Vida e Obra |
em 07/03/2013 15:58:23 (1964 leituras) |
Gustavo de Paula Teixeira (São Pedro, 4 de Março de 1881 — São Pedro, 22 de Setembro de 1937) foi um poeta brasileiro, de tendências literárias entre o Parnasianismo e Simbolismo, peculiares as primeiras décadas do Século XX.
Biografia
O poeta Gustavo Teixeira nasceu em São Pedro, município de São Paulo em 4 de março de 1881, no sítio São Francisco. Conhecido como o Poeta das Rosas, estudou suas primeiras letras em sua própria casa com a mãe, que era professora, com o pai, um ex-seminarista, tendo também influências dos irmãos mais velhos. Aos 12 anos começou a fazer versos. Em 1898 atuou como professor particular, aos 17 anos de idade, para moradores da Fazenda Campestre. Em 1901 mudou-se para São Paulo, capital, onde continuou seus estudos, afeiçoando seu gosto artístico e pretendendo fazer um curso superior. Publicou os primeiros poemas, notadamente sonetos no Correio Paulistano e colaborou para jornais de Piracicaba e Campinas. Na capital, além do Correio, escrevia também para o Comércio de São Paulo, e para várias revistas culturais existentes na época. Seus versos foram parar em Portugal, sendo ainda traduzidos para o sueco, e publicados em jornais de Estocolmo. Fizera amizades com poetas como Martins Fontes e Amadeu Amaral, além do futuro político brasileiro Júlio Prestes. De personalidade retraída e tímida, não se adaptou a realidade da capital paulista retornando a São Pedro em 1905, ocupando o cargo de Secretário da Câmara Municipal e da Prefeitura de São Pedro, função modesta que cumpriu até o fim da vida. Gustavo Teixeira publicou dois livros apenas em vida. Ementário, publicado em 1908, trazia um prefácio de Vicente de Carvalho e poemas nos estilos romântico e parnasiano, notadamente utilizando versos alexandrinos, comuns à sua época. Em Poemas Líricos, de 1925, suas composições passaram a predominar em estilo através da estética simbolista. Um vultoso material literário ficou inédito, pois não haviam sido publicados quando ele morreu. Em julho de 1937 foi eleito à revelia para a Academia Paulista de Letras, como sucessor de Paulo Setúbal, passando a ocupar a cadeira de número 10, cujo patrono é Cesário Mota Jr., e o fundador, o Dr. Eduardo Guimarães. Gustavo Teixeira morreu em São Pedro, vítima de pneumonia, em 22 de setembro de 1937, antes de tomar posse na cadeira da Academia. Curiosamente, faleceu tendo à sua cabeceira, por desígnio do destino a figura do poeta e escritor Oswald de Andrade. Na altura de seu falecimento, Gustavo Teixeira dedicava-se a escrever o livro Último Evangelho (1934-1937), uma coleção de mais de duzentos sonetos inspirados a passagens de figuras bíblicas, descritas nos evangelhos do Novo Testamento. Postumamente, em 1959 a Editora Anhambi publicou a edição das Poesias Completas de Gustavo Teixeira, prefaciadas por Cassiano Ricardo, reunindo toda a obra poética do autor, sendo reeditadas em 1981 (ano do centenário do poeta) e 1998. O poeta são-pedrense foi agraciado em 1999 com o título post mortem por seus méritos humanos e poéticos, e, de acordo com os estatutos da Academia Internacional de Ciências, Letras, Artes e Filosofia do Rio de Janeiro, com o título do Colar da Ordem Poeta da Humanidade.
Obras
Ementário (1908) – Tipografia Maré, São Paulo Poemas Líricos (1925) Poesias Completas (1959) - Com o prefácio de Cassiano Ricardo - Editora Anhambi - São Paulo. Poesias Completas (1998) - Com o prefácio de Maria de Lourdes Teixeira, com 527 páginas de poesia.
* Fonte: wikipédia e do Livro Poesias Completas de Gustavo Teixeira - Terceira Edição de 1998. |
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Minha Poesia |
em 25/02/2013 22:30:57 (1508 leituras) |
Minha Poesia
minha poesia não foi educada na escola de bilac e nunca será convidada para o chá dos imortais da academia brasileira de letras
minha poesia anda descalça pelas ruas do centro velho de são paulo nenhum tradutor francês perderá seu tempo debruçado sobre ela nem será lembrada nos saraus familiares não a dirão nas escolas nos dias de festas cívicas depois que a bandeira nacional onde se lê Ordem e Progresso for hasteada por uma menina loura
minha poesia sai todos os dias muito cedo da favela de heliópolis pega ônibus lotado desce pela porta da frente sem pagar a passagem e vai vender balas no cruzamento da brasil com a rebouças minha poesia é aquela mulher despudorada que se oferece a qualquer um sem cerimônia se bobear assalta e é capaz até de matar minha poesia se alimenta do lixo das palavras podres proibidas que não cabem na boca das pessoas de bem e por isso deve ser execrada de todas as antologias e condenada a trinta anos de silêncio
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Tradução italiana de Manuela Colombo
La mia poesia
la mia poesia non è stata educata alla scuola di bilac e non sarà mai invitata al tè degli immortali dell’accademia brasiliana delle lettere
la mia poesia cammina scalza per le strade del centro storico di san paolo nessun traduttore francese perderà il suo tempo chino su di lei né sarà ricordata nei simposi familiari non la reciteranno nelle scuole nei giorni delle feste comunali dopo che la bandiera nazionale dove si legge Ordine e Progresso sarà stata issata da una bambina bionda
la mia poesia esce tutti i giorni molto presto dalla favela di heliópolis prende l’autobus affollato esce dalla porta davanti senza pagare il biglietto e va a vendere caramelle all’incrocio di viale brasile con rebouças
la mia poesia è quella femmina spudorata che si offre a chiunque senza cerimonie se le gira assale ed è anche capace di ammazzare la mia poesia si alimenta dei rifiuti delle parole schifezze proibite che non si addicono alla bocca delle persone per bene e perciò dev’essere bandita da tutte le antologie e condannata a trent’anni di silenzio |
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Soneto 23 |
em 13/02/2013 00:39:46 (5770 leituras) |
~ Soneto 23 ~ Como no palco o ator que é imperfeito Faz mal o seu papel só por temor, Ou quem, por ter repleto de ódio o peito Vê o coração quebrar-se num tremor, Em mim, por timidez, fica omitido O rito mais solene da paixão; E o meu amor eu vejo enfraquecido, Vergado pela própria dimensão. Seja meu livro então minha eloqüência, Arauto mudo do que diz meu peito, Que implora amor e busca recompensa Mais que a língua que mais o tenha feito. Saiba ler o que escreve o amor calado: Ouvir com os olhos é do amor o fado.
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O Cão Sem Plumas |
em 13/02/2013 00:34:19 (1630 leituras) |
O Cão Sem Plumas
A cidade é passada pelo rio como uma rua é passada por um cachorro; uma fruta por uma espada.
O rio ora lembrava a língua mansa de um cão ora o ventre triste de um cão, ora o outro rio de aquoso pano sujo dos olhos de um cão.
Aquele rio era como um cão sem plumas. Nada sabia da chuva azul, da fonte cor-de-rosa, da água do copo de água, da água de cântaro, dos peixes de água, da brisa na água.
Sabia dos caranguejos de lodo e ferrugem.
Sabia da lama como de uma mucosa. Devia saber dos povos. Sabia seguramente da mulher febril que habita as ostras.
Aquele rio jamais se abre aos peixes, ao brilho, à inquietação de faca que há nos peixes. Jamais se abre em peixes. |
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Um poema exemplar |
em 01/02/2013 22:05:38 (1859 leituras) |
Um poema exemplar: em linhas como:
«Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,
Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,
Saber que existe o mar e existem praias nuas,
Montanhas sem nome e planícies mais vastas
Que o mais vasto desejo,
E eu estou em ti fechada e apenas vejo
Os muros e as paredes e não vejo
Nem o crescer do mar nem o mudar das luas.
Saber que tomas em ti a minha vida
E que arrastas pela sombra das paredes
A minha alma que fora prometida
Às ondas brancas e às florestas verdes»
(Sophia Andresen «Cidade», Livro Sexto) |
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O Homem que Contempla |
em 17/11/2012 14:18:02 (2792 leituras) |
Vejo que as tempestades vêm aí pelas árvores que, à medida que os dias se tomam mornos, batem nas minhas janelas assustadas e ouço as distâncias dizerem coisas que não sei suportar sem um amigo, que não posso amar sem uma irmã.
E a tempestade rodopia, e transforma tudo, atravessa a floresta e o tempo e tudo parece sem idade: a paisagem, como um verso do saltério, é pujança, ardor, eternidade.
Que pequeno é aquilo contra que lutamos, como é imenso, o que contra nós luta; se nos deixássemos, como fazem as coisas, assaltar assim pela grande tempestade, — chegaríamos longe e seríamos anónimos.
Triunfamos sobre o que é Pequeno e o próprio êxito torna-nos pequenos. Nem o Eterno nem o Extraordinário serão derrotados por nós. Este é o anjo que aparecia aos lutadores do Antigo Testamento: quando os nervos dos seus adversários na luta ficavam tensos e como metal, sentia-os ele debaixo dos seus dedos como cordas tocando profundas melodias.
Aquele que venceu este anjo que tantas vezes renunciou à luta. esse caminha erecto, justificado, e sai grande daquela dura mão que, como se o esculpisse, se estreitou à sua volta. Os triunfos já não o tentam. O seu crescimento é: ser o profundamente vencido por algo cada vez maior.
Rainer Maria Rilke, in "O Livro das Imagens" Tradução de Maria João Costa Pereira |
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Se tudo que há é mentira |
em 12/11/2012 14:10:11 (5659 leituras) |
Se tudo o que há é mentira É mentira tudo o que há. De nada nada se tira, A nada nada se dá.
Se tanto faz que eu suponha Uma coisa ou não com fé, Suponho-a se ela é risonha, Se não é, suponho que é.
Que o grande jeito da vida É pôr a vida com jeito. Fana a rosa não colhida Como a rosa posta ao peito.
Mais vale é o mais valer, Que o resto ortigas o cobrem E só se cumpra o dever Para que as palavras sobrem. |
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Escada sem corrimão |
em 08/11/2012 15:45:06 (5215 leituras) |
É uma escada em caracol E que não tem corrimão. Vai a caminho do Sol Mas nunca passa do chão. Os degraus, quanto mais altos, Mais estragados estão, Nem sustos nem sobressaltos servem sequer de lição. Quem tem medo não a sobe Quem tem sonhos também não. Há quem chegue a deitar fora O lastro do coração. Sobe-se numa corrida. Corre-se p'rigos em vão. Adivinhaste: é a vida A escada sem corrimão. |
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Idade Madura |
em 05/11/2012 17:11:02 (3256 leituras) |
As lições da infância desaprendidas na idade madura. Já não quero palavras, nem delas careço. Tenho todos os elementos Ao alcance do braço. Todas as frutas e consentimentos. Nenhum desejo débil. Nem mesmo sinto falta do que me completa e é quase sempre melancólico. Estou solto no mundo largo. Lúcido cavalo com substância de anjo circula através de mim. Sou varado pela noite, atravesso os lagos frios, Absorvo epopéia e carne, bebo tudo, desfaço tudo, torno a criar, a esquecer-me: Durmo agora, recomeço ontem.
De longe, vieram chamar-me. Havia fogo na mata. Nada pude fazer, nem tinha vontade. Toda a água que possuía irrigava jardins particulares De atletas retirados, freiras surdas, funcionários demitidos.
Nisso, vieram os pássaros, rubros sufocados, sem canto, e pousaram a esmo. Todos se transformaram em pedra. Já não sinto piedade.
Antes de mim outros poetas, depois de mim outros e outros estão cantando a morte e a prisão. Moças fatigadas se entregam, soldados se matam No centro da cidade vencida. Resisto e penso numa terra enfim despojada de plantas inúteis, num país extraordinariamente, nu e terno, qualquer coisa de melodioso, não obstante mudo, além dos desertos onde passam tropas, dos morros onde alguém colocou bandeiras com enigmas, e resolvo embriagar-me.
Já não dirão que estou resignado e perdi os melhores dias. Dentro de mim, bem no fundo, Há reservas colossais de tempo, Futuro, pós-futuro, pretérito, Há domingos, regatas, procissões, Há mitos proletários, condutos subterrâneos, Janelas em febre, massas da água salgada, meditação e sarcasmo.
Ninguém me fará calar, gritarei sempre que se abafe um prazer, apontarei os desanimados, negociarei em voz baixa com os conspiradores, transmitirei recados que não se ousa dar nem receber, serei, no circo, o palhaço, serei, médico, faca de pão, remédio, toalha, serei bonde, barco, loja de calçados, igreja, enxovia, serei as coisas mais ordinárias e humanas, e também as excepcionais: tudo depende da hora e de certa inclinação feérica, viva em mim qual um inseto.
Idade madura em olhos, receitas e pés, ela me invade com sua maré de ciências afinal superadas. Posso desprezar ou querer os institutos, as lendas, descobri na pele certos sinais que aos vinte anos não via.
Eles dizem o caminho, embora também se acovardem em face a tanta claridade roubada ao tempo. Mas eu sigo, cada vez menos solitário, em ruas extremamente dispersas, transito no canto homem ou da máquina que roda, aborreço-me de tanta riqueza, jogo-a toda por um número de casa, e ganho.
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Dois Rumos |
em 31/10/2012 20:34:10 (2773 leituras) |
Mentir, eis o problema: minto de vez em quando ou sempre, por sistema?
Se mentir todo dia, erguerei um castelo em alta serrania
contra toda escalada, e mais ninguém no mundo me atira seta ervada?
Livre estarei, e dentro de mim outra verdade rebrilhará no centro?
Ou mentirei apenas no varejo da vida, sem alívio de penas,
sem suporte e armadura ante o império dos grandes, frágil, frágil criatura?
Pensarei ainda nisto. Por enquanto não sei se me exponho ou resisto,
se componho um casulo e nele me agasalho, tornando o resto nulo,
ou adiro à suposta verdade contingente que, de verdade, mente.
Carlos Drummond de Andrade, in 'Boitempo' |
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É Preciso Restaurar o Homem |
em 30/10/2012 16:18:13 (2336 leituras) |
A minha civilização repousa sobre o culto do Homem através dos indivíduos. Teve o desígnio, durante séculos, de mostrar o Homem, assim como ensinou a distinguir uma catedral através das pedras. Pregou esse Homem que dominava o indivíduo... Porque o Homem da minha civilização não se define através dos homens. São os homens que se definem através dele. Há nele, como em todo o Ser, qualquer coisa que os materiais que o compõem não explicam. Uma catedral é uma coisa muito diferente de uma soma de pedras. É geometria e arquitectura. Não são as pedras que a definem, é ela que enriquece as pedras com o seu próprio significado. Essas pedras ficam enobrecidas por serem pedras de uma catedral. As pedras mais diversas servem a sua unidade. A catedral as absorve, até às gárgulas mais horrendas, no seu cântico. Mas, pouco a pouco, esqueci a minha verdade. Julguei que o Homem resumia os homens, tal como a Pedra resume as pedras. Confundi catedral e soma de pedras, e, pouco a pouco, a herança desvaneceu-se. É preciso restaurar o Homem. Ele é a essência da minha cultura. Ele é a chave da minha Comunidade. Ele é o princípio da minha vitória.
Antoine de Saint-Exupéry, in 'Piloto de Guerra' |
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Evolução |
em 16/10/2012 18:52:17 (2277 leituras) |
Fui rocha em tempo, e fui no mundo antigo tronco ou ramo na incógnita floresta... Onda, espumei, quebrando-me na aresta Do granito, antiquíssimo inimigo...
Rugi, fera talvez, buscando abrigo Na caverna que ensombra urze e giesta; O, monstro primitivo, ergui a testa No limoso paúl, glauco pascigo...
Hoje sou homem, e na sombra enorme Vejo, a meus pés, a escada multiforme, Que desce, em espirais, da imensidade...
Interrogo o infinito e às vezes choro... Mas estendendo as mãos no vácuo, adoro E aspiro unicamente à liberdade.
Antero de Quental, in "Sonetos"
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O ameaçado |
em 09/10/2012 20:58:31 (8530 leituras) |
É o amor. Terei de me esconder ou fugir. Crescem as paredes de seu cárcere, como em um sonho atroz.
A bela máscara mudou, mas como sempre é a única. De que me servirão meus talismãs: o exercício das letras, a vaga erudição, o aprendizado das palavras que usou o vago norte para cantar seus mares e suas espadas, a serena amizade, as galerias da biblioteca, as coisas comuns, os hábitos, o jovem amor de minha mãe, a sombra militar de meus mortos, a noite intemporal, o gosto do sonho?
Estar ou não é a medida do meu tempo. O cântaro já se quebra sobre a fonte, já se levanta o homem à voz da ave, já escureceram os que olham pelas janelas, mas a sombra não trouxe a paz.
É, eu sei, é o amor: a ansiedade e o alívio de ouvir tua voz, espera e a memória, o horror de viver o sucessivo. É o amor com suas mitologias, com suas pequenas magias inúteis. Há uma esquina pela qual não me atrevo a passar. Agora os exércitos me cercam, as hordas. (este quarto é irreal; ela não o viu.)
O nome de uma mulher me delata. Dói-me uma mulher por todo o corpo.
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Ismália (Alphonsus de Guimaraens) |
em 09/10/2012 20:48:27 (2803 leituras) |
Quando Ismália enlouqueceu, Pôs-se na torre a sonhar... Viu uma lua no céu, Viu outra lua no mar.
No sonho em que se perdeu, Banhou-se toda em luar... Queria subir ao céu, Queria descer ao mar...
E, no desvario seu, Na torre pôs-se a cantar... Estava perto do céu, Estava longe do mar...
E como um anjo pendeu As asas para voar... Queria a lua do céu, Queria a lua do mar...
As asas que Deus lhe deu Ruflaram de par em par... Sua alma subiu ao céu, Seu corpo desceu ao mar...
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O Nosso Desejo de Liberdade Não é Sincero |
em 05/10/2012 22:52:31 (2170 leituras) |
Se estamos todos muito bem preparados para reclamar liberdade para nós próprios, menos dispostos parecemos para reclamar sobretudo liberdade para os outros ou para lhes conceder a liberdade que está em nosso próprio poder; se conhecêssemos melhor a máquina do mundo, talvez descobríssemos que muita tirania se estabelece fora de nós como se fosse a projecção ou como sendo realmente a projecção das linhas autocráticas que temos dentro de nós; primeiro oprimimos, depois nos oprimem; no fundo, quase sempre nos queixamos dos ditadores que nós mesmos somos para os outros; e até para nós próprios, reprimindo todas as tendências que nos parecem pouco sociais ou pouco lucrativas, desejando muito que os outros nos vejam como simples, bem ajustados, facilmente etiquetáveis.
Agostinho da Silva, in 'Sobre as Escolhas'
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O Pudor é um Sentimento Masculino |
em 27/09/2012 21:35:45 (1832 leituras) |
O pudor é um sentimento masculino. Quando uma mulher conhece outra, ao fim de dez minutos está já a explicar-lhe como é que o marido trabalha na cama. Ao fim de dez anos ou de uma vida, um homem não explica a outro como trabalha a mulher. É que o homem não é um novo-rico do sexo. Ou respeita a mulher por simples machismo? Porque é por machismo, por exemplo, que muitas vezes admira uma mulher que se distinguiu nas artes ou nas ciências. Implicitamente tem-se a ideia de que o normal seria não se distinguir. Se portanto se distingue, é isso tão extraordinário como um trapezista de circo ou coisa assim. Admirando-se então a mulher, simultaneamente se humilha. Dessa humilhação se fazem muitas admirações.
Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 1'
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A tua voz de Primavera |
em 25/09/2012 00:05:47 (4854 leituras) |
Manto de seda azul, o céu reflete Quanta alegria na minha alma vai! Tenho os meus lábios úmidos: tomai A flor e o mel que a vida nos promete!
Sinfonia de luz meu corpo não repete O ritmo e a cor dum mesmo desejo... olhai! Iguala o sol que sempre às ondas cai, Sem que a visão dos poentes se complete!
Meus pequeninos seios cor-de-rosa, Se os roça ou prende a tua mão nervosa, Têm a firmeza elástica dos gamos...
Para os teus beijos, sensual, flori! E amendoeira em flor, só ofereço os ramos, Só me exalto e sou linda para ti!
Florbela Espanca, in "A Mensageira das Violetas"
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Primavera |
em 21/09/2012 22:53:58 (3515 leituras) |
Ah! quem nos dera que isto, como outrora, Inda nos comovesse! Ah! quem nos dera Que inda juntos pudéssemos agora Ver o desabrochar da primavera!
Saíamos com os pássaros e a aurora. E, no chão, sobre os troncos cheios de hera, Sentavas-te sorrindo, de hora em hora: "Beijemo-nos! amemo-nos! espera!"
E esse corpo de rosa recendia, E aos meus beijos de fogo palpitava, Alquebrado de amor e de cansaço.
A alma da terra gorjeava e ria... Nascia a primavera... E eu te levava, Primavera de carne, pelo braço!
Olavo Bilac, in "Poesias"
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Pequenina |
em 17/09/2012 16:29:34 (2783 leituras) |
És pequenina e ris ... A boca breve É um pequeno idílio cor-de-rosa ... Haste de lírio frágil e mimosa! Cofre de beijos feito sonho e neve!
Doce quimera que a nossa alma deve Ao Céu que assim te faz tão graciosa! Que nesta vida amarga e tormentosa Te fez nascer como um perfume leve!
O ver o teu olhar faz bem à gente ... E cheira e sabe, a nossa boca, a flores Quando o teu nome diz, suavemente ...
Pequenina que a Mãe de Deus sonhou, Que ela afaste de ti aquelas dores Que fizeram de mim isto que sou!
Florbela Espanca, in "Livro de Mágoas"
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Poema da Noite (Charles Chaplin) |
em 13/09/2012 16:54:01 (4477 leituras) |
Já perdoei erros quase imperdoáveis, tentei substituir pessoas insubstituíveis e esquecer pessoas inesquecíveis.
Já fiz coisas por impulso, já me decepcionei com pessoas quando nunca pensei me decepcionar, mas também decepcionei alguém.
Já abracei pra proteger, já dei risada quando não podia, fiz amigos eternos, amei e fui amado, mas também já fui rejeitado, fui amado e não amei.
Já gritei e pulei de tanta felicidade, já vivi de amor e fiz juras eternas, "quebrei a cara muitas vezes"!
Já chorei ouvindo música e vendo fotos, já liguei só para escutar uma voz, me apaixonei por um sorriso, já pensei que fosse morrer de tanta saudade e tive medo de perder alguém especial (e acabei perdendo).
Mas vivi, e ainda vivo! Não passo pela vida… E você também não deveria passar!
Viva! Bom mesmo é ir à luta com determinação, abraçar a vida com paixão, perder com classe e vencer com ousadia, porque o mundo pertence a quem se atreve e a vida é "muito" pra ser insignificante.
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Criança |
em 12/09/2012 14:24:11 (3454 leituras) |
Cabecinha boa de menino triste, de menino triste que sofre sozinho, que sozinho sofre, — e resiste,
Cabecinha boa de menino ausente, que de sofrer tanto se fez pensativo, e não sabe mais o que sente...
Cabecinha boa de menino mudo que não teve nada, que não pediu nada, pelo medo de perder tudo.
Cabecinha boa de menino santo que do alto se inclina sobre a água do mundo para mirar seu desencanto.
Para ver passar numa onda lenta e fria a estrela perdida da felicidade que soube que não possuiria.
Cecília Meireles, in 'Viagem'
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Que Feliz Destino o Meu |
em 30/08/2012 20:19:03 (2375 leituras) |
Que Feliz Destino o Meu
MOTE
«Que feliz destino o meu Desde a hora em que te vi; Julgo até que estou no céu Quando estou ao pé de ti.»
GLOSAS
Se Deus te deu, com certeza, Tanta luz, tanta pureza, P'rò meu destino ser teu, Deu-me tudo quanto eu queria E nem tanto eu merecia... Que feliz destino o meu!
Às vezes até suponho Que vejo através dum sonho Um mundo onde não vivi. Porque não vivi outrora A vida que vivo agora Desde a hora em que te vi.
Sofro enquanto não te veja Ao meu lado na igreja, Envolta num lindo véu. Ver então que te pertenço, Oh! Meu Deus, quando assim penso, Julgo até que 'stou no céu.
É no teu olhar tão puro Que vou lendo o meu futuro, Pois o passado esqueci; E fico recompensado Da perda desse passado Quando estou ao pé de ti.
António Aleixo, in "Este Livro que Vos Deixo..."
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Intervalo Doloroso |
em 24/08/2012 11:08:59 (3612 leituras) |
Como alguém cujos olhos, erguidos de um longo (...) de um livro, receba a violência para eles de um mero claro sol natural, se ergo às vezes de mim os meus olhos de ver-me dói-me e arde-me fitar a nitidez e independência de mim da vida claramente externa, da existência dos outros, da posição e correlação dos momentos no espaço. Tropeço nos sentimentos reais dos outros, o antagonismo dos seus psiquismos com o meu, entala-me e entaramela-me os passos, escorrego e destrambelho-me por entre e por sobre o som das suas palavras, estranho o ser ouvido em mim, a apreço forte e certo dos seus passos no chão atual, os seus gestos que existem verdadeiramente, os seus ásperos e complexos modos de serem outras pessoas que não variantes da minha.
Encontro-me então, nestes abismos em que me precipito às vezes, desamparado e oco, parecendo que morri e vivo, pálida sombra dolorida, que a primeira brisa deitará por terra e o primeiro contato desfará em pó.
Pergunto-me então em mim pró´rio se valerá a pena todo o esforço que pus em me isolar e elevar, se o lento calvário que de mim fiz para a minha Glória Crucificada valerá religiosamente a pena? E , ainda que saiba que valeu, pesa-me neste momento o sentimento de que não valeu, de que não valerá (nunca). |
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Os actos valem mais que as palavras |
em 21/08/2012 10:31:53 (2573 leituras) |
Nenhuma explicação verbal poderá alguma vez substituir a contemplação. A unidade do Ser não é transmissível pelas palavras. Se eu quisesse ensinar a homens, cuja civilização o desconhecesse, o que é o amor a uma pátria ou a uma quinta, não disporia de argumento algum para os convencer. São os campos, as pastagens e o gado que constituem uma quinta. Todos e cada um deles têm como missão produzir riqueza. No entanto, há alguma coisa na quinta que escapa à análise dos seus componentes, pois existem proprietários que, por amor à sua quinta, se arruinariam para a salvar. Pelo contrário, é essa «alguma coisa» que enriquece com uma qualidade particular os componentes. Estes tornam-se gado de uma quinta, prados de uma quinta, campos de uma quinta... Assim se passa a ser homem de uma pátria, de um ofício, de uma civilização, de uma religião. Mas, para que alguém se reclame de tais Seres, convém, antes de mais, fundá-los em si próprio. E, se não existir o sentimento da pátria, nenhuma linguagem o transmitirá. O Ser de que nos reinvindicamos não o fundamos em nós senão por actos. Um Ser não pertence ao domínio da linguagem, mas dos actos. O nosso Humanismo desprezou os actos. Fracassou na sua tentativa.
Antoine de Saint-Exupéry, in 'Piloto de Guerra' |
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É preciso repensar a nossa vida |
em 16/08/2012 01:17:19 (3962 leituras) |
É preciso repensar a nossa vida. Repensar a cafeteira do café, de que nos servimos de manhã, e repensar uma grande parte do nosso lugar no universo. Talvez isso tenha a ver com a posição do escritor, que é uma posição universal, no lugar de Deus, acima da condição humana, a nomear as coisas para que elas existam. Para que elas possam existir… Isto tem a ver com o poeta, sobretudo, que é um demiurgo. Ou tem esse lado. Numa forma simples, essa maneira de redimensionar o mundo passa por um aspecto muito profundo, que não tem nada a ver com aquilo que existe à flor da pele. Tem a ver com uma experiência radical do mundo. Por exemplo, com aquela que eu faço de vez em quando, que é passar três dias como se fosse cego. Por mais atento que se seja, há sempre coisas que nos escapam e que só podemos conhecer de outra maneira, através dos outros sentidos, que estão menos treinados… Reconhecer a casa através de outros sentidos, como o tacto, por exemplo. Isso é outra dimensão, dá outra profundidade. E a casa é sempre o centro e o sentido do mundo. A partir daí, da casa, percebe-se tudo. Tudo. O mundo todo.
Al Berto, in "Entrevista à revista Ler (1989)" |
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A Mudança de Lugar não Muda a Dor do Sentimento |
em 09/08/2012 17:52:47 (2702 leituras) |
Quão mal está no caso quem cuida que a mudança de lugar muda a dor do sentimento! E, se não, diga-o quien dijo que la ausencia causa olvido. Porque, enfim, la tierra queda, e, o mais, a alma acompanha. Ao alvo destes cuidados jogam meus pensamentos à barreira, tendo-me já, pelo costume, tão contente, de triste, que triste me faria ser contente; porque o longo uso dos anos se converte em natureza. Pois o que é para maior mal, tenho eu para maior bem. Ainda que, para viver no mundo, uso um outro pano, para não parecer coruja entre pardais, fazendo-me um para ser outro, sendo outro para ser um; mas a dor dissimulada dará seu fruto, que a tristeza no coração é como a traça no pano.
E por tão triste me tenho que, se sentisse alegria, de triste, não viveria. Porque a tal sorte vim que não vejo bem algum em quanto vejo, que não nasceu para mim; e por não sentir nenhum, nenhum desejo.
Porque, coisas impossíveis, é melhor esquecê-las que desejá-las. E, por isso
Só tristeza ver queria, pois minha ventura quer que só ela conheça por alegria, e que, se outra quiser, morra por ela.
Luís Vaz de Camões, in "Cartas"
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Se me esqueceres |
em 31/07/2012 19:31:05 (7228 leituras) |
Quero que saibas uma coisa.
Sabes como é: se olho a lua de cristal, o ramo vermelho do lento outono à minha janela, se toco junto do lume a impalpável cinza ou o enrugado corpo da lenha, tudo me leva para ti, como se tudo o que existe, aromas, luz, metais, fosse pequenos barcos que navegam até às tuas ilhas que me esperam.
Mas agora, se pouco a pouco me deixas de amar deixarei de te amar pouco a pouco.
Se de súbito me esqueceres não me procures, porque já te terei esquecido.
Se julgas que é vasto e louco o vento de bandeiras que passa pela minha vida e te resolves a deixar-me na margem do coração em que tenho raízes, pensa que nesse dia, a essa hora levantarei os braços e as minhas raízes sairão em busca de outra terra.
Porém se todos os dias, a toda a hora, te sentes destinada a mim com doçura implacável, se todos os dias uma flor uma flor te sobe aos lábios à minha procura, ai meu amor, ai minha amada, em mim todo esse fogo se repete, em mim nada se apaga nem se esquece, o meu amor alimenta-se do teu amor, e enquanto viveres estará nos teus braços sem sair dos meus.
Pablo Neruda, in "Poemas de Amor de Pablo Neruda"
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Que Humanidade é Esta? |
em 19/07/2012 20:51:38 (4113 leituras) |
Se o homem não for capaz de organizar a economia mundial de forma a satisfazer as necessidades de uma humanidade que está a morrer de fome e de tudo, que humanidade é esta? Nós, que enchemos a boca com a palavra humanidade, acho que ainda não chegámos a isso, não somos seres humanos. Talvez cheguemos um dia a sê-lo, mas não somos, falta-nos mesmo muito. Temos aí o espectáculo do mundo e é uma coisa arrepiante. Vivemos ao lado de tudo o que é negativo como se não tivesse qualquer importância, a banalização do horror, a banalização da violência, da morte, sobretudo se for a morte dos outros, claro. Tanto nos faz que esteja a morrer gente em Sarajevo, e também não devemos falar desta cidade, porque o mundo é um imenso Sarajevo. E enquanto a consciência das pessoas não despertar isto continuará igual. Porque muito do que se faz, faz-se para nos manter a todos na abulia, na carência de vontade, para diminuir a nossa capacidade de intervenção cívica.
José Saramago, in 'Canarias7 (1994)' |
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Vivência Limitada |
em 11/07/2012 17:53:26 (3040 leituras) |
A. impossibilidade de participar de todas as combinações em desenvolvimento a qualquer instante numa grande cidade tem sido uma das dores de minha vida. Sofro como se sentisse em mim, como se houvesse em mim uma capacidade desmesurada de agir. Entretanto, na parte de ação que a vida me reserva, muitas vezes me abstenho e outras me confundo. [...] A ideia de que diariamente, a cada hora, a cada minuto e em cada lugar se realizam milhares de ações que me teriam profundamente interessado, de que eu certamente deveria tomar conhecimento e que entretanto jamais me serão comunicadas — basta para tirar o sabor a todas as perspectivas de ação que encontro à minha frente. O pouco que eu pudesse obter não compensaria jamais esse infinito perdido. Nem me consola o pensamento de que, entrando na confrontação simultânea de tantos acontecimentos, eu não pudesse sequer registrá-los, quanto mais dirigi-los à minha maneira ou mesmo tomar de cada um o aspecto singular, o tom e o desenho próprios, uma porção, mínima que fosse, de sua peculiar substância.
Carlos Drummind de Andrade, in 'Confissões de Minas'
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A Importância da Mulher no Progresso da Civilização |
em 06/07/2012 19:29:12 (2283 leituras) |
Se na história não procurarmos só uma data ou um facto descarnado, mas tentarmos nela descobrir alguma coisa mais, um princípio harmónico e as leis que governam esses factos, ainda nas suas menores evoluções, veremos que a história da civilização da mulher, do seu desenvolvimento e da sua moralidade, anda sempre ligada aos factos do desenvolvimento da civilização e da moralidade dos povos: veremos que aonde a sua condição se amesquinha, onde desce em dignidade, onde a mulher em vez do triplo e sagrado carácter de amante, esposa e mãe passa a ser escrava sem liberdade nem vontade, só destinada a saciar as paixões brutais dum senhor devasso, aí também veremos descer o nível da civilização e moralidade: à doçura dos costumes suceder a fereza e a brutalidade; e em vez do amor, essa flor do sentimento pura e recatada, só apareceram a paixão instintiva e brutal, necessidade puramente física do animal que obedece à lei da reprodução, à devassidão e à poligamia!
Antero de Quental, in 'Prosas da Época de Coimbra' |
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Soneto Malcriado |
em 03/03/2013 19:20:00 (2113 leituras) |
SONETO MALCRIADO
não - não me peçam mais poemas de amor respeitem meus versos desesperados tão mal sucedidos esculhambados por deus me façam este grande favor
deixem-me mudo com os meus palavrões pois é deste jeito que eu me sinto bem a poesia que faço é por desdem as palavras doces enchem-me os culhões
basta-me apenas o ar que respiro de uma vez por todas foda-se o resto que importa saber se presto ou não presto?
não sei escrever... apenas atiro no fim da briga saio são e salvo dane-se aquele que errou o seu alvo
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SONETTO MALEDUCATO
no - non chiedetemi più poesie d’amore rispettate i miei versi disperati così mal messi sgangherati per dio fatemi questo gran favore
lasciatemi muto con i miei paroloni perché è così che io mi sento bene la poesia che faccio dallo sdegno viene di parole dolci ne ho pieni i coglioni
a me basta appena l’aria che respiro una volta per tutte si fotta il resto che importa sapere se riesco o non riesco?
non so scrivere… appena mi scaglio in fin dei conti ne esco sano e salvo all’inferno chi ha fallito il suo bersaglio
(Tradução italiana de Manuela Colombo) |
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Dispersão |
em 13/02/2013 00:40:39 (1850 leituras) |
Perdi-me dentro de mim Porque eu era labirinto E hoje, quando me sinto. É com saudades de mim.
Passei pela minha vida Um astro doido a sonhar. Na ânsia de ultrapassar, Nem dei pela minha vida...
Para mim é sempre ontem, Não tenho amanhã nem hoje: O tempo que aos outros foge Cai sobre mim feito ontem.
(O Domingo de Paris Lembra-me o desaparecido Que sentia comovido Os Domingos de Paris:
Porque um domingo é família, É bem-estar, é singeleza, E os que olham a beleza Não têm bem-estar nem família).
O pobre moço das ânsias... Tu, sim, tu eras alguém! E foi por isso também Que me abismaste nas ânsias.
A grande ave doirada Bateu asas para os céus, Mas fechou-as saciada Ao ver que ganhava os céus.
Como se chora um amante, Assim me choro a mim mesmo: Eu fui amante inconstante Que se traiu a si mesmo.
Não sinto o espaço que encerro Nem as linhas que protejo: Se me olho a um espelho, erro - Não me acho no que projeto.
Regresso dentro de mim Mas nada me fala, nada! Tenho a alma amortalhada, Sequinha, dentro de mim.
Não perdi a minha alma, Fiquei com ela, perdida. Assim eu choro, da vida, A morte da minha alma.
Saudosamente recordo Uma gentil companheira Que na minha vida inteira Eu nunca vi... Mas recordo
A sua boca doirada E o seu corpo esmaecido, Em um hálito perdido Que vem na tarde doirada.
(As minhas grandes saudades São do que nunca enlacei. Ai, como eu tenho saudades Dos sonhos que sonhei!... )
E sinto que a minha morte - Minha dispersão total - Existe lá longe, ao norte, Numa grande capital.
Vejo o meu último dia Pintado em rolos de fumo, E todo azul-de-agonia Em sombra e além me sumo.
Ternura feita saudade, Eu beijo as minhas mãos brancas... Sou amor e piedade Em face dessas mãos brancas...
Tristes mãos longas e lindas Que eram feitas pra se dar... Ninguém mas quis apertar... Tristes mãos longas e lindas...
Eu tenho pena de mim, Pobre menino ideal... Que me faltou afinal? Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...
Desceu-me n'alma o crepúsculo; Eu fui alguém que passou. Serei, mas já não me sou; Não vivo, durmo o crepúsculo.
Álcool dum sono outonal Me penetrou vagamente A difundir-me dormente Em uma bruma outonal.
Perdi a morte e a vida, E, louco, não enlouqueço... A hora foge vivida Eu sigo-a, mas permaneço...
Castelos desmantelados, Leões alados sem juba...
Paris - maio de 1913.
Mário de Sá-Carneiro |
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Som |
em 13/02/2013 00:34:42 (5218 leituras) |
Alma divina, Por onde me andas? Noite sozinha, lágrimas, tantas!
Que sopro imenso, Alma divina, Em esquecimento Desmancha a vida!
Deixa-me ainda Pensar que voltas, Alma divina, Coisa remota!
Tudo era tudo Quando eras minhas e eu era tua, alma divina!
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Sou |
em 03/02/2013 00:45:51 (2350 leituras) |
Sou o que sabe não ser menos vão Que o vão observador que frente ao mudo Vidro do espelho segue o mais agudo Reflexo ou o corpo do irmão. Sou, tácitos amigos, o que sabe Que a única vingança ou o perdão É o esquecimento. Um deus quis dar então Ao ódio humano essa curiosa chave. Sou o que, apesar de tão ilustres modos De errar, não decifrou o labirinto Singular e plural, árduo e distinto, Do tempo, que é de um só e é de todos. Sou o que é ninguém, o que não foi a espada Na guerra. Um esquecimento, um eco, um nada.
Jorge Luis Borges, in "A Rosa Profunda"
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No centenário de Mondrian |
em 18/11/2012 02:07:56 (3472 leituras) |
No centenário de Mondrian (1972)
2 OU 1
Quando a alma se dispersa em todas as mil coisas do enredado e prolixo do mundo à sua volta,
ou quando se dissolve nas modorras da música, no invertebrado vago, sem ossos, de água em fuga,
ou quando se empantana num alcalino demais que adorne o ácido vivo que rói porém que faz,
ou quando a alma borracha tem os músculos lassos e é incapaz de molas para atirar-se ao faço:
então, só essa pintura de que foste capaz, de que excluíste até o nada, por demais,
e onde só conservaste o léxico conciso de teus perfis quadrados a fio, e também fios,
pois que, por bem cortados, ficam cortantes ainda e herdam a agudeza dos fios que os confinam,
então, só essa pintura de cores em voz alta, cores em linha reta, despidas, cores brasa,
só tua pintura clara, de clara construção, desse construir claro feito a partir do não,
pintura em que ensinaste a moral pela vista (deixando o pulso manso dar mais tensão à vida),
só essa pintura pode, com sua explosão fria, incitar a alma murcha, de indiferença ou acídia,
e lançar ao fazer a alma de mãos caídas, e ao fazer-se, fazendo coisas que a desafiam. |
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E de Novo, Lisboa... |
em 14/11/2012 10:25:56 (2616 leituras) |
E de novo, Lisboa, te remancho, numa deriva de quem tudo olha de viés: esvaído, o boi no gancho, ou o outro vermelho que te molha.
Sangue na serradura ou na calçada, que mais faz se é de homem ou de boi? O sangue é sempre uma papoila errada, cerceado do coração que foi.
Groselha, na esplanada, bebe a velha, e um cartaz, da parede, nos convida a dar o sangue. Franzo a sobrancelha: dizem que o sangue é vida; mas que vida?
Que fazemos, Lisboa, os dois, aqui, na terra onde nasceste e eu nasci?
Alexandre O'Neill, in 'De Ombro na Ombreira' |
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Glória Moribunda |
em 10/11/2012 14:16:21 (3462 leituras) |
(Une fille de joie attendait sur la borne. THÉOPH. GAUTIER)
I
É uma visão medonha uma caveira?
Não tremas de pavor, ergue-a do lodo.
Foi a cabeça ardente de um poeta,
Outrora à sombra dos cabelos loiros,
Quando o reflexo do viver fogoso
Ali dentro animava o pensamento,
Esta fronte era bela. Aqui nas faces
Formosa palidez cobria o rosto...
Nessas órbitas—ocas, denegridas! —
Como era puro seu olhar sombrio!
Agora tudo é cinza. Resta apenas
A caveira que a alma em si guardava,
Como a concha no mar encerra a pérola,
Como a caçoula a mirra incandescente.
Tu outrora talvez desses lhe um beijo;
Por que repugnas levantá-la agora?
Olha-a comigo! Que espaçosa fronte!
Quanta vida ali dentro fermentava,
Como a seiva nos ramos do arvoredo!
E a sede em fogo das idéias vivas
Onde está? onde foi? Essa alma errante
Que um dia no viver passou cantando,
Como canta na treva um vagabundo,
Perdeu se acaso no sombrio vento,
Como noturna lâmpada, apagou-se?
E a centelha da vida, o eletrismo
Que as fibras tremulantes agitava
Morreu para animar futuras vidas?
Sorris? eu sou um louco. As utopias,
Os sonhos da ciência nada valem,
A vida é um escárnio sem sentido,
Comédia infame que ensanguenta o lodo.
Há talvez um segredo que ela esconde
Mas esse a morte o sabe e o não revela,
Os túmulos são mudos como o vácuo.
Desde a primeira dor sobre um cadáver,
Quando a primeira mãe entre soluços
Do filho morto os membros apertava
Ao ofegante seio, o peito humano
Caiu tremendo interrogando o túmulo
E a terra sepulcral não respondia.
Levanta-me do chão essa caveira!
Vou cantar-te uma página da vida
De uma alma que penou, e já descansa.
II
—Por quem esperas trêmula a desoras,
Mulher da noite, na deserta rua?
A miséria venceu os teus orgulhos,
E vens na treva contratar teu leito?
Vem pois. És bela. Tens no rosto frio
A imagem das Madonas descoradas.
Vagabunda de amor, és bela e pálida.
Será doce em teu seio de morena
Um momento sentir os meus suspiros
Estuantes nos lábios doloridos.
Se inda podes amar, ergue-te ainda,
Une teu peito ao meu, pálida sombra!—
III
Era uma fronte olímpica e sombria,
Nua ao vento da noite que agitava
As loiras ondas do cabelo solto;
Cabeça de poeta e libertino
Que fogo incerto de embriaguez corava.
Na fronte a palidez, no olhar aceso
O lume errante de uma febre insana.
IV
—Mancebo, quem és tu?
—Que importa o nome?
Um poeta de santas harmonias
Que a Musa obscena do bordel profana.
Na aparição balsâmica dos anjos
Porventura enlevei a mocidade.
Das virgens no cheiroso travesseiro
Porventura dormi... Meu Deus! que sonhos!
Em seios que a inocência adormecia
Repousei minha fronte embevecida.
Amei, mulher! amei!
Que sede intensa!
Secou-se-me a torrente do deserto
Que as folhas de frescura borrifava.
Tudo! tudo passou... Amei... Embora!
Quero agora dormir nos teus joelhos.
Nessa esponja da vida inda uma gota
Talvez reste a meus lábios anelantes
Que me dê um assomo de ventura
E um leito onde morrer amando ainda,
E que vida, mulher! que dor profunda,
Faminta como um verme aqui no peito!
Murcha desfaleceu a flor da vida
E cedo morrerá. . . E vós, meus anjos,
Ó Virgem Santa, que eu amei, na lira
A quem votei meu canto deliroso;
Amantes que eu sonhei, que eu amaria
Com todo o fogo juvenil que ainda
Me abrasa o coração, por que fugistes,
Brancas sombras, do céu das esperanças?
Oh! riamos da vida! tudo mente!
Os meus versos gotejam de ironias!
Esse mundo sem fé merece prantos?
À orgia! na saturnal entre a loucura
Derrama o vinho sono e esquecimento.
Vinde, belezas que a volúpia inflama!
Bebamos juntos... Cantarei de novo!
A minha alma nas asas do improviso,
Como as aves do céu, voe cantando. . .
Todos caíram ébrios?.. . só eu resto?
Embora! em minha mão a lira pulsa,
Meu peito bate, a inspiração agora
Cânticos imortais ao lábio inspira.
Voai ao céu—não morrereis, meus cantos!
V
A glória! a glória! meu amor foi ela,
Foi meu Deus, o meu sangue... até meu gênio. . .
E agora!... Além os sonhos dessa vida!
Quando eu morrer, meus versos incendeiem!
Apague-se meu nome—e ao cadáver
Nem lágrimas, nem cruz o mundo vote
Sou um ímpio (disseram-no!) pois deixem me
Descansar no sepulcro!
Por que choras,
Descorada mulher? Sabes acaso
Quem é o triste, o malfadado obscuro
Que delira e desvaira aqui na treva
E tuas mãos aperta convulsivo?
Eu não te posso amar. Meu peito morto
É como a rocha que o oceano bate
E branqueia de escuma—ali não pode
Medrar a flor cheirosa dos enlevos...
Teu amor... Eu descri até dos sonhos....
Demais dentro em tua alma eu vejo trevas,
Uma estrela de Deus não a ilumina.
Quem pudera nas ondas do passado,
Ditoso pescador, erguer no lodo
O ramo de coral de teus amores?
VI
Amei! amei! no sonho, nas vigílias
Esse nome gemi que eu adorava!
Votei amor a tudo quanto é belo!
Escuta A rua é queda. A noite escura
É negra como um túmulo. Durmamos
No leito dos amores do perdido.
Vês? nem lua no céu! tudo é medonho!
Nem estrela de luz . —Silêncio! Embora!
Escuta, anjo da noite! no meu peito
Não ouves palpitar o som da vida?
Deixa encostar meus lábios incendidos
No teu seio que bate. Vem, meu anjo!
A alma da formosura é sempre virgem!
Minha virgem—irmã—meu Deus! Contigo
Oh! deixa me viver! Eu sinto bela
A tua alma acordando refletir-se
Nesses olhos tão negros d'Espanhola.
Quero amar e viver—sonhar—em fogo
Meus frouxos dias exaurir num beijo,
Derramar a teus pés os meus amores,
Minhas santas canções a ti erguê-las,
A ti, e só a ti!—
VII
—Que tens? desmaias?
Que tens, mancebo?
—Nada. É cedo ainda.
Não é ela ainda não. Chamei por ela. . .
Foi em vão. . . delirei. . .
—Por quem?
—A morte.
—Morrer! pobre de ti, ó meu poeta!
—Se a morte é sofrimento, eu sofro tanto,
Que a mudança do mal será consolo;
Se a morte é sono, meu cansado corpo
No descanso eternal deixai que durma.
—Eu também sofro. . . mas a morte assusta.
Eu mísera mulher nas amarguras
Descorei e perdi a formosura.
No amor impuro profanei minha'alma. ..
E nesta vida não amei contudo!
Não sou a virgem melindrosa e casta
Que nos sonhos da infância os anjos beijam
E entre as rosas da noite adormecera
Tão pura como a noite e como as flores;
Mas na minha'alma dorme amor ainda.
Levanta me, poeta, dos abismos
Até ao puro sol do amor dos anjos!
Ó minha vida, minha vida pura,
Por que foram tão breves da inocência
Das crenças virginais os belos dias?
Chamei por Deus em vão. Sobre meu leito
Em vez do anjo do céu senti gelada
Sombra desconhecida vir sentar-se
Em beijos frios roxear meus lábios,
Em abraços de morte unir me ao seio.
Douda! chamei por Deus! a meu reclamo
Veio o torvo Satã... Oh! não maldigas
A mísera que os seios inocentes
Entregou sem pudor a mãos impuras:
Eram taças de Deus... eu bem sabia!
Mas todo o pesadelo do passado
Foi uma horrenda sina... tudo aquilo
Escrevera Satã
VIII
—Fatalidade!
É pois a voz unânime dos mundos.
Das longas gerações que se agonizam
Que sobe aos pés do Eterno como incenso?
Serás tu como os bonzos te fingiram?
Sublime Criador, por que enjeitaste
A pobre criação? Por que a fizeste
Da argila mais impura e negro lodo,
E a lançaste nas trevas errabunda
Co'a palidez na fronte como anátema,
Qual lança a borboleta a asas d'oiro
No pântano e no sangue?
Tudo é sina:
O crime é um destino—o gênio, a glória
São palavras mentidas—a virtude
É a máscara vil que o vício cobre.
O egoísmo! eis a voz da humanidade.
Foste sublime, Criador dos mundos!
IX
Tudo morre, meu Deus! No mundo exausto
Bastardas gerações vagam descridas.
E a arte se vendeu, essa arte santa
Que orava de joelhos e vertia
O seu raio de luz e amor no povo,
E o gênio soluçando e moribundo
Olvidou-se da vida e do futuro
E blasfema lutando na agonia.
Agonia de morte! Só em torno
No leito do morrer as almas gemem.
E o fantasma da morte gela tudo.
Por que um ardente amor não mais suspira
Notas do coração pelo silêncio
Da noite enamorada? A chama pura
Por que das almas se apagou nas cinzas
E a lira do poeta. se murmura
As ilusões de um mundo visionário,
Por que estala tão cedo? Vagabundo
Adormeci das árvores na sombra
E nos campos em flor errei sonhando,
Coroando me dos lírios da alvorada.
Arvore prateada da esperança.
Sombra das ilusões, ó vida bela
E sempre bela, e no morrer ainda,
Por que pousei a fronte sobre a relva
A sombra vossa, delirante um dia?
Oh! que morro também! na noite d'alma
Sinto-o no peito que um ardor consome,
No meu gênio que apaga nas orgias,
Que foge o mundo, e o sepulcro teme . .
Exilei-me dos homens blasfemando,
Concentrei-me no fundo desespero,
E exausto de esperança e zombarias
Como um corpo no túmulo lancei-me,
Suicida da fé, no vício impuro.
X
E o mundo? não me entende. Para as turbas
Eu sou um doudo que se aponta ao dedo.
A glória é essa. P'ra viver um dia
Troquei o manto de cantor divino
Pelas roupas do insano.—Os sons profundos
Ninguém os aplaudia sobre a terra.
Para um pouco de pão ganhar da turba,
Como teu corpo no bordel profanas.
—Fiz mais ainda! prostituí meu gênio.
Oh! ditoso Filinto! ele sim pôde
Na miséria guardar seu gênio puro!
Nunca infame beijou a mão dos grandes!
Morreu como Camões, morreu sem nódoa!
Mas eu! A voz do vício arrebatou-me,
Fascinou-me da infâmia o revérbero .
Maldições sobre mim! Abre-te, ó campa!
Ali obscuro dormirei na treva;
XI
Ó santa inspiração! fada noturna,
Por que a fronte não beijas do poeta?
Por que não lhe descansas nos cabelos
A coroa dos sonhos, e rebentam-lhe
Entre as lívidas mãos uma por uma
As cordas do alaúde no vibrá-las?
Ó santa inspiração! por que nas sombras
Não escuta o poeta à meia noite
Os sons perdidos da harmonia santa
Que o pobre coração de amor lhe enchiam?
Eu fui à noite da taverna à mesa
Bater meu copo à taça do bandido.
Na louca saturnal beber com ele,
Ouvir-lhe os cantos da sangrenta vida
E as lendas de punhal e morticínio.
De vinho e febre pálido, deitei-me
Sobre o leito venal de uma perdida. . .
Comprimi-a no meu exausto peito.
Falei -he em meu amor, contei-lhe sonhos,
Do meu passado a dor, as glórias murchas
E os longos beijos da primeira amante...
Amor! amor! meu sonho de mancebo!
Minha sede! meu canto de saudade!
Amor! Meu coração, lábios e vida
A ti, sol do viver, erguem-se ainda,
E a ti, sol do viver, erguem-se embalde!
Ouvi, ouvi no leito da miséria
A pálida mulher junto a meu peito
Contar-me seus amores que passaram,
Falar-me de purezas, d'esperanças....
E soluçava a triste, e ardentes longas,
As lágrimas em fio deslizando
Eu vi caindo sobre o seio dela. . .
Oh! suas emoções, úmidos beijos,
Dos seios o tremor, aqueles prantos,
E os ofegantes ais eram mentira! .
XII
Ah! vem, alma sombria que pranteias.
Por quem choras? Por mim?
Em vez de prantos
Deixa-me suspirar a teus joelhos.
Tu sim és pura. Os anjos da inocência
Poderiam amar sobre teu seio.
Aperta minha mão! Senta-te um pouco
Bem unida a minha alma em meus joelhos,
Assim parece que um abraço aperta
Nossas almas que sofrem. Revivamos!
O passado é um sonho—o mundo é largo,
Fugiremos à pátria. Iremos longe
Habitar num deserto. No meu peito
Eu tenho amores para encher de encantos
Uma alma de mulher. Por que sorriste?
Sou um louco. Maldita a folha negra
Em que Deus escreveu a minha sina .
Maldita minha mãe, que entre os joelhos
Não soubeste apertar, quando eu nascia,
O meu corpo infantil! Maldita!
XIII
Escuta:
Sinto uma voz no peito que suspira.
É a alma do poeta que desperta
E canta como as aves acordando
Oh! cantemos! até que a morte fria
Gele nos lábios meus o último canto!
Um cântico de amor, ó minha lira!
Anália! Armia! aparições formosas!
Eu amei sobre a terra as vossas sombras,
O ideal que vos anima e eu buscava,
Vive apenas no céu! vou entre os anjos,
Entre os braços da morte amar com eles!—
XIV
O poeta a tremer caiu no lodo.
A perdida tomou-lhe a fronte branca,
Pô-la ao colo—era lívida—inda o fogo
Lá dentro vacilava agonizando,
Como flutua a claridão da lâmpada
Apagando-se ao vento.
E quando a aurora
Nos céus de nácar acordava o dia,
E nas nuvens azuis o sol purpúreo
Se embalava no eflúvio de ventura
Das flores que se abriam, dos perfumes,
Da brisa morna que tremia as folhas,
Macilenta a mulher no chão da rua
Sentada, a fronte curva sobre os seios
Embalava cantando aquele morto.
Na manta o encobriu. Medrosa a furto
A infeliz o beijou—o pobre amante
Que uma só noite pernoitou com ela
Para aos pés lhe morrer—e sem ao menos
Nas faces dela estremecer um beijo.
Alguém que ali passou, vendo-a tão pálida
Sentada sobre a laje, e tão ardente,
Chegou ao pé—ergueu ao malfadado
A manta.
Como súbito acordando
Disse a moça a tremer:
—Deixa-o agora.
Ele penou de febre toda a noite,
Deitou-se descansando sobre o leito...
Oh! deixa-o dormir.
—Mulher no peito
Sabes quem te dormiu?
—"Que importa o nome?"
Assim falava-me…
—Ai de ti, misérrima!
Um poeta morreu. Fronte divina,
Alma cheia de sol, fronte sublime
Que de um anjo devera no regaço
Amorosa viver. . . Morreu Bocage!
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A Castidade com que Abria as Coxas |
em 08/11/2012 15:32:23 (3143 leituras) |
A castidade com que abria as coxas e reluzia a sua flora brava. Na mansuetude das ovelhas mochas, e tão estrita, como se alargava.
Ah, coito, coito, morte de tão vida, sepultura na grama, sem dizeres. Em minha ardente substância esvaída, eu não era ninguém e era mil seres
em mim ressuscitados. Era Adão, primeiro gesto nu ante a primeira negritude de corpo feminino.
Roupa e tempo jaziam pelo chão. E nem restava mais o mundo, à beira dessa moita orvalhada, nem destino.
Carlos Drummond de Andrade, in 'O Amor Natural' |
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O Novo Homem |
em 04/11/2012 13:38:36 (3197 leituras) |
O homem será feito em laboratório. Será tão perfeito como no antigório. Rirá como gente, beberá cerveja deliciadamente. Caçará narceja e bicho do mato. Jogará no bicho, tirará retrato com o maior capricho. Usará bermuda e gola roulée. Queimará arruda indo ao canjerê, e do não-objecto fará escultura. Será neoconcreto se houver censura. Ganhará dinheiro e muitos diplomas, fino cavalheiro em noventa idiomas. Chegará a Marte em seu cavalinho de ir a toda parte mesmo sem caminho. O homem será feito em laboratório muito mais perfeito do que no antigório. Dispensa-se amor, ternura ou desejo. Seja como for (até num bocejo) salta da retorta um senhor garoto. Vai abrindo a porta com riso maroto: «Nove meses, eu? Nem nove minutos.» Quem já concebeu melhores produtos? A dor não preside sua gestação. Seu nascer elide o sonho e a aflição. Nascerá bonito? Corpo bem talhado? Claro: não é mito, é planificado. Nele, tudo exacto, medido, bem posto: o justo formato, o standard do rosto. Duzentos modelos, todos atraentes. (Escolher, ao vê-los, nossos descendentes.) Quer um sábio? Peça. Ministro? Encomende. Uma ficha impressa a todos atende. Perdão: acabou-se a época dos pais. Quem comia doce já não come mais. Não chame de filho este ser diverso que pisa o ladrilho de outro universo. Sua independência é total: sem marca de família, vence a lei do patriarca. Liberto da herança de sangue ou de afecto, desconhece a aliança de avô com seu neto. Pai: macromolécula; mãe: tubo de ensaio, e, per omnia secula, livre, papagaio, sem memória e sexo, feliz, por que não? pois rompeu o nexo da velha Criação, eis que o homem feito em laboratório sem qualquer defeito como no antigório, acabou com o Homem. Bem feito. |
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Não passam mais |
em 31/10/2012 02:00:24 (3087 leituras) |
Em nome dos nossos braços em nome das nossas mãos em nome de quantos passos deram os nossos irmãos. Em nome das ferramentas que nos magoaram os dedos das torturas das tormentas das sevícias dos degredos. Em nome daquele nome que herdámos dos nossos pais em nome da sua fome dizemos: não passam mais!
E em nome dos milénios de prisão adicionada em nome de tantos génios com a voz amordaçada em nome dos camponeses com a terra confiscada em nome dos Portugueses com a carne estilhaçada em nome daqueles nomes escarrados nos tribunais dizemos que há outros nomes que não passam nunca mais!
Em nome do que nós temos em nome do que nós fomos revolução que fizemos democracia que somos em nome da unidade linda flor da classe operária em nome da liberdade flor imensa e proletária em nome desta vontade de sermos todos iguais vamos dizer a verdade dizendo: não passam mais!
Em nome de quantos corpos nossos filhos foram feitos. Em nome de quantos mortos vivem nos nossos direitos. Em nome de quantos vivos dão mais vida à nossa voz não mais seremos cativos: O trabalho somos nós.
Por isso tornos enxadas canetas frezas dedais são as nossas barricadas que dizem: não passam mais!
E em nome das conquistas vindas nos ventos de Abril reforma agrária controlo operário no meio fabril empresas que são do estado porque o seu dono é o povo em nome de lado a lado termos feito um país novo.
Em nome da nossa frente e dos nossos ideais diante de toda a gente dizemos: não passam mais!
Em nome do que passámos não deixaremos passar o patrão que ultrapassámos e que nos quer trespassar. E por onde a gente passa nós passamos a palavra: Cada rua cada praça é o chão que o povo lavra. Passaremos adiante com passo firme e seguro. O passado é já bastante vamos passar ao futuro. |
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Ode Marítima |
em 23/10/2012 13:06:13 (2489 leituras) |
Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão, Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido, Olho e contenta-me ver, Pequeno, negro e claro, um paquete entrando. Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira. Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo. Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio, Aqui, acolá, acorda a vida marítima, Erguem-se velas, avançam rebocadores, Surgem barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto. Há uma vaga brisa. Mas a minh'alma está com o que vejo menos, Com o paquete que entra, Porque ele está com a Distância, com a Manhã, Com o sentido marítimo desta Hora, Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea, Como um começar a enjoar, mas no espírito.
Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma, E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente,
Os paquetes que entram de manhã na barra Trazem aos meus olhos consigo O mistério alegre e triste de quem chega e parte. Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos. Todo o atracar, todo o largar de navio, É — sinto-o em mim como o meu sangue - Inconscientemente simbólico, terrivelmente Ameaçador de significações metafísicas Que perturbam em mim quem eu fui...
Ah, todo o cais é uma saudade de pedra! E quando o navio larga do cais E se repara de repente que se abriu um espaço Entre o cais e o navio, Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente, Uma névoa de sentimentos de tristeza Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas Como a primeira janela onde a madrugada bate, E me envolve como uma recordação duma outra pessoa Que fosse misteriosamente minha.
Ah, quem sabe, quem sabe, Se não parti outrora, antes de mim, Dum cais; se não deixei, navio ao sol Oblíquo da madrugada, Uma outra espécie de porto? Quem sabe se não deixei, antes de a hora Do mundo exterior como eu o vejo Raiar-se para mim, Um grande cais cheio de pouca gente, Duma grande cidade meio-desperta, Duma enorme cidade comercial, crescida, apoplética, Tanto quanto isso pode ser fora do Espaço e do Tempo?
Sim, dum cais, dum cais dalgum modo material, Real, visível como cais, cais realmente, O Cais Absoluto por cujo modelo inconscientemente imitado Insensivelmente evocado, Nós os homens construímos Os nossos cais de pedra atual sobre água verdadeira, Que depois de construídos se anunciam de repente Coisas-Reais, Espíritos-Coisas, Entidades em Pedra-Almas, A certos momentos nossos de sentimento-raiz Quando no mundo-exterior como que se abre uma porta E, sem que nada se altere, Tudo se revela diverso.
Ah o Grande Cais donde partimos em Navios-Nações! O Grande Cais Anterior, eterno e divino! De que porto? Em que águas? E porque penso eu isto? Grandes Cais como os outros cais, mas o Único. Cheio como eles de silêncios rumorosos nas antemanhãs, E desabrochando com as manhãs num ruído de guindastes E chegadas de comboios de mercadorias, E sob a nuvem negra e ocasional e leve Do fundo das chaminés das fábricas próximas Que lhe sombreia o chão preto de carvão pequenino que brilha, Como se fosse a sombra duma nuvem que passasse sobre água sombria.
Ah, que essencialidade de mistério e sentido parados Em divino êxtase revelador Às horas cor de silêncios e angústias Não é ponte entre qualquer cais e O Cais!
Cais negramente refletido nas águas paradas, Bulício a bordo dos navios, Ó alma errante e instável da gente que anda embarcada, Da gente simbólica que passa e com quem nada dura, Que quando o navio volta ao porto Há sempre qualquer alteração a bordo!
Ó fugas contínuas, idas, ebriedade do Diverso! Alma eterna dos navegadores e das navegações! Cascos refletidos devagar nas águas, Quando o navio larga do porto! Flutuar como alma da vida, partir como voz, Viver o momento tremulamente sobre águas eternas. Acordar para dias mais diretos que os dias da Europa, Ver portos misteriosos sobre a solidão do mar, Virar cabos longínquos para súbitas vastas paisagens Por inumeráveis encostas atônitas...
Ah, as praias longínquas, os cais vistos de longe, E depois as praias próximas, os cais vistos de perto. O mistério de cada ida e de cada chegada, A dolorosa instabilidade e incompreensibilidade Deste impossível universo A cada hora marítima mais na própria pele sentido! O soluço absurdo que as nossas almas derramaram Sobre as extensões de mares diferentes com ilhas ao longe, Sobre as ilhas longínquas das costas deixadas passar, Sobre o crescer nítido dos portos, com as suas casas e a sua gente, Para o navio que se aproxima.
Ah, a frescura das manhãs em que se chega, E a palidez das manhãs em que se parte, Quando as nossas entranhas se arrepanham E uma vaga sensação parecida com um medo - O medo ancestral de se afastar e partir, O misterioso receio ancestral à Chegada e ao Novo - Encolhe-nos a pele e agonia-nos, E todo o nosso corpo angustiado sente, Como se fosse a nossa alma, Uma inexplicável vontade de poder sentir isto doutra maneira: Uma saudade a qualquer coisa, Uma perturbação de afeições a que vaga pátria? A que costa? a que navio? a que cais? Que se adoece em nós o pensamento, E só fica um grande vácuo dentro de nós, Uma oca saciedade de minutos marítimos, E uma ansiedade vaga que seria tédio ou dor Se soubesse como sê-lo...
A manhã de Verão está, ainda assim, um pouco fresca. Um leve torpor de noite anda ainda no ar sacudido. Acelera-se ligeiramente o volante dentro de mim. E o paquete vem entrando, porque deve vir entrando sem dúvida, E não porque eu o veja mover-se na sua distância excessiva.
Na minha imaginação ele está já perto e é visível Em toda a extensão das linhas das suas vigias. E treme em mim tudo, toda a carne e toda a pele, Por causa daquela criatura que nunca chega em nenhum barco E eu vim esperar hoje ao cais, por um mandado oblíquo. Os navios que entram a barra, Os navios que saem dos portos, Os navios que passam ao longe (Suponho-me vendo-os duma praia deserta) - Todos estes navios abstratos quase na sua ida, Todos estes navios assim comovem-me como se fossem outra coisa E não apenas navios, navios indo e vindo.
E os navios vistos de perto, mesmo que se não vá embarcar neles, Vistos de baixo, dos botes, muralhas altas de chapas, Vistos dentro, através das câmaras, das salas, das despensas, Olhando de perto os mastros, afilando-se lá pró alto, Roçando pelas cordas, descendo as escadas incômodas, Cheirando a untada mistura metálica e marítima de tudo aquilo - Os navios vistos de perto são outra coisa e a mesma coisa, Dão a mesma saudade e a mesma ânsia doutra maneira.
Toda a vida marítima! tudo na vida marítima! Insinua-se no meu sangue toda essa sedução fina E eu cismo indeterminadamente as viagens. Ah, as linhas das costas distantes, achatadas pelo horizonte! Ah, os cabos, as ilhas, as praias areentas! As solidões marítimas, como certos momentos no Pacífico Em que não sei por que sugestão aprendida na escola Se sente pesar sobre os nervos o fato de que aquele é o maior dos oceanos E o mundo e o sabor das coisas tornam-se um deserto dentro de nós! A extensão mais humana, mais salpicada, do Atlântico! O indico, o mais misterioso dos oceanos todos! O Mediterrâneo, doce, sem mistério nenhum, clássico, um mar para bater De encontro a esplanadas olhadas de jardins próximos por estátuas brancas! Todos os mares, todos os estreitos, todas as baías, todos os golfos, Queria apertá-los ao peito, senti-los bem e morrer!
E vós, ó coisas navais, meus velhos brinquedos de sonho! Componde fora de mim a minha vida interior! Quilhas, mastros e velas, rodas do leme, cordagens, Chaminés de vapores, hélices, gáveas, flâmulas, Galdropes, escotilhas, caldeiras, coletores, válvulas; Caí por mim dentro em montão, em monte, Como o conteúdo confuso de uma gaveta despejada no chão! Sede vós o tesouro da minha avareza febril, Sede vós os frutos da árvore da minha imaginação, Tema de cantos meus, sangue nas veias da minha inteligência, Vosso seja o laço que me une ao exterior pela estética, Fornecei-me metáforas imagens, literatura, Porque em real verdade, a sério, literalmente, Minhas sensações são um barco de quilha pro ar, Minha imaginação uma ancora meio submersa, Minha ânsia um remo partido, E a tessitura dos meus nervos uma rede a secar na praia!
Soa no acaso do rio um apito, só um. Treme já todo o chão do meu psiquismo. Acelera-se cada vez mais o volante dentro de mim.
Ah, os paquetes, as viagens, o não-se-saber-o-paradeiro De Fulano-de-tal, marítimo, nosso conhecido! Ah, a glória de se saber que um homem que andava conosco Morreu afogado ao pé duma ilha do Pacífico! Nós que andamos com ele vamos falar nisso a todos, Com um orgulho legítimo, com uma confiança invisível Em que tudo isso tenha um sentido mais belo e mais vasto Que apenas o ter-se perdido o barco onde ele ia E ele ter ido ao fundo por lhe ter entrado água pros pulmões!
Ah, os paquetes, os navios-carvoeiros, os navios de vela! Vão rareando - ai de mim! - os navios de vela nos mares! E eu, que amo a civilização moderna, eu que beijo com a alma as máquinas, Eu o engenheiro, eu o civilizado, eu o educado no estrangeiro, Gostaria de ter outra vez ao pé da minha vista só veleiros e barcos de madeira, De não saber doutra vida marítima que a antiga vida dos mares! Porque os mares antigos são a Distância Absoluta, O Puro Longe, liberto do peso do Atual... E ah, como aqui tudo me lembra essa vida melhor, Esses mares, maiores, porque se navegava mais devagar. Esses mares, misteriosos, porque se sabia menos deles.
Todo o vapor ao longe é um barco de vela perto. Todo o navio distante visto agora é um navio no passado visto próximo. Todos os marinheiros invisíveis a bordo dos navios no horizonte São os marinheiros visíveis do tempo dos velhos navios, Da época lenta e veleira das navegações perigosas, Da época de madeira e lona das viagens que duravam meses.
Toma-me pouco a pouco o delírio das coisas marítimas, Penetram-me fisicamente o cais e a sua atmosfera, O marulho do Tejo galga-me por cima dos sentidos, E começo a sonhar, começo a envolver-me do sonho das águas, Começam a pegar bem as correias-de-transmissão na minh'alma E a aceleração do volante sacode-me nitidamente.
Chamam por mim as águas, Chamam por mim os mares, Chamam por mim, levantando uma voz corpórea, os longes, As épocas marítimas todas sentidas no passado, a chamar.
Tu, marinheiro inglês, Jim Barns meu amigo, foste tu Que me ensinaste esse grito antiquíssimo, inglês, Que tão venenosamente resume Para as almas complexas como a minha O chamamento confuso das águas, A voz inédita e implícita de todas as coisas do mar, Dos naufrágios, das viagens longínquas, das travessias perigosas. Esse teu grito inglês, tornado universal no meu sangue, Sem feitio de grito, sem forma humana nem voz, Esse grito tremendo que parece soar De dentro duma caverna cuja abóbada é o céu E parece narrar todas as sinistras coisas Que podem acontecer no Longe, no Mar, pela Noite... (Fingias sempre que era por uma escuna que chamavas, E dizias assim, pondo uma mão de cada lado da boca, Fazendo porta-voz das grandes mãos curtidas e escuras:
Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò - yyy... Schooner ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-oò -yyy...)
Escuto-te de aqui, agora, e desperto a qualquer coisa. Estremece o vento. Sobe a manhã. O calor abre. Sinto corarem-me as faces. Meus olhos conscientes dilatam-se. O êxtase em mim levanta-se, cresce, avança, E com um ruído cego de arruaça acentua-se O giro vivo do volante.
Ó clamoroso chamamento A cujo calor, a cuja fúria fervem em mim Numa unidade explosiva todas as minhas ânsias, Meus próprios tédios tornados dinâmicos, todos!... Apelo lançado ao meu sangue Dum amor passado, não sei onde, que volve E ainda tem força para me atrair e puxar, Que ainda tem força para me fazer odiar esta vida Que passo entre a impenetrabilidade física e psíquica Da gente real com que vivo!
Ah seja como for, seja por onde for, partir! Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar. Ir para Longe, ir para Fora, para a Distância Abstrata, Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas, Levado, como a poeira, plos ventos, plos vendavais! Ir, ir, ir, ir de vez!
Todo o meu sangue raiva por asas! Todo o meu corpo atira-se pra frente! Galgo pla minha imaginação fora em torrentes! Atropelo-me, rujo, precipito-me Estoiram em espuma as minhas ânsias E a minha carne é uma onda dando de encontro a rochedos!
Pensando nisto - ó raiva! pensando nisto - ó fúria! Pensando nesta estreiteza da minha vida cheia de ânsias, Subitamente, tremulamente extraorbitadamente, Com uma oscilação viciosa, vasta, violenta, Do volante vivo da minha imaginação. Rompe, por mim, assobiando, silvando, vertiginando, O cio sombrio e sádico da estrídula vida marítima.
Eh marinheiros, gajeiros! eh tripulantes, pilotos! Navegadores, mareantes, marujos, aventureiros! Eh capitães de navios! homens ao leme e em mastros! Homens que dormem em beliches rudes! Homens que dormem co'o Perigo a espreitar plas vigias! Homens que dormem co'a Morte por travesseiro! Homens que têm tombadilhos, que têm pontes donde olhar A imensidade imensa do mar imenso! Eh manipuladores dos guindastes de carga! Eh amainadores de velas, fagueiros, criados de bordo! Homens que metem a carga nos porões! Homens que enrolam cabos no convés! Homens que limpam os metais das escotilhas! Homens do leme! homens das máquinas! homens dos mastros! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! Gente de boné de pala! Gente de camisola de malha! Gente de âncoras e bandeiras cruzadas bordadas no peito! Gente tatuada! gente de cachimbo! gente de amurada! Gente escura de tanto sol, crestada de tanta chuva, Limpa de olhos de tanta imensidade diante deles, Audaz de rosto de tantos ventos que lhes bateram a valer!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! Homens que vistes a Patagônia! Homens que passasses pela Austrália! Que enchesses o vosso olhar de costas que nunca verei! Que fostes a terra em terras onde nunca descerei! Que comprastes artigos toscos em colônias à proa de sertões! E fizestes tudo isso como se não fosse nada, Como se isso fosse natural, Como se a vida fosse isso, Como nem sequer cumprindo um destino! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! Homens do mar atual! homens do mar passado! Comissários de bordo! escravos das galés! combatentes de Lepanto! Piratas do tempo de Roma! Navegadores da Grécia! Fenícios! Cartagineses! Portugueses atirados de Sagres Para a aventura indefinida, para o Mar Absoluto, para realizar o Impossível! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! Homens que erguestes padrões, que destes nomes a cabos! Homens que negociastes pela primeira vez com pretos! Que primeiro vendesses escravos de novas terras! Que destes o primeiro espasmo europeu às negras atônitas Que trouxesses ouro, miçanga, madeiras cheirosas, setas, De encostas explodindo em verde vegetação! Homens que saqueasses tranqüilas povoações africanas Que fizestes fugir com o ruído de canhões essas raças Que matastes, roubastes, torturastes, ganhastes Os prêmios de Novidade de quem, de cabeça baixa Arremete contra o mistério de novos mares! Eh-eh-eh eh-eh! A vós todos num, a vós todos em vós todos como um, A vós todos misturados, entrecruzados. A vós todos sangrentos, violentos, odiados, temidos, sagrados, Eu vos saúdo, eu vos saúdo, eu vos saúdo! Eh-eh-eh-eh eh! Eh eh-eh-eh eh! Eh-eh-eh eh-eh-eh eh! Eh lahô-lahô laHO-lahá-á-á-à-à!
Quero ir convosco, quero ir convosco, Ao mesmo tempo com vós todos Pra toda a parte pr'onde fostes! Quero encontrar vossos perigos frente a frente, Sentir na minha cara os ventos que engelharam as vossa Cuspir dos lábios o sal dos mares que beijaram os vossos Ter braços na vossa faina, partilhar das vossas tormentas Chegar como vós, enfim, a extraordinários portos! Fugir convosco à civilização! Perder convosco a noção da moral! Sentir mudar-se no longe a minha humanidade! Beber convosco em mares do Sul Novas selvajarias, novas balbúrdias da alma, Novos fogos centrais no meu vulcânico espírito! Ir convosco, despir de mim - ah! põe-te daqui pra fora! - O meu traje de civilizado, a minha brandura de ações, Meu medo inato das cadeias, Minha pacífica vida, A minha vida sentada, estática, regrada e revista!
No mar, no mar, no mar, no mar, Eh! pôr no mar, ao vento, às vagas, A minha vida! Salgar de espuma arremessada pelos ventos Meu paladar das grandes viagens. Fustigar de água chicoteante as carnes da minha aventura, Repassar de frios oceânicos os ossos da minha existência, Flagelar, cortar, engelhar de ventos, de espumas, de sóis, Meu ser ciclônico e atlântico, Meus nervos postos como enxárcias, Lira nas mãos dos ventos!
Sim, sim, sim... Crucificai-me nas navegações E as minhas espáduas gozarão a minha cruz! Atai-me às viagens como a postes E a sensação dos postes entrará pela minha espinha E eu passarei a senti-los num vasto espasmo passivo! Fazei o que quiserdes de mim, logo que seja nos mares, Sobre conveses, ao som de vagas, Que me rasgueis, mateis, fira-os! O que quero é levar pra Morte Uma alma a transbordar de Mar, Ébria a cair das coisas marítimas, Tanto dos marujos como das âncoras, dos cabos, Tanto das costas longínquas como do ruído dos ventos, Tanto do Longe como do Cais, tanto dos naufrágios Como dos tranqüilos comércios, Tanto dos mastros como das vagas, Levar pra Morte com dor, voluptuosamente, Um copo cheio de sanguessugas, a sugar, a sugar, De estranhas verdes absurdas sanguessugas marítimas!
Façam enxárcias das minhas veias! Amarras dos meus músculos! Atranquem-me a pele, preguem-na às quilhas. E possa eu sentir a dor dos pregos e nunca deixar de sentir! Façam do meu coração uma flâmula de almirante Na hora de guerra aos velhos navios! Calquem aos pés nos conveses meus olhos arrancados! Quebrem-me os ossos de encontro às amuradas! Fustiguem-me atado aos mastros, fustiguem-me! A todos os ventos de todas as latitudes e longitudes Derramem meu sangue sobre as águas arremessadas Que atravessam o navio, o tombadilho, de lado a lado, Nas vascas bravas das tormentas!
Ter a audácia ao vento dos panos das velas! Ser, como as gáveas altas, o assobio dos ventos! A velha guitarra do Fado dos mares cheios de perigos, Canção para os navegadores ouvirem e não repetirem!
Os marinheiros que se sublevaram Enforcaram o capitão numa verga. Desembarcaram um outro numa ilha deserta. Morooned! O sol dos trópicos pôs a febre da pirataria antiga Nas minhas veias intensivas. Os ventos da Patagônia tatuaram a minha imaginação De imagens trágicas e obscenas. Fogo, fogo, fogo, dentro de mim! Sangue! sangue! sangue! sangue! Explode todo o meu cérebro! Parte-se-me o mundo em vermelho! Estoiram-me com o som de amarras as veias! E estala em mim, feroz, voraz, A canção do Grande Pirata, A morte berrada do Grande Pirata a cantar Até meter pavor plas espinhas dos seus homens abaixo. Lá da ré a morrer, e a berrar, a cantar:
Fifteen men on the Dead Man's Chest. Yo-ho ho and a bottle of rum I
E depois a gritar, numa voz já irreal, a estoirar no ar: Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw! Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw-aw-aw-aw! Fetch a-a-aft th ru-u-u-u-u-u-u-u-u-um, Darby,
Eia,, que vida essa! essa era a vida, eia! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! Eh-lahô-lahô-laFIO-Iahá-á-á-à-à! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Quilhas partidas, navios ao fundo, sangue nos mares Conveses cheios de sangue, fragmentos de corpos! Dedos decepados sobre amuradas! Cabeças de crianças, aqui, acolá! Gente de olhos fora, a gritar, a uivar! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! Embrulho-me em tudo isto como uma capa no frio! Roço-me por tudo isto como uma gata com cio por um muro! Rujo como um leão faminto para tudo isto! Arremeto como um toiro louco sobre tudo isto! Cravo unhas, parto garras, sangro dos dentes sobre isto! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
De repente estala-me sobre os ouvidos Como um clarim a meu lado, O velho grito, mas agora irado, metálico, Chamando a presa que se avista, A escuna que vai ser tomada:
Ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó - yyyy.. Schooner ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó - yyyy...
O mundo inteiro não existe para mim! Ardo vermelho! Rujo na fúria da abordagem! Pirata-mór! César-Pirata! Pilho, mato, esfacelo, rasgo! Só sinto o mar, a presa, o saque! Só sinto em mim bater, baterem-me As veias das minhas fontes! Escorre sangue quente a minha sensação dos meus olhos! Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!
Ah piratas, piratas, piratas! Piratas, amai-me e odiai-me! Misturai-me convosco, piratas!
Vossa fúria, vossa crueldade corno falam ao sangue Dum corpo de mulher que foi meu outrora e cujo cio sobrevive!
Eu queria ser um bicho representativo de todos os vossos gestos, Um bicho que cravasse dentes nas amuradas, nas quilhas Que comesse mastros, bebesse sangue e alcatrão nos conveses, Trincasse velas, remos, cordame e poleame, Serpente do mar feminina e monstruosa cevando-se nos crimes!
E há uma sinfonia de sensações incompatíveis e análogas, Há uma orquestrarão no meu sangue de balbúrdias de crimes, De estrépitos espasmados de orgias de sangue nos mares, Furlbundamente, como um vendaval de calor pelo espírito, Nuvem de poeira quente anuviando a minha lucidez E fazendo-me ver e sonhar isto tudo só com a pele e as veias!
Os piratas, a pirataria, os barcos, a hora, Aquela hora marítima em que as presas são assaltadas, E o terror dos apresados foge pra loucura - essa hora, No seu total de crimes, terror, barcos, gente, mar, céu, nuvens, Brisa, latitude, longitude, vozearia, Queria eu que fosse em seu Todo meu corpo em seu Todo, sofrendo, Que fosse meu corpo e meu sangue, compusesse meu ser em vermelho, Florescesse como uma ferida comichando na carne irreal da minha alma!
Ah, ser tudo nos crimes! ser todos os elementos componentes Dos assaltos aos barcos e das chacinas e das violações! Ser quanto foi no lugar dos saques! Ser quanto viveu ou jazeu no local das tragédias de sangue! Ser o pirata-resumo de toda a pirataria no seu auge, E a vítima-síntese, mas de carne e osso, de todos os piratas do mundo! Ser o meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres Que foram violadas, mortas, feridas, rasgadas pelos piratas! Ser no meu ser subjugado a fêmea que tem de ser deles E sentir tudo isso -- todas estas coisas duma só vez - pela espinha!
Ó meus peludos e rudes heróis da aventura e do crime! Minhas marítimas feras, maridos da minha imaginação! Amantes casuais da obliqüidade das minhas sensações! Queria ser Aquela que vos esperasse nos portos, A vós, odiados amados do seu sangue de pirata nos sonhos! Porque ela teria convosco, mas só em espírito, raivado Sobre os cadáveres nus das vítimas que fazeis no mar! Porque ela teria acompanhado vosso crime, e na orgia oceânica Seu espírito de bruxa dançaria invisível em volta dos gestos Dos vossos corpos, dos vossos cutelos, das vossas mãos estranguladores! E ela em terra, esperando-vos, quando viésseis, se acaso viésseis, Iria beber nos rugidos do vosso amor todo o vasto, Todo o nevoento e sinistro perfume das vossas vitórias, E através dos vossos espasmos silvaria um sabbat de vermelho e amarelo!
A carne rasgada, a carne aberta e estripada, o sangue correndo! Agora, no auge conciso de sonhar o que vós fazíeis, Perco-me todo de mim, já não vos pertenço, sou vós, A minha feminilidade que vos acompanha é ser as vossas almas! Estar por dentro de toda a vossa ferocidade, quando a praticáveis! Sugar por dentro a vossa consciência das vossas sensações Quando tingíeis de sangue os mares altos, Quando de vez em quando atiráveis aos tubarões Os corpos vivos ainda dos feridos, a carne rosada das crianças E leváveis as mães às amuradas para verem o que lhes acontecia!
Estar convosco na carnagem, na pilhagem! Estar orquestrado convosco na sinfonia dos saques! Ah, não sei quê, não sei quanto queria eu ser de vós! Não era só ser-vos a fêmea, ser-vos as fêmeas, ser-vos as vítimas, Ser-vos as vítimas - homens, mulheres, crianças, navios -, Não era só ser a hora e os barcos e as ondas, Não era só ser vossas almas, vossos corpos, vossa fúria, vossa posse, Não era só ser concretamente vosso ato abstrato de orgia, Não era só isto que eu queria ser - era mais que isto o Deus-isto! Era preciso ser Deus, o Deus dum culto ao contrário, Um Deus monstruoso e satânico, um Deus dum panteísmo de sangue, Para poder encher toda a medida da minha fúria imaginativa, Para poder nunca esgotar os meus desejos de identidade Com o cada, e o tudo, e o mais-que-tudo das vossas vitórias!
Ah, torturai-me para me curardes! Minha carne - fazei dela o ar que os vossos cutelos atravessam Antes de caírem sobre as cabeças e os ombros! Minhas veias sejam os fatos que as facas trespassam! Minha imaginação o corpo das mulheres que violais! Minha inteligência o convés onde estais de pé matando! Minha vida toda, no seu conjunto nervoso, histérico, absurdo, O grande organismo de que cada ato de pirataria que se cometeu Fosse uma célula consciente - e todo eu turbilhonasse Como uma imensa podridão ondeando, e fosse aquilo tudo!
Com tal velocidade desmedida, pavorosa, A máquina de febre das minhas visões transbordantes Gira agora que a minha consciência, volante, E apenas um nevoento círculo assobiando no ar.
Fifteen men on tbe Dead Man's Chest. Yo-ho-ho and a bottle of rum!
Eh-lahô-lahô-laHO - lahá-á-ááá - ààà...
Ah! a selvajaria desta selvajaria! Merda Pra toda a vida como a nossa, que não é nada disto! Eu pr'àqui engenheiro, pratico à força, sensível a tudo, Pr'àqui parado, em relação a vós, mesmo quando ando; Mesmo quando ajo, inerte; mesmo quando me imponho, débil; Estático, quebrado, dissidente cobarde da vossa Glória, Da vossa grande dinâmica estridente, quente e sangrenta!
Arre! por não poder agir de acordo com o meu delírio! Arre! por andar sempre agarrado às saias da civilização! Por andar com a douceur des moeurs às costas, como um fardo de rendas! Moços de esquina - todos nós o somos - do humanitarismo moderno! Estupores de tísicos, de neurastênicos, de linfáticos, Sem coragem para ser gente com violência e audácia, Com a alma como uma galinha presa por uma perna!
Ah, os piratas! os piratas!. A ânsia do ilegal unido ao feroz, A ânsia das coisas absolutamente cruéis e abomináveis, Que rói como um cio abstrato os nossos corpos franzimos, Os nossos nervos femininos e delicados, E põe grandes febres loucas nos nossos olhares vazios!
Obrigai-me a ajoelhar diante de vós! Humilhai-me e batei-me! Fazei de mim o vosso escravo e a vossa coisa! E que o vosso desprezo por mim nunca me abandone, Ó meus senhores! ó meus senhores!
Tomar sempre gloriosamente a parte submissa Nos acontecimentos de sangue e nas sensualidades estiradas! Desabai sobre mim, como grandes muros pesados, Ó bárbaros do antigo mar! Rasgai-me e feri-me! De leste a oeste do meu corpo Riscai de sangue a minha carne! Beijai com cutelos de bordo e açoites e raiva O meu alegre terror carnal de vos pertencer. A minha ânsia masoquista em me dar à vossa fúria, Em ser objeto inerte e sentiente da vossa omnívora crueldade, Dominadores, senhores, imperadores, corcéis! Ah, torturai-me, Rasgai-me e abri-me! Desfeito em pedaços conscientes Entornai-me sobre os conveses, Espalhal-me nos mares, deixai-me Nas praias ávidas das ilhas!
Cevai sobre mim todo o meu misticismo de vós! Cinzelai a sangue a minh'alma Cortai, riscai! Ó tatuadores da minha imaginação corpórea! Esfoladores amados da minha cama submissão! Submetei-me como quem mata um cão a pontapés! Fazei de mim o poço para o vosso desprezo de domínio! Fazei de mim as vossas vítimas todas! Como Cristo sofreu por todos os homens, quero sofrer Por todas as vossas vítimas às vossas mãos, Às vossas mãos calosas, sangrentas e de dedos decepados Nos assaltos bruscos de amuradas!
Fazei de mim qualquer, cousa como se eu fosse Arrastado - ó prazer, o beijada dor! - Arrastado à cauda de cavalos chicoteados por vós... Mas isto no mar, isto no ma-a-a-ar, isto no MA-A-A-AR! Eh-eh-eh-eh-eh! Eh--.h-eh-eh-eh-eh-eh! EH-EH-EHEH-EH-EH-EH! No MA-A-A-A-AR!
Yeh eh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eheh-eh-eh-eh-eh' Grita tudo! tudo a gritar! ventos, vagas, barcos, Marés, gáveas, piratas, a minha alma, o sangue, e o ar, e o ar! Eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh-eh! Tudo canta a gritar!
FIFTEEN MEN ON THE DEAD MAN'S CHEST. YO-HO-HO AND A BOTTLE OF RUM!
Eh-eh eh-eh -eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eheh-eh! Eh eheh eh-eh-eh-eh! Eh-lahô-lahô-laHO-O-O-ôô-lahá-á à - ààà!
AHÓ-Ó-Ó Ó Ó Ó-Ó Ó Ó Ó Ó - yyyj... SCHOONER AHÓ-ó-ó-ó-ó-ó-ó-o-o-o - yyyy! ...
Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw-aw! DA.RBY M'GRAW-AW AW-AW-AW-AW-AW! FETCH A-A-AFT THE RU-U-U-U-U-UM, DARBY!
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh eh-eh-eh! EH-EH EH-EH-EH EH-EH EH-EH EH-EH-EH! EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH EH EH-EH! EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EFI-EH-EH-EH-EHI EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!
Parte-se em mim qualquer coisa. O vermelho anoiteceu. Senti demais para poder continuar a sentir. Esgotou-se-me a alma, ficou só um eco dentro de mim. Decresce sensivelmente a velocidade do volante. Tiram-me um pouco as mãos dos olhos os meus sonhos. Dentro de mim há um só vácuo, um deserto, um mar noturno. E logo que sinto que há um mar noturno dentro de mim, Sabe dos longes dele, nasce do seu silêncio, Outra vez, outra vez o vasto grito antiquíssimo. De repente, como um relâmpago de som, que não faz barulho mas ternura,
Subitamente abrangendo todo o horizonte marítimo Úmido e sombrio marulho humano noturno, Voz de sereia longínqua chorando, chamando, Vem do fundo do Longe, do fundo do Mar, da alma dos Abismos, E à tona dele, como algas, bóiam meus sonhos desfeitos...
Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò - yy... Schooner a Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò - yy...
Ah, o orvalho sobre a minha excitação! O frescor noturno no meu oceano interior! Eis tudo em mim de repente ante uma noite no mar Cheia de enorme mistério humaníssimo das ondas noturnas A lua sobe no horizonte E a minha infância feliz acorda, como uma lágrima, em mim. O meu passado ressurge, como se esse grito marítimo Fosse um aroma, uma voz, o eco duma canção Que fosse chamar ao meu passado Por aquela felicidade que nunca mais tornarei a ter.
Era na velha casa sossegada ao pé do rio (As janelas do meu quarto, e as da casa-de-jantar também, Davam, por sobre umas casas baixas, para o rio próximo, Para o Tejo, este mesmo Tejo, mas noutro ponto, mais abaixo Se eu agora chegasse às mesmas janelas não chegava às mesmas janelas. Aquele tempo passou como o fumo dum vapor no mar alto... )
Uma inexplicável ternura, Um remorso comovido e lacrimoso, Por todas aquelas vítimas - principalmente as crianças - Que sonhei fazendo ao sonhar-me pirata antigo, Emoção comovida, porque elas foram minhas vítimas; Terna e suave, porque não o foram realmente; Uma ternura confusa, como um vidro embaciado, azulada, Canta velhas canções na minha pobre alma dolorida.
Ah, como pude eu pensar, sonhar aquelas coisas? Que longe estou do que fui há uns momentos! Histeria das sensações - ora estas, ora as opostas! Na loura manhã que se ergue, como o meu ouvido só escolhe As cousas de acordo com esta emoção - o marulho das águas. O marulho leve das águas do rio de encontro ao cais.... A vela passando perto do outro lado do rio, Os montes longínquos, dum azul japonês, As casas de Almada, E o que há de suavidade e de infância na hora matutina!...
Uma gaivota que passa, E a minha ternura é maior.
Mas todo este tempo não estive a reparar para nada. Tudo isto foi uma impressão só da pele, com uma carícia Todo este tempo não tirei os olhos do meu sonho longínquo, Da minha casa ao pé do rio, Da minha infância ao pé do rio, Das janelas do meu quarto dando para o rio de noite, E a paz do luar esparso nas águas! ...
Minha velha tia, que me amava por causa do filho que perdeu..., Minha velha tia costumava adormecer-me cantando-me (Se bem que eu fosse já crescido demais para isso)... Lembro-me e as lágrimas caem sobre o meu coração e lavam-no da vida, E ergue-me uma leve brisa marítima dentro de mim. As vezes ela cantava a "Nau Catrineta":
Lá vai a Nau Catrineta Por sobre as águas do mar ...
E outras vezes, numa melodia muito saudosa e tão medieval, Era a "Bela Infanta"... Relembro, e a pobre velha voz ergue-se dentro de mim E lembra-me que pouco me lembrei dela depois, e ela amava-me tanto! Como fui ingrato para ela - e afinal que fiz eu da vida? Era a "Bela Infanta"... Eu fechava os olhos, e ela cantava:
Estando a Bela Infanta No seu Jardim assentada...
Eu abria um pouco os olhos e via a janela cheia de luar E depois fechava os olhos outra vez, e em tudo isto era feliz.
Estando a Bela Infanta No seu jardim assentada, Seu pente de ouro na mão, Seus cabelos penteava
Ó meu passado de infância, boneco que me partiram! Não poder viajar pra o passado, para aquela casa e aquela afeição, E ficar lá sempre, sempre criança e sempre contente!
Mas tudo isto foi o Passado, lanterna a uma esquina de rua velha. Pensar isto faz frio, faz fome duma cousa que se não pode obter. Dá-me não sei que remorso absurdo pensar nisto. Oh turbilhão lento de sensações desencontradas! Vertigem tênue de confusas coisas na alma! Fúrias partidas, ternuras como carrinhos de linha com que as crianças brincam, Grandes desabamentos de imaginação sobre os olhos dos sentidos, Lágrimas, lágrimas inúteis, Leves brisas de contradição roçando pela face a alma...
Evoco, por um esforço voluntário, para sair desta emoção, Evoco, com um esforço desesperado, seco, nulo, A canção do Grande Pirata, quando estava a morrer:
Fifteen men on the Dead Man's Chest. Yo-ho-ho and a bottle of rum!
Mas a canção é uma linha reta mal traçada dentro de mim... Esforço-me e consigo chamar outra vez ante os meus olhos na alma, Outra vez, mas através duma imaginação quase literária, A fúria da pirataria, da chacina, o apetite, quase do paladar, do saque, Da chacina inútil de mulheres e de crianças, Da tortura fútil, e só para nos distrairmos, dos passageiros pobres E a sensualidade de escangalhar e partir as coisas mais queridas dos outros, Mas sonho isto tudo com um medo de qualquer coisa a respirar-me sobre a nuca.
Lembro-me de que seria interessante Enforcar os filhos à vista das mães (Mas sinto-me sem querer as mães deles), Enterrar vivas nas ilhas desertas as crianças de quatro anos Levando os pais em barcos até lá para verem (Mas estremeço, lembrando-me dum filho que não tenho e está dormindo tranqüilo em casa).
Aguilhôo uma ânsia fria dos crimes marítimos, Duma inquisição sem a desculpa da Fé, Crimes nem sequer com razão de ser de maldade e de fúria, Feitos a frio, nem sequer para ferir, nem sequer para fazer mal, Nem sequer para nos divertirmos, mas apenas para passar o tempo, Como quem faz paciências a uma mesa de jantar de província com a toalha Atirada pra o outro lado da mesa depois de jantar, Só pelo suave gosto de cometer crimes abomináveis e não os achar grande coisa, De ver sofrer até ao ponto da loucura e da morte-pela-dor mas nunca deixar chegar lá... Mas a minha imaginação recusa-se a acompanhar-me. Um calafrio arrepia-me. E de repente, mais de repente do que da outra vez, de mais longe, de mais fundo, De repente - oh pavor por todas as minhas veias! -, Oh frio repentino da porta para o Mistério que se abriu dentro de mim e deixou entrar uma corrente de ar! Lembro-me de Deus, do Transcendental da vida, e de repente A velha voz do marinheiro inglês Jim Barris com quem eu falava, Tornada voz das ternuras misteriosas dentro de mim, das pequenas coisas de regaço de mãe e de fita de cabelo de irmã, Mas estupendamente vinda de além da aparência das coisas, A Voz surda e remota tornada A Voz Absoluta, a Voz Sem Boca, Vinda de sobre e de dentro da solidão noturna dos mares, Chama por mim, chama por mim, chama por mim ...
Vem surdamente, como se fosse suprimida e se ouvisse, Longinquamente, como se estivesse soando noutro lugar e aqui não se pudesse ouvir, Como um soluço abafado, uma luz que se apaga, um hálito silencioso. De nenhum lado do espaço, de nenhum local no tempo,
O grito eterno e noturno, o sopro fundo e confuso:
Ahô-ô-õ-õ-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô - yyy...... Ahô-ô-õ-õ-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô - yyy...... Schooner ah-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô ô - - yy.....
Tremo com frio da alma repassando-me o corpo E abro de repente os olhos, que não tinha fechado. Ah, que alegria a de sair dos sonhos de vez! Eis outra vez o mundo real, tão bondoso para os nervos! Ei-lo a esta hora matutina em que entram os paquetes que chegam cedo.
Já não me importa o paquete que entrava. Ainda está longe. Só o que está perto agora me lava a alma. A minha imaginação higiênica, forte, pratica, Preocupa-se agora apenas com as coisas modernas e úteis, Com os navios de carga, com os paquetes e os passageiros, Com as fortes coisas imediatas, modernas, comerciais, verdadeiras. Abranda o seu giro dentro de mim o volante.
Maravilhosa vida marítima moderna, Toda limpeza, máquinas e saúde! Tudo tão bem arranjado, tão espontaneamente ajustado, Todas as peças das máquinas, todos os navios pelos mares, Todos os elementos da atividade comercial de exportação e importação Tão maravilhosamente combinando-se Que corre tudo como se fosse por leis naturais, Nenhuma coisa esbarrando com outra!
Nada perdeu a poesia. E agora há a mais as máquinas Com a sua poesia também, e todo o novo gênero de vida Comercial, mundana, intelectual, sentimental, Que a era das máquinas veio trazer para as almas. As viagens agora são tão belas como eram dantes E um navio será sempre belo, só porque é um navio. Viajar ainda é viajar e o longe está sempre onde esteve Em parte nenhuma, graças a Deus!
Os portos cheios de vapores de muitas espécies! Pequenos, grandes, de várias cores, com várias disposições de vigias, De tão deliciosamente tantas companhias de navegação! Vapores nos portos, tão individuais na separação destacada dos ancoramentos! Tão prazenteiro o seu garbo quieto de cousas comerciais que andam no mar, No velho mar sempre o homérico, ó Ulisses!
O olhar humanitário dos faróis na distância da noite, Ou o súbito farol próximo na noite muito escura ("Que perto da terra que estávamos passando!" E o som da água canta-nos ao ouvido)! ...
Tudo isto hoje é como sempre foi, mas há o comércio; E o destino comercial dos grandes vapores Envaidece-me da minha época! A mistura de gente a bordo dos navios de passageiros Dá-me o orgulho moderno de viver numa época onde é tão fácil Misturarem-se as raças, transporem-se os espaços, ver com facilidade todas as coisas, E gozar a vida realizando um grande número de sonhos.
Limpos, regulares, modernos como um escritório com guichets em redes de arame amarelo! Meus sentimentos agora, naturais e comedidos como , gentlemen, São práticos, longe de desvairamentos, enchem de ar marítimo os pulmões, Como gente perfeitamente consciente de como é higiênico respirar o ar do mar.
O dia é perfeitamente já de horas de trabalho. Começa tudo a movimentar-se, a regularizar-se.
Com um grande prazer natural e direto percorro a alma Todas as operações comerciais necessárias a um embarque de mercadorias. A minha época é o carimbo que levam todas as faturas E sinto que todas as cartas de todos os escritórios Deviam ser endereçadas a mim.
Um conhecimento de bordo tem tanta individualidade, E uma assinatura de comandante de navio é tão bela e moderna! Rigor comercial do princípio e do fim das cartas: Dear Sirs - Messieurs - Amigos e Srs., Yours faithfully - ...nos salutations empressées... Tudo isto não é só humano e limpo, mas também belo, E tem ao fim um destino marítimo, um vapor onde embarquem As mercadorias de que as cartas e as faturas tratam.
Complexidade da vida! As faturas são feitas por gente Que tem amores, ódios, paixões políticas, às vezes crimes - E são tão bem escritas, tão alinhadas, tão independentes de tudo isso! Há quem olhe para uma fatura e não sinta isto. Com certeza que tu, Cesário Verde, o sentias. Eu é até às lágrimas que o sinto humanissimamente. Venham dizer-me que não há poesia no comércio, nos escritórios! Ora, ela entra por todos os poros... Neste ar marítimo respiro-a, Por tudo isto vem a propósito dos vapores, da navegação moderna, Porque as faturas e as cartas comerciais são o princípio da história E os navios que levam as mercadorias pelo mar eterno são o fim.
Ah, e as viagens, as viagens de recreio, e as outras, As viagens por mar, onde todos somos companheiros dos outros Duma maneira especial, como se um mistério marítimo Nos aproximasse as almas e nos tornasse um momento Patriotas transitórios duma mesma pátria incerta, Eternamente deslocando-se sobre a imensidade das água,, Grandes hotéis do Infinito, oh transatlânticos meus!
Com o cosmopolitismo perfeito e total de nunca pararem num ponto E conterem todas as espécies de trajes, de caras, de raças!
As viagens, os viajantes - tantas espécies deles! Tanta nacionalidade sobre o mundo! tanta profissão! tanta gente! Tanto destino diverso que se pode dar à vida, À vida, afinal, no fundo sempre, sempre a mesma! Tantas caras curiosas! Todas as caras são curiosas E nada traz tanta religiosidade como olhar muito para gente. A fraternidade afinal não é uma idéia revolucionária. É uma coisa que a gente aprende pela vida fora, onde tem que tolerar tudo, E passa a achar graça ao que tem que tolerar, E acaba quase a chorar de ternura sobre o que tolerou!
Ah, tudo isto é belo, tudo isto é humano e anda ligado Aos sentimentos humanos, tão conviventes e burgueses. Tão complicadamente simples, tão metafisicamente tristes! A vida flutuante, diversa, acaba por nos educar no humano. Pobre gente! pobre gente toda a gente!
Despeço-me desta hora no corpo deste outro navio Que vai agora saindo. É um tramp-steamer inglês, Muito sujo, como se fosse um navio francês, Com um ar simpático de proletário dos mares, E sem dúvida anunciado ontem na última página das gazetas.
Enternece-me o pobre vapor, tão humilde vai ele e tão natural. Parece ter um certo escrúpulo não sei em quê, ser pessoa honesta, Curnpridora duma qualquer espécie de deveres. Lá vai ele deixando o lugar defronte do cais onde estou. Lá vai ele tranqüilamente, passando por onde as naus estiveram Outrora, outrora... Para Cardiff? Para Liverpool? Para Londres? Não tem importância. Ele faz o seu dever. Assim façamos nós o nosso. Bela vida! Boa viagem! Boa viagem! Boa viagem, meu pobre amigo casual, que me fizeste o favor De levar contigo a febre e a tristeza dos meus sonhos, E restituir-me à vida para olhar para ti e te ver passar. Boa viagem! Boa viagem! A vida é isto...
Que aprumo tão natural, tão inevitavelmente matutino Na tua saída do porto de Lisboa, hoje! Tenho-te uma afeição curiosa e grata por isso... Por isso quê? Sei lá o que é!... Vai... Passa... Com um ligeiro estremecimento, (T-t--t --- r ---- t----- r ... ) O volante dentro de mim pára.
Passa, lento vapor, passa e não fiques... Passa de mim, passa da minha vista, Vai-te de dentro do meu coração, Perde-te no Longe, no Longe, bruma de Deus, Perde-te, segue o teu destino e deixa-me... Eu quem sou para que chore e interrogue? Eu quem sou para que te fale e te ame? Eu quem sou para que me perturbe ver-te? Larga do cais, cresce o sol, ergue-se ouro, Luzem os telhados dos edifícios do cais, Todo o lado de cá da cidade brilha... Parte, deixa-me, torna-te Primeiro o navio a meio do rio, destacado e nítido, Depois o navio a caminho da barra, pequeno e preto Depois ponto vago no horizonte (ó minha angústia!), Ponto cada vez mais vago no horizonte.... Nada depois, e só eu e a minha tristeza, E a grande cidade agora cheia de sol E a hora real e nua como um cais já sem navios, E o giro lento do guindaste que, como um compasso que gira, Traça um semicírculo de não sei que emoção No silêncio comovido da minh'alma...
Álvaro de Campos, in "Poemas" Heterónimo de Fernando Pessoa
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Conquista |
em 09/10/2012 21:46:33 (7071 leituras) |
Livre não sou, que nem a própria vida Mo consente. Mas a minha aguerrida Teimosia É quebrar dia a dia Um grilhão da corrente.
Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino. E vão lá desdizer o sonho do menino Que se afogou e flutua Entre nenúfares de serenidade Depois de ter a lua!
Miguel Torga, in 'Cântico do Homem'
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As montanhas |
em 09/10/2012 20:55:09 (2346 leituras) |
I
Das nebulosas em que te emaranhas Levanta-te, alma, e dize-me, afinal, Qual é, na natureza espiritual, A significação dessas montanhas!
Quem não vê nas graníticas entranhas A subjetividade ascensional Paralisada e estrangulada, mal Quis erguer-se a cumíadas tamanhas?!
Ah! Nesse anelo trágico de altura Não serão as montanhas, porventura, Estacionadas, íngremes, assim,
Por um abortamento de mecânica, A representação ainda inorgânica De tudo aquilo que parou em mim?!
II
Agora, oh! deslumbrada alma perscruta O puerpério geológico interior, De onde rebenta, em contrações de dor, Toda a sublevação da crusta hirsuta!
No curso inquieto da terráquea luta Quantos desejos férvidos de amor Não dormem, recalcados, sob o horror Dessas agregações de pedra bruta?!
Como nesses relevos orográfícos, Inacessíveis aos humanos tráficos Onde sóis, em semente, amam jazer,
Quem sabe, alma, se o que ainda não existe Não vive em gérmen no agregado triste Da síntese sombria do meu Ser?! FONTE: JORNAL DE POESIA
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Romance Sonâmbulo |
em 09/10/2012 20:45:42 (2553 leituras) |
(A Gloria Giner e a Fernando de los Rios)
Verde que te quero verde. Verde vento. Verdes ramas. O barco vai sobre o mar e o cavalo na montanha. Com a sombra pela cintura ela sonha na varanda, verde carne, tranças verdes, com olhos de fria prata. Verde que te quero verde. Por sob a lua gitana, as coisas estão mirando-a e ela não pode mirá-las.
Verde que te quero verde. Grandes estrelas de escarcha nascem com o peixe de sombra que rasga o caminho da alva. A figueira raspa o vento a lixá-lo com as ramas, e o monte, gato selvagem, eriça as piteiras ásperas.
Mas quem virá? E por onde?... Ela fica na varanda, verde carne, tranças verdes, ela sonha na água amarga. — Compadre, dou meu cavalo em troca de sua casa, o arreio por seu espelho, a faca por sua manta. Compadre, venho sangrando desde as passagens de Cabra. — Se pudesse, meu mocinho, esse negócio eu fechava. No entanto eu já não sou eu, nem a casa é minha casa. — Compadre, quero morrer com decência, em minha cama. De ferro, se for possível, e com lençóis de cambraia. Não vês que enorme ferida vai de meu peito à garganta? — Trezentas rosas morenas traz tua camisa branca. Ressuma teu sangue e cheira em redor de tua faixa. No entanto eu já não sou eu, nem a casa é minha casa. — Que eu possa subir ao menos até às altas varandas. Que eu possa subir! que o possa até às verdes varandas. As balaustradas da lua por onde retumba a água.
Já sobem os dois compadres até às altas varandas. Deixando um rastro de sangue. Deixando um rastro de lágrimas. Tremiam pelos telhados pequenos faróis de lata. Mil pandeiros de cristal feriam a madrugada.
Verde que te quero verde, verde vento, verdes ramas. Os dois compadres subiram. O vasto vento deixava na boca um gosto esquisito de menta, fel e alfavaca. — Que é dela, compadre, dize-me que é de tua filha amarga? — Quantas vezes te esperou! Quantas vezes te esperara, rosto fresco, negras tranças, aqui na verde varanda!
Sobre a face da cisterna balançava-se a gitana. Verde carne, tranças verdes, com olhos de fria prata. Ponta gelada de lua sustenta-a por cima da água. A noite se fez tão íntima como uma pequena praça. Lá fora, à porta, golpeando, guardas-civis na cachaça. Verde que te quero verde. Verde vento. Verdes ramas. O barco vai sobre o mar. E o cavalo na montanha.
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Vida e Obra |
em 02/10/2012 14:24:44 (2141 leituras) |
George Agostinho Baptista da Silva nasceu no Porto em 1906, tendo-se ainda nesse ano mudado para Barca d'Alva (Figueira de Castelo Rodrigo), onde viveu até aos seus 6 anos, regressando depois ao Porto, onde inicia os estudos na Escola Primária de São Nicolau em 1912, ingressando em 1914 na Escola Industrial Mouzinho da Silveira e completando os estudos secundários no Liceu Rodrigues de Freitas, de 1916 a 1924.
Formação
Dono de um percurso académico notável, de 1924 a 1928, frequenta Filologia Clássica na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, tendo concluído a licenciatura com 20 valores. Depois disso começa a escrever para a revista Seara Nova, colaboração que manteve até 1938.
Em 1929, com apenas 23 anos, defende a sua dissertação de doutoramento a que dá o nome de "O Sentido Histórico das Civilizações Clássicas", doutorando-se "com louvor".
Em 1931 parte como bolseiro para Paris, onde estuda na Sorbonne e no Collège de France. Após o seu regresso em 1933, leciona no ensino secundário em Aveiro até ao ano de 1935, altura em que é demitido do ensino oficial por se recusar a assinar a Lei Cabral, que obrigava todos os funcionários públicos a declararem por escrito que não participavam em organizações secretas (e como tal subversivas). No mesmo ano, consegue uma bolsa do Ministério das Relações Exteriores de Espanha e vai estudar para o Centro de Estudos Históricos de Madrid. Em 1936 regressa a Portugal devido à iminência da Guerra Civil Espanhola.
Cria o Núcleo Pedagógico Antero de Quental em 1939, e em 1940 publica Iniciação: cadernos de informação cultural. É preso pela polícia política em 1943, abandonando o país no ano seguinte (1944) em direcção à América do Sul, passando pelo Brasil, Uruguai e Argentina, no seguimento da sua oposição ao Estado Novo conduzido por Salazar.
Brasil
Em 1947, instala-se definitivamente no Brasil, onde vive até 1969. Em 1948, começa a trabalhar no Instituto Oswaldo Cruz do Rio de Janeiro, estudando entomologia, e ensinando simultaneamente na Faculdade Fluminense de Filosofia. Colabora com Jaime Cortesão na pesquisa sobre Alexandre de Gusmão. De 1952 a 1954, ensina na Universidade Federal da Paraíba (em João Pessoa (Paraíba)) e também em Pernambuco.
Em 1954, novamente com Jaime Cortesão, ajuda a organizar a Exposição do Quarto Centenário da Cidade de São Paulo. É um dos fundadores da Universidade de Santa Catarina, cria o Centro de Estudos Afro-Orientais, e ensina Filosofia do Teatro na Universidade Federal da Bahia, tornando-se em 1961 assessor para a política externa do presidente Jânio Quadros. Participa na criação da Universidade de Brasília e do seu Centro Brasileiro de Estudos Portugueses no ano de 1962 e, dois anos mais tarde, cria a Casa Paulo Dias Adorno em Cachoeira e idealiza o Museu do Atlântico Sul em Salvador da Bahia.
Regresso a Portugal
Regressa a Portugal em 1969, após a doença e morte de Salazar e a sua substituição por Marcello Caetano, facto que dá origem a alguma abertura política e cultural no regime. Desde então continua a escrever e a leccionar em diversas universidades portuguesas, dirigindo o Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade Técnica de Lisboa, e no papel de consultor do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, (actual Instituto Camões).
Em 1990, a RTP1 emitiu uma série de treze entrevistas com o professor Agostinho da Silva, denominadas Conversas Vadias. Uma outra entrevista, conduzida por António Escudeiro e chamada Agostinho por si próprio, fala sobre a sua devoção ao Espírito Santo e foi publicada pela editora Zéfiro em 2006.
Morte
Faleceu no Hospital de São Francisco Xavier, em Lisboa, no ano de 1994.
Um documentário sobre o próprio, intitulado "Agostinho da Silva: um pensamento vivo" (disponível no youtube), foi realizado por João Rodrigues Mattos e lançado pela Alfândega Filmes em 2004.
Agostinho da Silva é um dos maiores filósofos de sempre e referenciado como um dos principais intelectuais portugueses do século XX. Da sua extensa bibliografia, destacam-se o livro Sete cartas a um jovem filósofo, publicado em 1945.
Fonte: site wikipédia
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O Valor da Ingenuidade |
em 26/09/2012 22:42:06 (3048 leituras) |
O maior perigo que corre o ingénuo: o de querer ser esperto. Tão ingénuo que cuida, coitado, de que alguma vez no mundo o conhecimento valeu mais do que a ingenuidade de cada um. A ingenuidade é o legítimo segredo de cada qual, é a sua verdadeira idade, é o seu próprio sentimento livre, é a alma do nosso corpo, é a própria luz de toda a nossa resistência moral. Mas os ingénuos são os primeiros que ignoram a força criadora da ingenuidade, e na ânsia de crescer compram vantagens imediatas ao preço da sua própria ingenuidade. Raríssimos foram e são os ingénuos que se comprometeram um dia para consigo próprios a não competir neste mundo senão consigo mesmos. A grande maioria dos ingénuos desanima logo de entrada e prefere tricher no jogo de honra, do mérito e do valor. São eles as próprias vítimas de si mesmos, os suicidas dos seus legítimos poetas, os grotescos espantalhos da sua própria esperteza saloia. Bem haja o povo que encontrou para o seu idioma esta denunciante expressão da pessoa que é vítima de si mesma: a esperteza saloia. A esperteza saloia representa bem a lição que sofre aquele que não confiou afinal em si mesmo, que desconfiou de si próprio, que se permitiu servir de malícia, a qual como toda a espécie de malícia não perdoa exactamente ao próprio que a foi buscar. Em português a malícia diz-se exactamente por estas palavras: esperteza saloia.
Parecendo tão insignificante, a malícia contudo fere a individualidade humana no mais profundo da integridade do próprio que a usa, porque o distrai da dignidade e da atenção que ele se deve a si mesmo, distrai-o do seu próprio caso pessoal, da sua simpatia ou repulsa, da sua bondade ou da sua maldade, legítimas ambas no seu segredo emocional. Porque na ingenuidade tudo é de ordem emocional. Tudo. O que não acontece com as outras espécies de conhecimento onde tudo é de ordem intelectual. Na ordem intelectual é possível reatar um caminho que se rompeu. Na ordem emocional, uma vez roto o caminho, já nunca mais se encontrará sequer aquela ponta por onde se rompeu. O conhecimento é exclusivamente de ordem emocional, embora também lhe sirvam todas as pontas da meada intelectual.
Almada Negreiros, in "Ensaios"
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Primavera |
em 23/09/2012 20:14:20 (3542 leituras) |
A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la. A inclinação do sol vai marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas criaturas naturais que ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua vida para a primavera que chega.
Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra, nesse mundo confidencial das raízes, — e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes e a alegria de nascer, no espírito das flores.
Há bosques de rododendros que eram verdes e já estão todos cor-de-rosa, como os palácios de Jeipur. Vozes novas de passarinhos começam a ensaiar as árias tradicionais de sua nação. Pequenas borboletas brancas e amarelas apressam-se pelos ares, — e certamente conversam: mas tão baixinho que não se entende.
Oh! Primaveras distantes, depois do branco e deserto inverno, quando as amendoeiras inauguram suas flores, alegremente, e todos os olhos procuram pelo céu o primeiro raio de sol.
Esta é uma primavera diferente, com as matas intactas, as árvores cobertas de folhas, — e só os poetas, entre os humanos, sabem que uma Deusa chega, coroada de flores, com vestidos bordados de flores, com os braços carregados de flores, e vem dançar neste mundo cálido, de incessante luz.
Mas é certo que a primavera chega. É certo que a vida não se esquece, e a terra maternalmente se enfeita para as festas da sua perpetuação.
Algum dia, talvez, nada mais vai ser assim. Algum dia, talvez, os homens terão a primavera que desejarem, no momento que quiserem, independentes deste ritmo, desta ordem, deste movimento do céu. E os pássaros serão outros, com outros cantos e outros hábitos, — e os ouvidos que por acaso os ouvirem não terão nada mais com tudo aquilo que, outrora se entendeu e amou.
Enquanto há primavera, esta primavera natural, prestemos atenção ao sussurro dos passarinhos novos, que dão beijinhos para o ar azul. Escutemos estas vozes que andam nas árvores, caminhemos por estas estradas que ainda conservam seus sentimentos antigos: lentamente estão sendo tecidos os manacás roxos e brancos; e a eufórbia se vai tornando pulquérrima, em cada coroa vermelha que desdobra. Os casulos brancos das gardênias ainda estão sendo enrolados em redor do perfume. E flores agrestes acordam com suas roupas de chita multicor.
Tudo isto para brilhar um instante, apenas, para ser lançado ao vento, — por fidelidade à obscura semente, ao que vem, na rotação da eternidade. Saudemos a primavera, dona da vida — e efêmera.
Texto extraído do livro "Cecília Meireles - Obra em Prosa - Volume 1", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1998, pág. 366.
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Vida e Obra |
em 20/09/2012 13:54:34 (2525 leituras) |
Teixeira de Pascoaes, pseudónimo literário de Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos, nasceu em Amarante, 8 de novembro de 1877 e faleceu em Gatão, 14 de dezembro de 1952, foi um poeta e escritor português, principal representante do Saudosismo.
Nasceu no seio de uma família aristocrática de Amarante, o segundo filho (de sete) de João Pereira Teixeira de Vasconcelos, juiz e deputado às Cortes e de Carlota Guedes Monteiro. Foi uma criança solitária, introvertida e sensível, muito propenso à contemplação nostálgica da Natureza.
Em 1883, inicia os estudos primários em Amarante, e em 1887 ingressa no liceu da vila. Em 1895, muda-se para Coimbra onde termina os seus estudos secundários (em Amarante não foi bom aluno, tendo até reprovado em Português) e em 1896 inscreve-se no curso de Direito da Universidade de Coimbra. Ao contrário da maioria dos seus camaradas, não faz parte da boémia coimbrã, e passa o seu tempo, monasticamente, no quarto, a ler, a escrever e a reflectir. Licencia-se em 1901 e, renitentemente, estabelece-se como advogado, primeiro em Amarante e, a partir de 1906, no Porto. Em 1911, é nomeado juiz substituto em Amarante, cargo que exerce durante dois anos. Em 1913, com alívio, dá por terminada a sua carreira judicial. Sobre esta sua penosa experiência jurídica dirá: "Eu era um Dr. Joaquim na boca de toda a gente. Precisava de honrar o título. Entre o poeta natural e o bacharel à força, ia começar um duelo que durou dez anos, tanto como o cerco de Tróia e a formatura de João de Deus. Vivi dez anos, num escritório, a lidar com almas deste mundo, o mais deste mundo que é possível — eu que nascera para outras convivências." Sendo um proprietário abastado, não tinha necessidade de exercer nenhuma profissão para o seu sustento, e passou a residir no solar de família em São João do Gatão, perto de Amarante, com a mãe e outros membros da sua família. Dedicava-se à gestão das propriedades, à incansável contemplação da natureza e da sua amada Serra do Marão, à leitura e sobretudo à escrita. Era um eremita, um místico natural e não raras vezes foi descrito como detentor de poderes sobrenaturais. Apesar de ser um solitário, Gatão era local de peregrinação de inúmeros intelectuais e artistas, nacionais e estrangeiros, que o iam visitar frequentemente. No final da vida, seria amigo dos poetas Eugénio de Andrade e Mário Cesariny de Vasconcelos. Este último haveria de o eleger como poeta superior a Fernando Pessoa, chegando a ser o organizador da reedição de alguns dos textos de Pascoais, bem como de uma antologia poética, nos anos 70 e 80. Pascoaes morreu aos 75 anos, em Gatão, de bacilose pulmonar, alguns meses depois da morte da sua mãe, em 1952.
Com António Sérgio e Raul Proença foi um dos líderes do chamado movimento da "Renascença Portuguesa" e lançou em 1910 no Porto, juntamente com Leonardo Coimbra e Jaime Cortesão, a revista A Águia, principal órgão do movimento.
Bibliografia
Poesia
1895 - Embriões 1896 - Belo 1ª parte 1897 - Belo 2ª parte 1898 - À Minha Alma e Sempre 1899 - Profecia (colaboração com Afonso Lopes Vieira) 1901 - À Ventura (eBook) 1903 - Jesús e Pan 1904 - Para a Luz 1906 - Vida Etérea 1907 - As Sombras 1909 - Senhora da Noite 1911 - Marânus 1912 - Regresso ao Paraíso Elegias (eBook) 1913 - O Doido e a Morte (eBook) 1920 - Elegia da Solidão (eBook) 1921 - Cantos Indecisos 1924 - A Elegia do Amor O Pobre Tolo 1925 - D. Carlos Cânticos Sonetos 1949 - Versos Pobre
Prosa
1915 - A Arte de Ser Português 1916 - A Beira Num Relâmpago 1919 - Os Poetas Lusíadas (conjunto de conferências proferidas na Catalunha) 1921 - O Bailado 1923 - A Nossa Fome 1928 - Livro de memórias (autobiografia) 1934 - S.Paulo (biografia romanceada) 1936 - S. Jerónimo e a trovoada (biografia romanceada) 1937 - O Homem Universal 1940 - Napoleão (biografia romanceada) 1942 - Camilo Castelo Branco o penitente (biografia romanceada) Duplo passeio 1945 - Santo Agostinho (biografia romanceada) 1951 - Dois Jornalistas (Novela)
Conferências
1919 - Os Poetas Lusíadas (conjunto de conferências proferidas na Catalunha) 1922 - Conferência A Caridade (conferência) 1950 - Duas Conferências em Defesa da Paz 1951 - João Lúcio (conferência, não professada mas publicada posteriormente, sobre o poeta olhanense)
Teatro
1926 - Jesus Cristo em Lisboa (colaboração com Raul Brandão)
Fonte: sites da rede e wikipédia. |
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A Criança que pensa em Fadas |
em 14/09/2012 19:03:40 (3051 leituras) |
A CRIANÇA que pensa em fadas e acredita nas fadas Age como um deus doente, mas como um deus. Porque embora afirme que existe o que não existe Sabe como é que as cousas existem, que é existindo, Sabe que existir existe e não se explica, Sabe que não há razão nenhuma para nada existir, Sabe que ser é estar em algum ponto Só não sabe que o pensamento não é um ponto qualquer.
Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos" Heterónimo de Fernando Pessoa
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Em Louvor das Crianças |
em 13/09/2012 15:21:44 (1766 leituras) |
Se há na terra um reino que nos seja familiar e ao mesmo tempo estranho, fechado nos seus limites e simultaneamente sem fronteiras, esse reino é o da infância. A esse país inocente, donde se é expulso sempre demasiado cedo, apenas se regressa em momentos privilegiados — a tais regressos se chama, às vezes, poesia. Essa espécie de terra mítica é habitada por seres de uma tão grande formosura que os anjos tiveram neles o seu modelo, e foi às crianças, como todos sabem pelos evangelhos, que foi prometido o Paraíso. A sedução das crianças provém, antes de mais, da sua proximidade com os animais — a sua relação com o mundo não é a da utilidade, mas a do prazer. Elas não conhecem ainda os dois grandes inimigos da alma, que são, como disse Saint-Exupéry, o dinheiro e a vaidade. Estas frágeis criaturas, as únicas desde a origem destinadas à imortalidade, são também as mais vulneráveis — elas têm o peito aberto às maravilhas do mundo, mas estão sem defesa para a bestialidade humana que, apesar de tanta tecnologia de ponta, não diminui nem se extingue. O sofrimento de uma criança é de uma ordem tão monstruosa que, frequentemente, é usado como argumento para a negação da bondade divina. Não, não há salvação para quem faça sofrer uma criança, que isto se grave indelevelmente nos vossos espíritos. O simples facto de consentirmos que milhões e milhões de crianças padeçam fome, e reguem com as suas lágrimas a terra onde terão ainda de lutar um dia pela justiça e pela liberdade, prova bem que não somos filhos de Deus.
Eugénio de Andrade, in 'Rosto Precário'
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O Homem que Lê |
em 05/09/2012 22:04:47 (2159 leituras) |
Eu lia há muito. Desde que esta tarde com o seu ruído de chuva chegou às janelas. Abstraí-me do vento lá fora: o meu livro era difícil. Olhei as suas páginas como rostos que se ensombram pela profunda reflexão e em redor da minha leitura parava o tempo. — De repente sobre as páginas lançou-se uma luz e em vez da tímida confusão de palavras estava: tarde, tarde... em todas elas. Não olho ainda para fora, mas rasgam-se já as longas linhas, e as palavras rolam dos seus fios, para onde elas querem. Então sei: sobre os jardins transbordantes, radiantes, abriram-se os céus; o sol deve ter surgido de novo. — E agora cai a noite de Verão, até onde a vista alcança: o que está disperso ordena-se em poucos grupos, obscuramente, pelos longos caminhos vão pessoas e estranhamente longe, como se significasse algo mais, ouve-se o pouco que ainda acontece.
E quando agora levantar os olhos deste livro, nada será estranho, tudo grande. Aí fora existe o que vivo dentro de mim e aqui e mais além nada tem fronteiras; apenas me entreteço mais ainda com ele quando o meu olhar se adapta às coisas e à grave simplicidade das multidões, — então a terra cresce acima de si mesma. E parece que abarca todo o céu: a primeira estrela é como a última casa.
Rainer Maria Rilke, in "O Livro das Imagens" Tradução de Maria João Costa Pereira
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Ser Doido-Alegre, que Maior Ventura! |
em 28/08/2012 18:50:04 (2786 leituras) |
Ser doido-alegre, que maior ventura! Morrer vivendo p'ra além da verdade. É tão feliz quem goza tal loucura Que nem na morte crê, que felicidade!
Encara, rindo, a vida que o tortura, Sem ver na esmola, a falsa caridade, Que bem no fundo é só vaidade pura, Se acaso houver pureza na vaidade.
Já que não tenho, tal como preciso, A felicidade que esse doido tem De ver no purgatório um paraíso...
Direi, ao contemplar o seu sorriso, Ai quem me dera ser doido também P'ra suportar melhor quem tem juízo.
António Aleixo, in "Este Livro que Vos Deixo..."
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X - Olá, Guardador de rebanhos |
em 22/08/2012 19:48:47 (2618 leituras) |
"Olá, guardador de rebanhos, Aí à beira da estrada, Que te diz o vento que passa?" "Que é vento, e que passa, E que já passou antes, E que passará depois. E a ti o que te diz?"
"Muita cousa mais do que isso. Fala-me de muitas outras cousas. De memórias e de saudades E de cousas que nunca foram."
"Nunca ouviste passar o vento. O vento só fala do vento. O que lhe ouviste foi mentira, E a mentira está em ti."
Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema X"
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Não se diz ao Triste que se Alegre |
em 18/08/2012 14:37:19 (5300 leituras) |
Pouco sabe da tristeza quem, sem remédio para ela, diz ao triste que se alegre; pois não vê que alheios contentamentos a um coração descontente, não lhe remediando o que sente, lhe dobram o que padece. Vós, se vem à mão, esperáreis de mim palavrinhas joeiradas, enforcadas de bons propósitos. Pois desenganai-vos, que, desde que professei tristeza, nunca mais soube jogar a outro fito. E, porque não digais que sou gente fora do meu bairro, vedes, vai uma volta feita a este mote, que escolhi na manada dos enjeitados; e cuido que não é tão dedo queimado que não seja dos que el-rei mandou chamar; o qual fala assim:
Não quero e não quero jubão amarelo.
Se de negro for também me parece quanto me aborrece toda a alegre cor: cor que mostra dor, quero e não quero jubão amarelo.
Parece-vos que se pode dizer mais ? Não me respondais: «Quem gabará a noiva?» Porque assentai que foi comendo e fazendo, ou assoprando, que não é tão pequena habilidade. E, porque vos não pareça que foi mais acertar que querê-lo fazer, vedes, vai outra do mesmo jaez, contanto que se não vá a pasmar:
Perdigão perdeu a pena, não há mal que lhe não venha.
Em um mal outro começa, que nunca vem só nenhum; e o triste que tem um a sofrer outro se ofereça; e só pelo ver, conheça que basta um só que tenha para que outro lhe venha.
Luís Vaz de Camões, in "Cartas" |
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O Pai |
em 12/08/2012 23:40:20 (5290 leituras) |
Terra de semente inculta e bravia, terra onde não há esteiros ou caminhos, sob o sol minha vida se alonga e estremece.
Pai, nada podem teus olhos doces, como nada puderam as estrelas que me abrasam os olhos e as faces.
Escureceu-me a vista o mal de amor e na doce fonte do meu sonho outra fonte tremida se reflecte.
Depois... Pergunta a Deus porque me deram o que me deram e porque depois conheci a solidão do céu e da terra.
Olha, minha juventude foi um puro botão que ficou por rebentar e perde a sua doçura de seiva e de sangue.
O sol que cai e cai eternamente cansou-se de a beijar... E o outono. Pai, nada podem teus olhos doces.
Escutarei de noite as tuas palavras: ... menino, meu menino...
E na noite imensa com as feridas de ambos seguirei.
Pablo Neruda, in "Crepusculário" Tradução de Rui Lage |
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Rosa de Hiroshima |
em 06/08/2012 12:42:06 (3331 leituras) |
Pensem nas crianças Mudas telepáticas Pensem nas meninas Cegas inexatas Pensem nas mulheres Rotas alteradas Pensem nas feridas Como rosas cálidas Mas, oh, não se esqueçam Da rosa da rosa Da rosa de Hiroshima A rosa hereditária A rosa radioativa Estúpida e inválida A rosa com cirrose A anti-rosa atômica Sem cor sem perfume Sem rosa, sem nada
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Praia |
em 28/07/2012 15:54:12 (2764 leituras) |
Minha praia ardorosa e solitária aberta ao grande vento e ao largo mar tu me viste querer-lhe com a doce piedade das sombras do luar
teus cabos se adiantam como braços para abraçar as ninfas receosas que fugindo oferecem sobre as vagas suas nítidas formas amorosas
braços paralisados por desejo que o mundo e sua lei não permitiu ou suspendeu amor que livre jogo maior que posse em fugaz tempo viu
e como vós me alongo e como tu areia me ofereço a toda sorte por sua liberdade ou por destino que por só dela seja belo e forte.
Agostinho da Silva, in 'Poemas' |
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Soneto de Contrição |
em 14/07/2012 00:02:54 (2525 leituras) |
Eu te amo, Maria, eu te amo tanto Que o meu peito me dói como em doença E quanto mais me seja a dor intensa Mais cresce na minha alma teu encanto.
Como a criança que vagueia o canto Ante o mistério da amplidão suspensa Meu coração é um vago de acalanto Berçando versos de saudade imensa.
Não é maior o coração que a alma Nem melhor a presença que a saudade Só te amar é divino, e sentir calma...
E é uma calma tão feita de humildade Que tão mais te soubesse pertencida Menos seria eterno em tua vida.
Vinicius de Moraes, in 'Antologia Poética'
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Eu Simplesmente Amo-te |
em 08/07/2012 19:12:24 (6993 leituras) |
Eu amo-te sem saber como, ou quando, ou a partir de onde. Eu simplesmente amo-te, sem problemas ou orgulho: eu amo-te desta maneira porque não conheço qualquer outra forma de amar sem ser esta, onde não existe eu ou tu, tão intimamente que a tua mão sobre o meu peito é a minha mão, tão intimamente que quando adormeço os teus olhos fecham-se.
Pablo Neruda, in "Cem Sonetos de Amor" |
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Recado aos Amigos Distantes |
em 04/07/2012 19:32:01 (6223 leituras) |
Meus companheiros amados, não vos espero nem chamo: porque vou para outros lados. Mas é certo que vos amo.
Nem sempre os que estão mais perto fazem melhor companhia. Mesmo com sol encoberto, todos sabem quando é dia.
Pelo vosso campo imenso, vou cortando meus atalhos. Por vosso amor é que penso e me dou tantos trabalhos.
Não condeneis, por enquanto, minha rebelde maneira. Para libertar-me tanto, fico vossa prisioneira.
Por mais que longe pareça, ides na minha lembrança, ides na minha cabeça, valeis a minha Esperança.
Cecília Meireles, in 'Poemas (1951)' |
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