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DO CHÃO

 
O valor das coisas, das pequenas coisas, é traduzido pela espontaneidade dos gestos, pelo carinho de dar, pela alegria que transborda do coração quando o prazer da oferta se equipara ao prazer do recebimento. É assim o amor. Um beijo na testa quando a manhã rejuvenesce no céu e ainda dormes; um sorriso quando a luz do olhar retém o teu reflexo; o prazer de sentir o teu respirar sereno sobre a pele… A erupção vulcânica do teu calor sob os lençóis é já um motivo de regozijo! Tudo coisas de dentro, coisas da alma, coisas de mim. Promessas escritas na areia da praia, quando prometi ao mar e aos céus que te amaria pela eternidade do tempo, não fosse o tempo o limite de nós…
As pequenas coisas têm o valor que têm. A grandeza é medida com o sentir, em profundidade, como se um poço ou um abismo fossem a fita métrica da espontaneidade da dádiva. O beijo é uma asa de águia! Tem o condão de nos transportar para a seara onde todos os desejos se multiplicam pelas necessidades e, no orgasmo universal, a indispensabilidade de sermos um é atributo. São pequenas coisas… São sóis. Mas sóis que enchem uma casa, abrem as janelas, estendem a colcha da fantasia e deixam a marcha da felicidade passar, guiada pela banda da alegria. Não têm mais valor que um sorriso, nem mais importância que a afabilidade de um gesto. São… Tudo o que tenho!
Um dia ao ouvir o trompete da marcha anunciar a sua passagem festiva pela nossa rua, corri para abrir a janela… A porta caiu e estilhaçou-se no chão! Das outras janelas saltavam cordões de pétalas de flores e braços abertos acolhiam a passagem da música que enchia o ar e os corações. Peguei nas nossas rosas e reparei que estavam murchas… Ainda lancei as pétalas secas na esperança vã de que florissem, mas o vento levou-as para onde não perturbasse o sorriso de ninguém. Durante algum tempo fiquei a olhá-las como quem tenta entender o acontecido… Uma lágrima caída do céu sobre a pele queimou-me a fantasia. Tentei sair à rua e do varão da escada vários punhais se soltaram e me agrediram. Os degraus balbuciavam o meu nome com escárnio. Só queria entender… Talvez nada tenha sido importante…
A marcha virou na esquina anterior à nossa moradia escura. O som perdeu-se numa nuvem de quimeras. Fitei o céu negro com o plácido olhar terno e confuso. Ergui o braço e ofereci aos astros uma flor, colhida ali mesmo no empedrado, como relíquia do mais puro ouro, a pérola mais bela um dia encontrada… Era apenas uma flor sem importância e os céus não me responderam. Limitaram-se a deixar escapar uma lágrima ácida sobre a pele e a queimarem a fantasia… Só queria entender… Talvez nada tenha sido importante…
Pelas ruas frias e convexas um trovão ansiava explodir no cérebro, agitar a consciência, como uma mão que nos quisesse trazer à realidade. Tentei desviar-me quanto pude, convicto de que me iria ferir, mas foi impossível. De repente as luzes de néon da minha imbecilidade surpreenderam o espelho do que sou e o presente surgiu sem sonhos, sem projectos, tal qual é, frívolo, mesquinho, irónico, sádico. Fitei-o como quem tenta reconhecer alguma coisa que é sua e, em simultâneo, uma outra verdade desabrochou no mesmo espelho, acastanhada, distante, mofa… O passado. Uma intensa nuvem de condicionais libertou as águas invernias e inundou as razões, todas elas, que queria inexistentes. A realidade era uma lágrima ácida a cair sobre a pele e a queimar a fantasia… Só queria entender… Talvez nada tenha sido importante…
Quando acordei uma enorme gargalhada surtiu aos meus ouvidos. Uma voz… A tua voz…! Num prazenteiro deleite gozavas prazeres e orgias nos braços de um outro qualquer, que perguntava por mim e ria, ria, e ria… “Ele também é assim”?! O delírio do prazer mais majestoso e mais bonito florido no teu corpo disposto e aberto em flor num canteiro perfumado e sonhos. Não era eu o jardineiro. Descobri que nem tinha jardim. Tão pouco sei semear alguma coisa… Mas vi o teu rosto feliz entregue ao prazer como se voasse e fosse livre, como se aquele momento representasse a evasão total! Dentro de ti uma esperança de libertação, como se te quisesses despir de mim, rugia como um leão. Seres livre é um direito. Apenas consegui libertar uma lágrima ácida sobre a pele e queimar a fantasia… Só queria entender… Talvez nada tenha sido importante…
Sopro o pó da capa do caminho. Uma história como tantas outras histórias que preencheram a vida de tantos outros personagens. Esta foi apenas mais uma. A cola está fresca, a fotografia é recente, pode desbotar… Uma história. Levantei a cabeça e descobri que não conseguia chorar. Chorar é típico dos fracos e eu não chorei. Nem quando te vi cheio de esperanças cruzares a porta destruída da casa sem vida, deixando para trás… Espera… Que ficava para trás? Nada! Apenas, e só, pequenas coisas… Deixa, não têm mais valor que o facto de serem pequenas coisas. Vendo bem, qualquer coisa é melhor que isso. Qualquer coisa é melhor que o beijo, o sorriso, o aconchego, o calor… Qualquer coisa vale mais que todo o nada. Ah! Esqueci-me do amor… Esqueci-me porque não foi assim tão importante... O amor é uma palavra como tantas outras no léxico de qualquer língua, com tantos sinónimos quantos os que lhe quisermos atribuir. Quando o meu coração dizia que te amava, falava por ele, pela alegria de assistir ao teu acordar. Mas o amor pode ser qualquer coisa… Um desejo de momento, uma necessidade conjectural, uma expressão para nos convencermos de que amamos mesmo… Talvez não seja assim tão importante…
Os retalhos da manta estão acampados na piscina da mágoa e divertem-se, mais uma vez. Sentado numa cadeira de praia assisto e aplaudo. Ai se eu fosse jardineiro e conseguisse erradicar todos os cactos da vida! Que culpa têm as pobres flores se gosto de me rebolar sobre elas? Talvez devesse erradicar todo o amor do mundo! Ficaria o quê? A pedra glaciar que se deita comigo passaria a ser um Pólo Norte hibernado no mundo, numa perpetuidade doentia, num delírio assustador. Há paixões que vivem das pequenas coisas e são felizes. Não são todas… Mas ainda bem, porque assim há espaço para a dor. Se não houvesse dor, sobre que escreveriam os poetas? A dor é importante, ainda que o nosso mundo seja apenas uma dilacerante dor, viúva e malquista! É a dor que tem a coragem de libertar a tal lágrima ácida que cai sobre a pele e que ao queimar a fantasia me desnuda e aponta a realidade fria num horizonte vazio.
Agora agacho-me e tento apanhar os cacos da ilusão. Quanto sobrou desta vez? Talvez dê para fazer um soneto… Talvez sim… Promessas da lua, quando prognosticou diante do mar e dos céus que me feriria pela eternidade de um lamento… Como somos dois tolos… Esperem! Isto parece-me a marcha… Deixem-me espreitar pela janela partida… É! Que felizes que os amantes estão…! Como estou feliz por eles!

Antóniocasado

 
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antóniocasado
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 05/12/2010 13:28  Atualizado: 05/12/2010 13:28
 Re: DO CHÃO
Ser feliz pela felicidade dos outros,que final!Eu aplaudir!Levar.cumprimentos.