: 15/05/2007 18:48  Atualizado: 15/05/2007 18:48
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 Re: A Flor do Canto do Jardim
Infelizmente, o que parece ser motivo de orgulho se transforma nisto...
Um óptimo conto!
Um abraço