Prosas Poéticas : 

Um poeta, o amanhecer

 
Á João Cabral de Melo Neto, uma homenagem

O Recife é uma cidade á espreita. Aguarda a madrugada capenga a insinuar-se pela Rua da Aurora. O sol lambendo o casario antigo, onde as histórias se arrumam qual tijolo, em moradias ancestrais e semimortas. O poeta em concreto, solenizado, á beira- rio plantado, contempla o negror do cão sem plumas, a bafejar a ponte.
O bêbado cumprimenta-o. Passa ao largo da indiferença pétrea e cinza - morta. A sua matéria, hoje filha do outrora massapé, redivivo em singular metamorfose, antes húmus - homem, agora concreto qual poema-objeto, domado em figura só homem. Ali sentado, em mudo conluio com sua cidade, à espreita do nascente.
Olhar perdido e fixo na estrada-serpente d’agua, no Recife de sádico amor aos seus personagens, revoltos e serenos ao sabor das marés, ao dissabor dos mangues soterrados pela ganância onipotente e parva.
Uma cidade semovente em água, mais estática que a terrestre Sevilha. Esta, sempre a caminhar, em devir ensolarado, talvez mais puro que a cidade cruel, no réptil tatear pelos leitos do rio, pelas vielas escuras, penetradas pelo hesitante raio de sol, pois morta a visão, só o Sentido permanece.




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andrealbuquerque
 
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