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VII Evento Luso-Poemas 2013: Dezembro de 1955

 
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VII Evento Luso-Poemas 2013: Dezembro de 1955
 
Em um pedacinho obducto do Alasca doze bocas ávidas rezingavam o que sobrara do piloto naquele confim de mundo onde a fome penitenciava a alma tornando inútil não celebrar a morte que sustentaria a vida por entre os penedais cercado pelo marulhar invisível.
Quando não restava mais vestígio das vísceras do piloto e os sobreviventes definhavam semimortos, era mérito sobre-humano manter o equilíbrio mediante os olhares que se devoravam.
Michael inesperadamente ofereceu os dedos da mão esquerda à consternação, não houve ânimo e nem tempo para impedir a automutilação que alimentou a matilha.
Haveria um próximo dia? Não, ninguém respondera ao chamado e os cordeiros a sacrifício foram lançados à sorte.
Michael clamava pela exclusão das quatro mulheres diante da indiferença de Seggal que de olhos vendados apontava para o nome esculpido no gelo e se não fosse a trapaça ignorada pelos ‘morrentes’ não teria sido ele, o ardiloso Seggal, a última ovelha a sacrifício adiando o próprio suplicio que chegou inevitavelmente ao amanhecer do décimo segundo dia acompanhado da covardia que minava a honra e a coragem enquanto o facão cortava o ar e fincava na geleira.
Intimado, sacou da arma que lhe ofertara o piloto morto no dia do acidente, acuou e amarrou a todos na ânsia doentia de sobrevivência.
Em dias sequenciais mutilou uma a uma a sinistra dos convivas na altura do pulso deitando sangue morno sobre a boca semisserrada dos ‘morrentes’ para manter o rebanho enquanto esperava a salvação naquele inóspito ambiente de devoração distante de Deus, isento de oração, perdão e culpa.
Um sinal atravessou o céu, um grande pássaro baixou sobre as penúrias do inferno gelado onde não havia pouso seguro e do azul marrento desprendeu uma longa corda que circundou o cadavérico homem.
Seggal omitiu os ‘morrentes’ declarando ser o único sobrevivente, salvou o corpo e condenou a alma aprisionando os convivas à sua (de)mente, entre as paredes de um manicômio e o eco lancinante dos próprios gritos, enquanto devorava compulsivamente os dedos da mão saciando o desejo inumano.
Quando o enfermeiro arrombou a porta e adentrou no quarto os dentes de Seggal violentou com gosto a própria mão arrancando-a do pulso.
Acordou com o braço esquerdo enfaixado e o sangue que maculava as gazes despertando-lhe o instinto selvagem, porém antes que entregasse o antebraço à boca salivante, abriu a escrivaninha, tateou com a mão direita a arma custeada naquele dia fatídico, mirou a fome escancarada e disparou colocando fim aos mórbidos pesadelos que o reunia toda madrugada aos convivas abandonados.
Um filete de luz tomou conta da escuridão e o conduziu por um corredor lúgubre até a porta maciça semiaberta onde luzia uma bandeja de prata polida deixada sobre uma pequena mesa rendada em branco.

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No amplo salão, onde uma mesa para doze estava requintadamente composta, ouvia-se o burburinho das vozes, em respeitosa moderação de timbres. Uma breve gargalhada soou, algures, e todos os olhares se voltaram para a origem dela, com uma estranha atitude de quase consternação e ofensa: fez-se um silêncio pequeno, e, logo depois, as conversas e os rostos voltaram ao tom grave, quase austero, que a ocasião impunha.
Alguém deu voz à ordem de sentar – o jantar ia ser servido. Havia doze lugares à mesa, mas só onze convidados na sala – sete homens e quatro mulheres, todos de idades a rondar a meia vida. O anfitrião, como sempre acontecia naquelas reuniões, serviria a refeição, e só se sentaria no seu lugar, ao topo da grande mesa, quando entrasse com o manjar e o servisse a todos, um por um.
O candeeiro enorme, suspenso sobre a mesa dos onze convivas, pareceu oscilar levemente, concedendo aos cristais que lhe adoçavam a luz, refulgências de curiosidade e espanto. Todos se voltaram para a porta, estranhamente sentindo uma aragem fria, reminiscências de brisa marítima, um gosto quase salgado-seco na boca...
O décimo segundo conviva, erguendo na mão direita uma enorme bandeja, trazia o braço esquerdo enfaixado e seguro ao peito. Uma mancha de sangue vermelho vivo trespassava as gazes brancas, deixando perceber que o acidente fora recente. Mesmo assim, sorria, triunfante, quando entrou na sala. Depois, em silêncio, pousou a bandeja sobre a mesa: uma mão esquerda, cortada com o pulso, fumegava, ainda, na enorme travessa...
Todos bateriam palmas, se tivessem as duas mãos... mas, claro, a todos os restantes convivas, faltava já a mão esquerda, cortada ao nível do antebraço... restou-lhes olhar com respeitosa admiração o “último sacrificado”, e, com estranha e discreta gula, o “último manjar”...

Autor desconhecido

Imagem retirada do Google.
 
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Issor_honey
 
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