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confissões a ana.

 




. façam de conta que eu não estive cá .







não sei ana se já te falei da chuva. se já te disse das flores, de ser primavera lá fora. se te contei de quando me cortei no tórax com uma tesoura - queria tirar-me do peito o coração-, de como no lugar da ferida me cresceram algas. tempos houve em que cortava o corpo, procurava em todas as feridas um pedaço de coração a abater. doía-me tão forte dentro, ana, doía-me tão forte e tão fundo dentro da pele. não sei ana se já te falei de amor, de voltar os olhos para o mundo e ver crescer-lhe flores dentro, é destas flores que te devia ter falado. de como estas flores te enchem subitamente de vida. e o amor também dói, sobretudo quando está longe e o corpo o chama para perto e ele não ouve, é que o amor às vezes não tem ouvidos ana. trouxe-te hoje um segredo, quero dizer-to quando o sol chegar mas hoje não há sol. estou terrivelmente só, ana, trago dentro de mim todas as histórias, marcas de facas e tesouras na pele, memórias que arrastam memórias, de sangue, de dor. de ter morrido já. ainda não te contei de como morri, era dezembro, engoli uma caixa de anti-depressivos, lembro-me de ter escrito um pequeno testamento, deixava-te os meus livros ana, a ti que nunca conheci, deixava-te os meus livros. o hospital é um lugar frio quando se acorda da morte. eu tinha frio e não havia nenhum corpo ali ao lado, que me aquecesse, que me abraçasse, nenhum corpo, ana, nenhum. morri e nasci sozinha. e digo-te ana ninguém deve morrer só. não há nada mais triste do que morrer só. não sei hoje ana se já te falei da chuva.







 
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Margarete
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Enviado por Tópico
RoqueSilveira
Publicado: 08/06/2010 11:33  Atualizado: 08/06/2010 11:33
Membro de honra
Usuário desde: 31/03/2008
Localidade: Braga
Mensagens: 8104
 Re: confissões a ana.
a chuva...a lágrima...o remédio retemperardor da terra, do corpo e da alma, onde as flores e a alegria brotam de novo.
claro que o comentário não em nada a ver com a tua escrita, mas penso que na diferença entendemos as mesmas coisas.
beijos

Enviado por Tópico
Alexis
Publicado: 08/06/2010 11:42  Atualizado: 08/06/2010 11:42
Colaborador
Usuário desde: 29/10/2008
Localidade: guimarães
Mensagens: 7238
 Re: confissões a ana. para mar
talvez hoje (não) fosse o dia ideal para te ler.
sim.não há nada mais triste do que morrer só.e hoje sinto a chuva nos meus olhos,por dentro do meu corpo.conto afogar-me nela hoje.amanhã não sei.

beijo,mar.

Enviado por Tópico
arfemo
Publicado: 08/06/2010 11:42  Atualizado: 08/06/2010 11:42
Colaborador
Usuário desde: 19/04/2009
Localidade:
Mensagens: 4812
 Re: confissões a ana.
não sei se já te falei da chuva...pois, do tempo, a banalidade que emerge na razão inversa da dor que persiste... confissões pedem alguém que as leia, mesmo que inventada ou ausente, que as dores e as alegrias são para serem partilhadas...

beijo

Enviado por Tópico
Moreno
Publicado: 08/06/2010 12:05  Atualizado: 08/06/2010 12:05
Colaborador
Usuário desde: 09/01/2009
Localidade:
Mensagens: 3482
 Re: confissões a ana. à mar
há textos assim. não vou dizer nada. fui até aqui:



um beijo

Enviado por Tópico
Nanda
Publicado: 08/06/2010 13:41  Atualizado: 08/06/2010 13:41
Membro de honra
Usuário desde: 14/08/2007
Localidade: Setúbal
Mensagens: 11076
 Re: confissões a ana.
Margarete,
Por vezes é difícil comentar aquilo que muito se apreciou ler. Vou reler!
Beijo
Nanda

Enviado por Tópico
sampaiorego
Publicado: 08/06/2010 15:03  Atualizado: 08/06/2010 15:03
Membro de honra
Usuário desde: 31/03/2010
Localidade: algures virado para o mar com gaivotas
Mensagens: 1147
 Re: confissões a ana.
corri cada palavra tua como se conhecesse o caminho - ressuscitas a alma a escrever? a minha ressuscita. e a vontade de escrever emerge dos infernos

beijo mar

sampaio(r)ego

Enviado por Tópico
Caopoeta
Publicado: 08/06/2010 18:47  Atualizado: 08/06/2010 18:50
Colaborador
Usuário desde: 12/07/2007
Localidade:
Mensagens: 1988
 Re: confissões a ana.
sempre ouvi dizer que o amor tem reticencias lá para o seu meio,talvez na palavra eme ou então na palavra ó,porque de ti tudo vem intenso e se agita no ar,neste ar que se precisa para respirar,outros chamam-lhe oxigénio.também sei que quando assim me falas fazes-o com um buraco no lado esquerdo do peito,com um pássaro que saltou do ninho e voou.
querida,
havemos de ter a felicidade a roer-nos os dedos e libertar sorrisos nos desejos.havemos de erguer a taça da loucura racional das palavras e adulteremos a lua em nosso favor.ninguém tem que morrer só.e no final dos nossos dias de impulsos,extravagancias imaginárias, deitaremos o corpo ao mar para que este leve todas as melancolias e que nos traga de novo o acordar ingénuo das crianças melífluas.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 08/06/2010 21:21  Atualizado: 08/06/2010 21:21
 Re: confissões a ana.
Um murro no estômago. Admirável. Admirável Mar.

Enviado por Tópico
MariaDeCarvalho
Publicado: 09/06/2010 01:26  Atualizado: 09/06/2010 01:26
Da casa!
Usuário desde: 11/03/2009
Localidade: Suiça
Mensagens: 421
 Re: confissões a ana.
Olá Mar,

Que texto tão bem escrito...
obrigada pelo belo momento...

Nunca deixes de escrver,
escreves maravilhosamente bem "Textos" e este está
muito especial...

Parabéns,
Maria

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 10/06/2010 17:13  Atualizado: 10/06/2010 17:13
 Re: confissões a ana.
Bom demais Margarete. A facilidade com que as palavras "brotam" em seus textos é qualquer coisa de excepcional.

Gostei muito desse texto

Abraços - Pedro