Serei tudo o que disserem 
por inveja ou negação: 
cabeçudo dromedário 
fogueira de exibição 
teorema corolário 
poema de mão em mão 
lãzudo publicitário 
malabarista cabrão. 
Serei tudo o que disserem: 
Poeta castrado não! 
Os que entendem como eu 
as linhas com que me escrevo 
reconhecem o que é meu 
em tudo quanto lhes devo: 
ternura como já disse 
sempre que faço um poema; 
saudade que se partisse 
me alagaria de pena; 
e também uma alegria 
uma coragem serena 
em renegar a poesia 
quando ela nos envenena. 
Os que entendem como eu 
a força que tem um verso 
reconhecem o que é seu 
quando lhes mostro o reverso: 
Da fome já não se fala 
- é tão vulgar que nos cansa - 
mas que dizer de uma bala 
num esqueleto de criança? 
Do frio não reza a história 
- a morte é branda e letal - 
mas que dizer da memória 
de uma bomba de napalm? 
E o resto que pode ser 
o poema dia a dia? 
- Um bisturi a crescer 
nas coxas de uma judia; 
um filho que vai nascer 
parido por asfixia?! 
- Ah não me venham dizer 
que é fonética a poesia! 
Serei tudo o que disserem 
por temor ou negação: 
Demagogo mau profeta 
falso médico ladrão 
prostituta proxeneta 
espoleta televisão. 
Serei tudo o que disserem: 
Poeta castrado não!
Ary dos Santos,José Carlos Pereira, Lisboa 1937-1984, poeta e declamador.
                
Zita Viegas