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Ascanthopédia - parte 7 - Sombras do Jardim

 
A terra quente o envolvia, causando-lhe um torpor invencível e mesmo agradável. Em meio a argila avermelhada que o cobria, despojos de pequenos animais escorriam pelas beiradas. Aquelas plantas viveram ali por muito tempo, tempo demais. Mesmo antes do jardim existir, a floresta e o bosque que lhe deram origem já eram antigos. Anos e anos presas ao mesmo solo, exaurindo cada nutriente, cada mineral que pudessem carregar-lhes a energia, levaria consequentemente ao esgotamento completo de tais recursos. E o que fariam aquelas plantas, nos decorrentes anos de sua evolução? Talvez, perceberam que os restos orgânicos dos pequenos animais que morriam aos seus pés seriam uma excelente fonte de nutrição. E se assim fosse, um corpo humano, completo e saudável, haveria de ser uma iguaria inestimável. E talvez, quem sabe, por anos e anos, observando o comportamento das pessoas que por ali passavam, aprendeu deles o comportamento, os desejos e a intenção. E como sempre há de ser na natureza, criaram mecanismos adaptativos, que proporcionaram a elas, as plantas, uma forma de atrair e capturar um ser humano. Ali, enterrado, Enki-du saturaria a terra dos seus fluidos corporais, alimentando as plantas por um longo tempo, até que restassem apenas os seus ossos secos.
Entorpecido, entre o sono e a vigília vacilante, pareceu ouvir um sussurro, em meio a risos que vinham de longe, como se dobrassem cada uma das esquinas de Nubelar. Pensou ter visto, através dos ramos densos das plantas, uma figura feminina de cabelos esvoaçantes, que se aproximava afastando as folhas. Não era outra planta em forma de mulher, mas uma mulher verdadeira, abraçada pela névoa que também a vestia, como se errasse sozinha numa ventania em pleno descampado. A figura insólita aproximou-se, como que para abraçá-lo... e então, ele acordou sobre o balanço, com os olhos pesados e fraco, como se tivesse dormido por dias a fio...
Olhou ao redor confuso. Havia sonhado? Não saberia dizer. Tudo fora tão real, ao mesmo tempo que a própria atmosfera do jardim parecia um sonho. Deu-lhe um nó na garganta, um frio na espinha, com a mínima possibilidade de que tudo aquilo houvera sido real, que não teve outra ideia ou estimulo que não fosse sair dali o mais rapidamente possível! Fez um lanche rápido para recuperar as forças, e apressou os passos o mais que pôde.
Havia ainda grande parte do caminho para seguir, o jovem não perdera de vista os seus objetivos, e ainda pretendia encontrar o misterioso homem do bosque. Ele tinha a resposta
para todas as suas perguntas, e havia uma pergunta em especial que precisava ser respondida.
Dobrou algumas esquinas e cruzou com mais algumas estátuas estranhas, antes de se deparar com a alameda final. Uma longa reta, margeada de árvores altas e robustas, de sombra longa e fresca, que se alternavam em nuances de claro e escuro, conforme a luz ali batia. Dali já se podia divisar com clareza as primeiras árvores do bosque depois do jardim. Ali, uma ponte de pedras arqueada atravessava o rio Vereia, o velho rio de Limelin, que serpenteava pelos campos e entrava dentro do jardim passando pelo bosque. Duas cariátides, de pés banhados nas águas do rio, sustentavam a ponte, que era apenas mais um ornamento do fabuloso jardim. Eram as águas do Vereia que banhavam o jardim, e dava alma às suas fontes e piscinas, e naqueles dias tristes, ausente das alegres pessoas que um dia o frequentaram , quebrava o silêncio fúnebre de Nubelar.
Por sobre a ponte, o jovem Enki-du olhou o seu reflexo no espelho d’água lá embaixo. E por um bom tempo, observou a si mesmo como uma mancha disforme a estremecer no ir e vir das correntes do rio. Ele mal se reconhecia, e o vento mais duro em seus cabelos brancos o trouxeram de volta. Os seus cabelos esbranquiçados denotavam a sua origem real. Era raro, mesmo entre os mais velhos, a cor branca dos cabelos.
A ponte era o limiar entre o jardim e o bosque. A fronteira de dois mundos tão diferentes e tão iguais ao mesmo tempo. O portão de saída era idêntico ao portão de entrada, e na alternância dos dois, não se poderia dizer qual era a entrada e qual era a saída.
Antes de tudo, deu uma última olhada para o que deixava atrás de si. Era em grande parte o sinistro jardim, mas também eram os seus medos de infância e um pouco de sua meninice – embora ele ainda não se desse conta disso. Ali, parado, um pouco mais adulto do que antes, pegou-se imaginando quão belo teria sido aquele lugar, em sua época de glória, quando pessoas andavam felizes por suas vielas, e casais apaixonados gravavam promessas nas cascas rústicas das árvores, e seus caminhos não eram sombrios e tristes como agora. E ele estava por demais certo em pensar assim.


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London
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