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As viagens à minha latrina

 
Ao acordar, das viagens da idealidade, o emudecimento do meu corpo deslocava-se para um refúgio sabido. Quase como num ritual, o episódio repetia-se espontaneamente, nesse espaço, em frente ao espelho, onde a cara assumia paulatinamente uma outra entidade. O nariz cobria-se de vermelho como chamariz de olhares e, em conjunto, os lábios vestiam o esboço de uma qualquer casa de campo onde os dentes brancos em permanente assessoria, faziam de cicerones, convidando os interlocutores a entrar. Esses, interlocutores, criações do meu imaginário, faziam, na totalidade, o que lhes imaginava e, sempre tudo, no mais íntimo cenário e em segredo dos loucos tão normais deste novo mundo. Sem explicações, sem comentários ou sem tentativas imberbes de justificar cada passo dado.

Entre uns e outros momentos, cuja fronteira mais que ténue disfarçava a transposição, existia uma nova sensação da realização de um semi-desejo quase construído em alicerces sentidos e apoiados nas entranhas da imensidão.

José, o piaçá de serviço daquele local, entrava em labor para pôr um fim a cada episódio.

Alto e esguio, mas com mãos de aço, expurgava os últimos resquícios que, incomodamente, deixavam-se ficar para trás. Era preciso deixar aquela sala de eventos lunáticos em perfeitas condições para outras aventuras. Sabíamos que havia sempre uma próxima vez.

Das viagens à minha latrina, construída entre murmúrios e loucas aventuras, sobravam os intensos prazeres que, do mais pretensioso ao mais servil, nenhum ser jamais desprezaria.

Um dia plantarei um rosal para enfeitar os desvios de Neptuno e ambientar o oxigénio ofendido que, em segredo, ainda foge e se aloja em outras latrinas que uns tanto gostam de chamar de cérebro, embora nem os seus proprietários saibam dessas viagens empestadas de súcias desavindas de outras paragens.

Amanhã outra viagem acontecerá na minha latrina.


Escrevo…para libertar as personagens que não consigo Ser!
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http://catalogoluademarfim.blogspot.pt/

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Autor
Paulo Afonso Ramos
 
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Enviado por Tópico
Avozita
Publicado: 11/03/2010 23:39  Atualizado: 11/03/2010 23:39
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Usuário desde: 08/07/2009
Localidade: Casal de Cambra - Lisboa
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 Re: As viagens à minha latrina
Já tinha lido e gostei,
aliás, posso dizer, que gostei
de todo o conteudo do livro.
Quem sabe, sabe.
Beijinho
Antonieta



Enviado por Tópico
Alexis
Publicado: 11/03/2010 23:46  Atualizado: 11/03/2010 23:46
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Usuário desde: 29/10/2008
Localidade: guimarães
Mensagens: 7238
 Re: As viagens à minha latrina para paulo afonso ramos
ao ler-te fui de viagem contigo por essa latrina fora.é isso o que um bom texto provoca:agarra o leitor e leva-o.a todos os destinos,mesmo os aparentemente menos agradáveis.mas se os vemos mesmo à frente dos nossos olhos...e se as palavras ordenam que a gente vá,a gente vai.

a cada texto,digno desse nome,uma nova viagem.já face a pseudo-textos:uma desgarga de água no autoclismo para que o cheiro não se entranhe no ambiente.e a cada leitor o direito a uma diferente atitude perante o que lê.

abraço,
alex


Enviado por Tópico
Moreno
Publicado: 12/03/2010 01:34  Atualizado: 12/03/2010 01:34
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Mensagens: 3482
 Re: As viagens à minha latrina
este texto é um bilhete para uma viagem ao estímulo do cérebro.

um abraço


Enviado por Tópico
Massari
Publicado: 12/03/2010 11:07  Atualizado: 12/03/2010 11:07
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Localidade: Sertãozinho/SP
Mensagens: 1089
 Re: As viagens à minha latrina
caro amigo, texto envolvente, instigante
e muito bem conduzido, com cada frase cuidadosamente trabalhada.
gostei
abraços