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Conversa Pessoal (II)

 
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(continuação)

-Se o estivesse, doce desconhecida, desceria, por gosto, à tua fonte limpa, para beber dela… pude apreciar que tens ritmo, no que escreves. Há algo cultivado na tua arte de verter em palavras a emoção e a ideia, não é naif.

- Obrigada… vou exercitando e aprendendo a música das palavras, a força, a suavidade, a permeabilidade delas às minhas emoções…(sorrindo) Um dia, quem sabe, mereçam ser impressas e guardadas num livro…

-Publicar é uma urgência difusa, que se acumula como o pó…

-Sim… quase maculando, profanando, a arte espontânea da palavra como prolongamento de nós mesmos – concordo contigo.

-É um acumular imperceptível, mas efectivo: se não dás conta dele, acaba por representar uma carga que te pesa.

-É verdade, essa ânsia de permanecer, tantas vezes reduzida apenas a um mercado de amigos é um voo de asa quebrada. E, sem golpe de vento que os destaque, os livros serão apenas uma urgência esquecida, que servirá, por sua vez, para acumular mais pó…

-Estou a gostar desta interacção – trouxeste-me uma radiação inesperada a uma tarde de melancolia.

-Também estou a gostar. Foi bom encontrar-te, tão por acaso – gosto de conversar, mas incomodam-me certas abordagens, gosto de ti, que falas as minhas palavras… (sorrindo)

-Sorri também, deu para sentires…?

-(rindo)Tive a ligeira impressão disso, mas se mo confirmas, acredito.

-(sorrindo ainda)Também gosto de poemas curtos: emoções em síntese, pensamentos meridianamente concisos. Tens algum?

-Tenho alguns, sim. Antigamente achava que um poema de meia dúzia de versos não chegava a ser poema, não se desenrolava o suficiente para atingir o clímax. Hoje acho que um poema curto, se bem escrito, pode ser “o” clímax, o resto é excedente. Vou ver se encontro um para te mostrar, “professor” Pessoa. (sorriso)

-Ah, doce desconhecida, esse é o meu destino escrito: delenda Persona – como se a minha existência fosse o cartaginês que assombra a de outrem…

-Bom, fizeste-me lembrar, não propriamente um poema curto, só uma frase, mesmo, mas de certa maneira a talhe de foice:

"Sim, eu sei que sou só pó – mas, felizmente, Deus criou o vento!"


-(rindo,rindo muito)

-Hum, amuei…~

-Acho a ideia divertida, só pode ser apreciada por quem tenha sentido de humor!... (rindo ainda)

-Oh… tem assim tanta graça, sem nenhuma profundidade…? (riso)

-Ela é divertida, porque tem muitos sentidos, é cheia de ambiguidade inesperada. A interpretação mais séria, refere-se ao teu desejo de seres espalhada universalmente.

-Sim, claro, também a quis com graça. Mas é, sobretudo, intencionalmente profunda: no meu pó eu posso viajar sementes (como disseste), o meu pó pode pousar em todos os lugares, se eu aproveitar o vento… Engraçada, é mais esta, que escrevi na mesma linha:~

"Lembra-te, mulher, que o homem é pó e ao pó retornará… por isso, querida, não adianta limpar!"


-(rindo muito) …mas é impossível não imaginar um deus carrancudo a mandar uma assopradela, para manter o local limpo!

-Já rimos juntos…

-Acho que deverias ler o sermão do padre António Vieira na Quarta-feira de cinzas – fabuloso.

-Vou anotar. Sou muito autodidacta, deveria mesmo ler mais e já vi que posso e devo confiar nas tuas sugestões.

-Eis o meu “anãozinho”, a propósito:

Não estou,
Sou,
E neste Ser
Fico só
O que me dou.


-Muito bom, Um gota só, mas suficiente para nos agitar por dentro. É a minha vez, não é?...

-Sim, tenho a certeza… (sorrindo)

-Então, este:

Fui
e não foi por acaso
que o ocaso chegou a correr.
Fui o que fui sem atraso,
Que o caso é correr ou morrer...


-Mais uma confirmação da tensão, dentro de ti…

-Acho que me continuas a ler muito bem. “Tensão”… hum, é quase uma abordagem "light"…

-Sim, tensão, frenesim, ansiedade de acção, impaciência…

-Terás, então, que ler outros, para me veres a dor, a revolta, a asfixia, o medo, mesmo.

-Terei, sim. Sinto em ti uma ânsia de te comunicares, de sentires que há um encadeamento, uma corrente que te prende á âncora…Por isso, doce desconhecida, peço-te que não te percas de mim. És interessante. E este tempo foi demasiado escasso.

-Encontrar-nos-emos por aí, quem sabe, outra vez… Esta não é muito a minha praia, mas achei-te, valeu a pena o meu “desvio” de hoje.

-Estarei sempre aqui, à tua espera…

-Posso, pelo menos, saber o teu nome, ou vou ter que imaginar-te Fernando Pessoa renomeado Ladislau Volkv?... (risos)

-Tenho de ir. Beijo do teu... poeta.

 
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Propoesia
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Enviado por Tópico
uersus
Publicado: 14/12/2012 01:08  Atualizado: 14/12/2012 01:08
Da casa!
Usuário desde: 25/08/2011
Localidade: santamariadafeira.pt
Mensagens: 467
 Re: Conversa Pessoal (II)
Fantástico!
A metalinguagem literária no modo dramático tratando o tema da lírica com fluência e espontaneidade!
É mesmo a tua praia!!


uersus

Enviado por Tópico
fotograma
Publicado: 14/12/2012 02:05  Atualizado: 14/12/2012 02:05
Colaborador
Usuário desde: 16/10/2012
Localidade:
Mensagens: 1473
 Re: Conversa Pessoal (II)
aula de poesia em animada prosa entre dois eus-líricos

mas deixo minha crítica: gostaria de ter participado

abs

Enviado por Tópico
Karla Bardanza
Publicado: 14/12/2012 02:14  Atualizado: 14/12/2012 02:14
Colaborador
Usuário desde: 24/06/2007
Localidade:
Mensagens: 3263
 Re: Conversa Pessoal (II)
Asorei essa coisa gostosa, diluindo meus olhos com devoção.

Abraços


Karla B