Perda
Dói-me a balada do piano,
há tanto que me fazes falta.
A música murmura-me ondas revoltas,
não há paz nesse mundo abafado.
Há uma nostalgia tocada,
uma asa minha quebrada ao nascer,
um corpo que já não quero,
um prazer que me desgosta,
Não sei se é da maldita lágrima,
que me falta na queda facial,
nem se é a cama vazia,
que me amedronta em cada noite diária,
nem se é a chuva cansada,
que abunda lá fora.
Não sei se são os recantos da pele,
que me cinzelam o olhar,
nem se é do sufoco nublado,
de não te ter aqui.
Flores perfumadas
Perfumo-me no encantamento doce da palavra,
uma cor de esperança desce sobre mim,
respiro um ar luminoso,
arde-se-me dentro o bater do coração.
Pulsam as neves lá fora,
os ventos, tempestades de ilusão,
chuvas de sonho, calma, paz encontrada,
ânsia abafada, uma noite pacífica.
Traz-me flores perfumadas,
beijos em alecrim florido nos montes,
giestas que cantam,
melodias esquecidas,
uma paixão por mim, quando te sinto.
Mergulho na noite
Mergulho na noite
Uma jangada apagada,
abafada no nada,
um espelho de água,
movido pela brisa lenta.
Um mergulhar em silêncio,
numa noite quente,
uma água cálida, transparente na cor,
um cofre fechado, de pérolas preenchido.
Uma luz que se extingue,
um luar que me nasce,
um cordão umbilical,
cortado à nascença.
Um sangue melado, doce, infantil,
um mergulho nocturno,
numa floresta molhada,
num claustro profundo, silenciado.
Uma caravana que passa,
moribundos lá dentro,
uma mó de um moinho,
cansado, dormente.
Um mergulho nocturno,
infantil na passagem,
um milhafre soturno,
frases quebradas, uma miragem
Uma história perdida,
achada numa pele qualquer,
inscrições tatuadas,
num cabelo de mulher.
Um crescente que nasce,
que morre, que se perde,
uma ausência que passe,
uma dor que se leve.
Oceano Divino
Oceano Divino
(Ano 2006, Acrílico sobre tela e tinta de prata, 100x80 cm, Colecção Particular)
Profundo e azul oceano de imagens e quimeras há muito esquecidas.
Por quem me tomas especial, se nada sou e ainda a tudo pertenço?
De longe avisto a distância que me separa do abismo dos céus.
De perto esqueço de que molde nasci e que pálpebras me contemplam.
Quero para mim o silêncio das escuras noites.
Quero para mim a frescura dos muitos nascimentos esquecidos.
De longe ou de perto, ainda contemplo a imensidão dos céus,
quando de Luz e sombras se carregam,
em dias de tempestade.
Não sou sombra
Dilacera-se-me a Alma, parece não haver esperança,
quando me vou para fora da Luz, a treva busca-me,
procuro incessante, a busca, pela constância,
o equilíbrio amansa-me, a confusão amedronta-me.
Ainda conheço pouco dos meus medos, são tantos,
alguns acompanham-me há muito, outros são recentes,
vadios, fastidiosos, cansados no oculto pensamento,
sobressaí de mim, um vulcão fumegante, torpe.
Sempre te busquei, luminosa, para que ardesses,
em mim, dentro, comungada na minha pele,
nunca desejei que saísses, que te ausentasses,
hoje vives em mim, desejava que para sempre.
Torna-se claro, uma dimensão escondida, fugidia,
mas logo te acompanho nas manhãs novas,
não mais me amedronto, sou eu, Luz, Amor,
chama-lhe o que quiseres, não sou sombra.
Fome materna
Mãe,
espreita-me o olhar
fecunda meu ventre incolor,
saceia a minha fome do toque,
acaricia a minha pele infantil,
beija-me as lágrimas antigas,
luta comigo nas noites por dormir,
fica a meu lado,
adormece-me em ti,
adorna-me com flores secas,
canta-me uma melodia,
embala-me,
sou sôfrego pela tua mão,
respira-me o ar que não encontro,
nos soluços da saudade,
da falta, da perda, da liberdade sã,
Mãe,
ama-me, fica em mim, dá-me cansaço,
há uma tortura em mim que não termina nem acaba.
(dedicado a minha irmã Egéria)
Esta madrugada os campos acordaram gelados
Parecia uma visão.
Era Inverno dentro de mim.
As chamas acesas há muito tinham deixado de arder.
Em mim agora gelaram as neves.
Uivei, oculto, pela dor que desapareceu.
Deixei que me levassem as aves de rapina.
Deitei-me nas entranhas da terra, acolhido pelas árvores mansas.
As águas haviam lançado seu feitiço sobre mim.
Adormeci para acordar. Acordei para voltar a adormecer.
Era de manhã e o dia clareava.
Esta madrugada os campos acordaram gelados.
Um beijo numa foice
Um beijo numa foice
Estrangeiro mar, quando me falha a voz,
recinto fechado, absurda calma lenta, atroz.
Revolto pensamento, obscuro num encontro,
uma porta vazia, um andar, coxo, meio tonto.
Um vento incómodo, uma luz que se deita,
uma chama inquieta, uma língua rarefeita.
Uma mó de café, trabalhada na noite,
um sabor de caramelo, um beijo numa foice.
Um fardo de ervas de cheiro, na maresia florida,
na folhagem murcha, acastanhada, uma tundra de gelosia.
Caminhos pelo sangue, veias andadas por peregrinos,
assobios no ar, um esvoaçar de tempos idos.
Horas que não passam, comboios que não chegam,
estações esquecidas, tão abandonadas que me cegam.
Olhares mortos, poisados em mim,
alvoradas que me tocam, em sons de cetim.
Canção de embalar I
Dou-me assim, sou um repente,
um vento passageiro, nos teus dedos aprisionado,
uma brisa voraz, frescura num rosto teu,
um seio de prazer, mantido em segredo,
um encontro alado e doce, numa noite apagada,
um calor que não arde, numa palavra dita em silêncio,
uma flor que não desabrocha, nascida numa rocha agreste,
uma candeia iluminada, numa chama acesa,
num carreiro sem peregrinos,
um casebre escuro e lúgubre,
um caule de uma flor recém-nascida,
uma raiz de uma árvore anciã,
uma travessia de um rio, navegado no adormecer,
uma cascata num ribeiro manso, numa corrente sem paragem,
uma lua cheia no céu estrelado,
uma nuvem passageira, numa aragem delicada,
uma chuva dourada,
molhada nos teus cabelos.
Pastoreio de almas
O dia está cinza e não me apetece sonhar,
rasgo papéis da última noite,
lanço-os no fogo que arde,
sacudo o albornoz e a desdita que parte.
Ando curvado, seco e tresmalhado,
não há pasto que me saceie,
nem pastor que me guarde,
sou indomável, um coração ansioso, crescente,
uma lua em uma candeia, nova, cheia, antiga.
Navego céus de fogo, enciumados pela neve,
consumo-me nas neblinas densas,
nos pântanos noctívagos,
sou ave de caça furtiva, esguia na solidão.
Há um pastoreio de almas que em mim repousam,
que se abrigam das tempestades da colheita,
que me alugam para o prazer,
e me abandonam na satisfação consumada.