Prefácios : 

Nossas pequenas grandes tragédias

 


Como sempre, estou eu vivendo minha vidinha ambiciosamente tranquila, quando vem aquele som infernal de alguma música desagradável e me provoca algumas elucubrações.
Estava eu almoçando, fazendo meu repasto placidamente, quando ouvi uma voz esganiçada, aguda e desagradável vinda das proximidades: era a dupla Sandy e Junior cantando uma dessas versões horrendas de músicas que já são desagradáveis em seu idioma vernáculo, não necessitando da nova categoria (em português) para nos castigar inda mais os ouvidos.
É aí que me ponho a pensar e a coisa desanda. Em princípio, o que chama a atenção é esse fenômeno social que me deixa atônito: como pode, em nosso país, esse tipo de “artistas” fazer tamanho sucesso, ao ponto de ainda na flor da juventude já ter logrado uma fortuna monumental com tão pobre talento?! Em resposta, penso, só pode ser a ignorância popular e a propaganda massificante da mídia em geral. Outra resposta não vislumbro.
Então lanço meu olhar no abismo, e vou um pouco além. Esses “artistas” fazem parte de uma camada que eu pessoalmente gosto de chamar de canalhocracia. É isso mesmo. Eles são uns canalhas descarados que não se vexam em detonar a cultura popular em nome de ganhos, cada vez maiores, para si mesmos. E, para tanto, se associam com a grande mídia, e promovem verdadeiras bizarrices nacionais; entre essas, a mais famosa, creio, são esses programas de TV para arrecadar fundos, sabe lá deus para quê.
Eu me lembro de observar as campanhas nacionais efetuadas por emissoras de TV como a Rede Globo, o SBT e a Record para arrecadar fundos para as crianças, os pobres, os desabrigados, os desgraçados, e aí por diante. Então, no bojo dos espetáculos de horror, nos quais são exibidas crianças magricelas, velhos desdentados, jovens de sorriso parvo e uma infinidade de miseráveis e bestializados, me vem alguma “celebridade” da TV fazer seu discurso comovente, conclamando as pessoas (os pobres e bestas) a ajudarem e se engajarem na causa em questão; dizem para que façam doação desse ou daquele valor, falam da solidariedade do brasileiro (que só existe nas camadas mais miseráveis) e um montão de outras bobagens. E seguem com seu espetáculo deprimente.
E aqui se inicia a minha velha peregrinação de bestunto que fica pensando as coisas. Só no ano de 2007, o SBT faturou 627,2 milhões de reais; a Record, em 2009, passou da marca de 1 bilhão de reais de faturamento; e a Rede Globo, em 2009, faturou 7,7 bilhões de reais.
Já suas campanhas de arrecadação de fundos para o combate da pobreza e das mazelas do mundo atingiu as marcas de, em 2008, o Criança Esperança, da Rede Globo, 11 milhões de reais; o Teleton, do SBT, em 2008, 18,9 milhões;
Agora minha cabeça afeita a equações mirabolantes se põe a calcular. Essas campanhas são verdadeiros espetáculos; por um lado, a miséria é apresentada em várias nuanças; por outro, os nossos “artistas” e “celebridades” dão o ar da graça e exibem toda a sua caridade indo se apresentar em palcos, estrategicamente montados para sensibilizar o coração do brasileiro pobre: essa criatura tão cruel que não divide o pouco que tem com seus irmãos miseráveis.
Mas e o outro lado da moeda? Por que ninguém pensa nisso? Pensemos: quem é esse sujeito que contribui com doações? Por que ele faz isso? Qual bem-estar ele pensa que sua doação vai trazer a quem tem fome, sede e necessidade de abrigo, de saúde e segurança?
Primeiro ponto, nossa sociedade está dividida em camadas: o topo é ocupado por 1% da população e, segundo pesquisa da década de 1960, esse detinha 30% de toda a riqueza do país; em seguida vem os 9% que compõem a nossa camada rica com 20% de todo o tesouro nacional; depois vem o povão, trabalhadores em geral, composta por 30% da população, vivendo com 30% da bufunfa nacional; e, por fim, os 60% restantes da população, esses vivendo abaixo da linha da pobreza, vendendo o almoço para comprar a janta, e tendo que dividir os restantes 20% das riquezas nacionais.
O pior é que essa disparidade de riquezas se alargou e as duas camadas mais ricas ficaram ainda mais ricas de lá para cá, e as mais pobres ficaram ainda mais miseráveis.
E agora vem o choque, a ideia que me incomoda. Sabe quem ouve aquela musiquinha horrorosa da qual eu falava no início deste texto? É justamente a população que compõe as duas camadas mais pobres da nossa nação. E sabe quem assiste a esses programas que dizem estar arrecadando fundos para amenizar a pobreza do Brasil? Também são os componentes dessas duas camadas mais pobres. E, consequentemente, quem é que faz doações para essas campanhas de arrecadação?... Adivinha! Isso mesmo, são os pobres e miseráveis do Brasil! Infelizmente.
Aí, sabe por que é que eu odeio esses “artistas” medíocres e essas “celebridades” ridículas, metidas em sua própria vaidade, sem nenhum escrúpulo ou senso ético?... Eu os detesto por que ajudam a fazer espetáculo da miséria e da imbecilidade do brasileiro; por que se vendem aos agentes da grande mídia; por que não possuem o menor senso ético e, mesmo assim, não se vexam de aparecer na televisão dando lição de como consertar o mundo.
Pensemos bem; aquele mesmo “artista” que aparece ali, na TV, fazendo discurso de como é lindo compartilhar até o que a gente não tem, na verdade só aparece por que quer se promover, fazendo auto-propaganda, quer aparecer. Em geral, são indivíduos que ganham salários altíssimos, passando da casa dos cem mil reais por mês, que falam que doar 10, 15 ou 20 reais não vai afetar em nada o orçamento doméstico das pessoas, mesmo sabendo que quem doa muitas vezes não dispõe, diariamente, de centavos sequer para comprar um pão francês para lhe forrar o bucho como café da manhã.
Além desses, tem aqueles que faturam alto, como a dupla acima citada (a droga de Sandy e Junior, para minha alegria, atualmente desfeita), os quais nem precisam de mais exposição na mídia e ainda poderiam ajudar não acumulando tamanha fortuna, o que sempre vai faltar a outras pessoas. Esses chegavam a faturar, só com shows, por ano, mais de 10 milhões de reais; para eles é fácil dizer que a módica quantia de 20 reais não faz falta.
E, por fim, os mais perversos canalhas de todos: as emissoras de TV. Eles promovem esses espetáculos deprimentes para esconderem a origem da miséria nacional, que é essa enorme desigualdade econômica entre as camadas sociais; fazem o maior forfel, dando a entender que quem tem que dividir sua riqueza é justamente quem ficou à margem dessa: o povão. Essas emissoras, além de rachar de ganhar dinheiro com as propagandas em dias de campanha, ainda escondem que os verdadeiros vilões são justamente as corporações que eles defendem, pois essas acumulam riquezas, super-exploram a massa popular, detonam com as iniciativas nacionais e, ainda por cima, fingem se preocupar, ao colocar algum marqueteiro apoiando, em discurso, essas campanhas ridículas.
Se compararmos só o que alguns artistas, dos que participam dessas campanhas, ganham por mês, com o que é arrecadado ao fim de cada período de comoção nacional, veremos que, se esses infelizes fizessem uma vaquinha, o pobre abestado não precisaria doar nada (não precisaria tirar da própria boca para ser “solidário”, até por que já é solidário na miséria). E se compararmos as receitas das emissoras com o que é arrecadado nessas campanhas, aí sim, veremos o tamanho do descaramento dos indivíduos que promovem esse descalabro. Será que o SBT, com sua arrecadação acima da casa do meio bilhão precisa mesmo de ajuda para juntar 18 milhões? E a Record, com sua arrecadação que supera a casa de 1 bilhão? E a Rede Globo, com um faturamento de 7,7 bilhões?...
Ah, tenha dó! Acho realmente que precisamos iniciar uma campanha nacional. Mas tem que ser uma campanha diferenciada. Vamos começar a doar, em vez de arrecadar. Vamos primeiro doar o dedo médio para esses parasitas cretinos que ficam tentando nos convencer de que quem promove a pobreza do Brasil é o pobre, como se esse fosse quem acumula toda a riqueza do país. Ainda usando o mesmo dedo, ou outro de nossa preferência, vamos desligar todos os aparelhos de televisão: já chega de tanta mentira e porcaria mal elaborada. E, por fim, vamos nos doar a nós mesmos; ninguém precisa de uma prisão que nos tolhe do que temos de melhor: nossa capacidade racional, esse algo que nos faz tão humanos, mas, que nos dias atuais, anda tão esquecido. É passada a hora de as pessoas pensarem antes de acreditar em tantas bobagens, em tantas mentiras.
Fico pensando nessas coisas e, de novo, vêm as dúvidas: será que essa merda toda só tem a ver com aquela música cantada pelos Titãs, a qual diz: a televisão me deixou burro, muito burro demais?... Ou será que os pobres do Brasil estão guardando todo o dinheiro do país só para eles?... Ummmm... Se assim for, estão me incluindo fora dessa...

 
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Arcanjo
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