Contos : 

Uma canção para Bradbury

 
A Ray Bradbury, in memoriam.


E meu tornozelo direito começou a coçar , mas o bico do tênis esquerdo resolvia o problema.Escurecia ,o corredor do hospital era silencioso e longo.Meus olhos passeavam pelas paredes , pelas figuras de santos em gravuras antigas emolduradas ,á minha frente. Baixei a cabeça , fiquei olhando o piso esverdeado.
Vez por outra passava alguém , mas eu tinha preguiça de erguer a cabeça, enfiava as mãos nos bolsos ou caminhava lendo as placas com os nomes dos benfeitores do hospital , a gratidão das freiras naquelas placas douradas e velhas .Três enfermeiros passaram comentando a morte de alguém na UTI uma hora atrás e a entrada de mais um paciente na unidade de cuidados semi – intensivos. Acenderam-se algumas lâmpadas do teto ; eu agora contemplava a cidade lá embaixo , o fluxo de tráfego deslizando pelas avenidas, os sinais de transito fazendo contraponto aquilo tudo , miniaturas vivas seguiam em passo rápido , cruzando as ruas e o viaduto já iluminado .
Senti dormência no corpo , andei um pouco mais rápido de uma ponta a outra do corredor , tentando relaxar os ombros .Puxava e devolvia ao bolso o maço de cigarros. Não fumava há quase dez horas . Sentei , acendi um cigarro , contemplando a voluta da fumaça.
Um cara de jaleco passou á minha frente , deu boa – tarde , acenando com a cabeça . Escurecia , as luzes da avenida acenderam , as pessoas pareciam azuladas e mais lentas daqui do nono andar .As águas do rio refletiam a luz e algumas árvores mais altas , plantadas nas margens .A garganta seca incomodava , passei a língua pelos lábios dormentes , aspirei um ar ainda mais frio que escorria entre o gradeado do teto . A placa de não fumar continuava ao lado da porta do elevador , presa por dois parafusos , ao lado do aviso de só entrar no elevador caso ele estivesse realmente parado á minha frente .
Conectei o fone de ouvido ao celular e sintonizei uma estação.Tocava alguma coisa antiga de Caetano Veloso . Ao final , a voz do locutor anunciou a morte de Ray Bradbury , no dia anterior, de causas não reveladas. Lembrei das suas Crônicas Marcianas e os Frutos Dourados do Sol .Depois , tocou Magic Man , com Herb Alpert e a Tijuana Brass Band .Desliguei o rádio e comecei a reler o jornal .
Uma enfermeira magra e de olhos negros aproximou-se , informando que meu pai entrara em coma e agora respirava com a ajuda de aparelhos. Agradeci e retornei á pagina esportiva. Depois, fui até á janela. A noite começava e as paradas de ônibus já estavam cheias de gente, ás sete horas da noite.



andrealbuquerque

 
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andrealbuquerque
 
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