Poemas : 

O “fofoqueito-mor” (para a amiga Meire)

 
Certo dia, numa dessas conversas a esmo, surgiu uma dúvida sobre a função cerebral e sua importância nos fenômenos fisiológicos, e, de tal disparate de elucubração, essa história mui estranha surgiu.

Vivia o cérebro, soberbo do seu total controle das coisas do resto do corpo, e até da alma, rodeado de seus cerebelos e neurônios informantes descarados. Sua relação ora simpática, ora parassimpática com todo o corpo era algo harmonioso; ele sabia de tudo, sentia tudo, podia e fazia tudo... Grande fofoqueiro que era, sempre estava a par de todas as coisas que aconteciam ao longo de suas ramificações; se um incômodo afligia a planta do pé direito, lá estava ele, sentindo tudo; se uma disenteria acometesse os intestinos, o “entrão” já lá estava se intrometendo. Em todo lugar, em qualquer parte do corpo, em órgãos internos e externos, o danado se metia em tudo.
Assim era feliz o danado; envolvendo-se, decidindo pelos outros, e, às vezes, até vetando certos atos só por julgar que determinados prazeres eram menos importantes que suas preocupações. Quantas vezes provocou dores de cabeça e desestímulo de ereção bem na hora “h”... O tal sabia como se meter em todas as instâncias do corpo, sem cerimônias.
Ah, mas o destino é caprichoso. E, mesmo depois de Freud dizer que o cérebro tudo podia, o acaso fez questão de desmentir o sábio psicanalista e refrear a arrogância teomaníaca do central no sistema. Um acidente; coisa banal; e todas as suas ligações foram cortadas. O rompimento ocorreu quase que por completo, na altura da sétima vértebra, no meio do caminho. E tudo mudou.
Quando despertou, o egocêntrico órgão do comando universal já não sentiu mais seus fieis comandados do movimento. Não sentiu as falanges, nem as articulações; tudo morria numa leve dormência. Até teve a sensação de que os pés lá estavam, mas já não obedeciam à sua vontade, a nenhum dos seus comandos.
Tudo bem, pensou, se os rebeldes não querem me responder, então vou comandar aquelas que os sustêm; e nada... As pernas também aderiram ao motim. Deu sua ordem energeticamente; mas não obteve nenhuma resposta. Não quis acreditar. Sabia que não era assim tão despótico; então por que todos o ignoravam?... Não se contentou com o silêncio geral e, austero, exigiu que as mãos verificassem se as rebeldes pernas ainda estavam ali; sentiu um certo pavor quando se deu conta da natureza da sua dúvida: o cérebro sem as pernas?!... E nada. Também os braços e mãos aderiram ao levante.
Restaram-lhe os olhos; volveu-os; notou que estava em um cômodo pequeno, de teto branco, lâmpada clara, e percebeu também que existiam ali, ao seu lado, equipamentos; vangloriou-se, pois havia matado a charada no ato: é um hospital! Sentiu-se novamente o tal, pois havia reconhecido tudo ao seu redor, e já passava as coordenadas para todo o corpo, com orientações precisas de como se comportar em tal ambiente. “É, eu sou o máxima!”. E antes mesmo que terminasse de sentir o sabor do seu próprio pedantismo, um assombro lhe invadiu. É um hospital?!...
Em seu micro espaço formulou todas as apreciações, deduziu tudo o que nunca imaginou ser possível acontecer: estava fora do comando.
Lembrou-se de todos os bons momentos... Quando provocava o riso ao mínimo toque na pele, e o calor, e o frio, e o prazer... Ah, o prazer. Justamente com essas partes pudicas mantinha as melhores relações; em geral quase perdia o controle quando dava azo aos íntimos órgãos.
Desespero, dor, tristeza. O fofoqueiro-mor já não mais iria participar das coisas; não mais dava ordens, nem sentiria junto as coisas; nem se quer iria ficar sabendo... O dedo bate, ele nem nota; a perna dobra, ele ignora o movimento; algo acontece nas intimidades, e ele já não compartilha mais da intimidade do corpo sobre o qual julgava ter todo o controle e poder. Ah, pobre fofoqueiro-mor... Deprimiu-se... E, hoje, é só mais um nessa massa esquecida, composta de carne, osso, feixes nervosos e nostalgia.


 
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Arcanjo
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