Contos : 

Um natal em 68

 
Chegou o Natal. Esse ano, as coisas estão fraquinhas aqui em casa; quase ninguém mandou cartão pra gente, Papai Noel deve estar bem magrinho. Pela primeira vez é Natal sem papai em casa, tomando cerveja, falando mais alto que a radiola de tampa levantada, conversando com seu Amaro por cima do muro. O copo de cerveja quase caindo. Eu, doido para experimentar. Dizem que amarga, mas é bom. Como é que pode? Só provando para acreditar , essa bebida que é mas não é .
Ninguém fala mais em papai. Virou uma coisa feita aquela doença que a gente desenha um caranguejo, mas não diz o nome .
Só lembro a noite em que chegou aquele jipe verde com os soldados e levou ele pro quartel. Ora, papai não tem mais idade para ser recruta. Perguntei pra mamãe, ela disse que não era pra ser recruta e começou a chorar de fazer dó. Nunca pensei que no olho da gente coubesse tanta água . Fiquei com raiva de mim mesmo,mas se não era pra ser recruta, quê que meu pai ia fazer lá ? Ele só sabe consertar fio trepado em poste e encher a cara com meu tio Jorge, o irmão dele, lá na praia do Pina .
Começou a me ensinar a nadar, mas parou, quando apareceram aquelas pranchas com um nome engraçado: isopor. Disse que com aquilo ninguém se afogaria mais e me deu uma .Acho que pra passar mais tempo na barraca, discutindo futebol com tio Jorge .
Um dia, pela manhã, ajudei minha mãe a enterrar no quintal ,um montão de papel. Falava mal do governo e em greve. Era escrito em letras bem grandonas e vermelhas .Mamãe falou que enterrava aquilo tudo pra ficar em paz.Evitar o exército não voltar mais lá em casa.Eles não gostavam nada de ver papel falando em greve . Mas meu pai saiu de casa em janeiro, logo depois do meu aniversário de oito anos. Cansei de perguntar por ele á mamãe, porque se chorar já é uma merda, de tristeza, pior ainda
Bom, papai foi fazer alguma coisa importante no quartel. O serviço já faz quase um ano que começou. Deve ser muito importante. Quem sabe meu pai não tem uma identidade secreta? Feito Batman e Superman. E se a turma do mal descobriu e pegou ele?
Nem vi nem falei com meu pai, nesses onze meses. Meus amigos lá da escola, disseram ter escutado em casa, que meu pai pode ter sido preso porque falava do governo e das greves. Se greve é ficar sem trabalhar, como é que nós íamos comer? E meu cinema , meus gibis ? Logo agora que arrumei o Tio Patinhas número um. Troquei pelos meus dois piões com o Zelão, o meu vizinho magro, da cara de lagartixa. Fica puto com quem chamar ele de caveira elétrica .
Fui pra Missa do Galo com minha mãe e parece que nossos vizinhos estão evitando falar com a gente. Nem sei por que. Estou de banho tomado, limpo, roupa nova. Feio foi o Júnior, filho do seu Mário. Ano passado, cagou-se todo na hora da missa e ainda vomitou no sapato de dona Lourdes . Êita cabra desmantelado. Mas não foi por gosto. Caganeira ás vezes não dá aviso. E foi logo no Domingo de Ramos.
Que Natal mais sem graça. Vou dormir. Na televisão não tem nada que preste. Até o Perdidos no Espaço foi ruim, hoje.
Olho na sala, a mesinha do centro. A foto de papai não está mais lá. Vou reclamar amanhã com mamãe. Ele não morreu e nem com morto se faz isso. Seu Gabriel, da mercearia, morreu, mas dona Eliza nunca tirou a foto dele da parede. Botou até um vaso com flores. Troca de flor quase todo dia. Achei um pouco demais. Depois, lembrei que a flor é dela e seu Gabriel também era, né?
Depois de ler dois almanaques Batman, deu uma baita fome. Vou pedir a mamãe pra fazer um chocolate.
Chego na sala e encontro ela e o tio Jorge na janela, olhando a rua .Ele, passa de leve a mão nas costas e na bunda de minha mãe, que sopra devagarzinho a fumaça do cigarro, de janela afora . Melhor preparar o meu chocolate sozinho .





andrealbuquerque

 
Autor
andrealbuquerque
 
Texto
Data
Leituras
3044
Favoritos
3
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
36 pontos
4
4
3
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 24/04/2014 16:00  Atualizado: 24/04/2014 16:00
 Re: Um natal em 68
Muito bom, André!
Amei a leitura!
Especialmente o fim.
Parabéns!


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 24/04/2014 16:11  Atualizado: 24/04/2014 16:11
 Re: Um natal em 68
Ótimo, quem viveu a época em que narra o conto tem a sensação de ser o protagonista, com exceção do desfecho, claro, que é muito bem bolado. Assim como é perfeita a linguagem usada pelo garoto.
Parabéns.