Crónicas : 

Micrônico - II - Planária

 
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Hoje em dia não fazem mais essas coisas. Devem fazer, sei lá. Toda vez que enuncio algo definitivo, meu cérebro dá uma bugada. O contraditório, o trocadilho, tá sempre por ali, pairando nas minhas certezas sobre as coisas do mundo. Eu tenho mesmo que aprender a descrever o mundo sem certezas. Porque cada coisa que pode ser dita, tem em si, entranhada, um enunciado sobre o mundo. A ideologia de todas as coisas, sabe? Eu acho que a definição das coisas é a ideologia das coisas. Viu? Fiz o último enunciado sem certezas absolutas, usei um belo e redondo - “eu acho”. Quando estavam me ensinando a ser cientista, disseram que era proibido, ou melhor, que era deselegante, esse negócio de eu acho, quando o assunto era a ciência “de verdade”. Era preciso fato, ou melhor, dado. Os dados rolando na mesa. Tudo bem enquadrado nas cláusulas de “se, então”. Isto foi uma digressão. Ainda bem que a câmera estava desligada. O enunciado original era aquele que, provavelmente eu achava que não faziam mais essas coisas. As coisas, nem cheguei a explicar. Eram experimentos esquisitos com seres humanos. Nas ciências psicológicas. A história da psicologia é repleta de experimentos bizarros que hoje não são replicados em função dos conselhos de ética, muito necessários, eu acho, principalmente depois do que os nazistas escrotos fizeram no campo da ciência “de verdade”. Outra digressão. Eu gosto de falar contigo porque você me inspira a ter bem seguro o que quero dizer. Você me inspira a ser melhor compreendido. Mas eu vim mesmo pra te contar desse estudo da psicologia, não com humanos. Com planárias. Sabe, lombrigas? Tá bom, eu sei que você tem nojo. Bota aí na vitrola o disco do Raul. Metrô linha 743. Canibais de cabeça. Vai, rápido que já estou quase sem bateria. Vou gravar a mim te contando essa história com a música de fundo. Pronto. O estudo é de 1962. O cara ensinou algo pra uma planária por condicionamento pavloviano. Depois, ele matou a planária e fez uma sopa de laboratório com o suco da planária morta. Que história nojenta, meu irmão! Calma, falta um pedaço. Depois ele deu a sopa de planária para outra planária comer. Credo em cruz. Canibalismo. Tá ligado? Percebeu aí, a ligação? Sim. Então adivinha o que aconteceu? Porra, bicho, sei lá se a planária vomitou de nojo. Se concentra aqui. Aconteceu que a planária que comeu a outra planária, acabou aprendendo o que a defunta tinha aprendido. E? … Acabou? … Porque você ficou mudo, cara? Espera, tá chegando a parte na música que vai encerrar minha fala… (música ao fundo) … Agora! … “e os canibais de cabeça descobrem aqueles que pensam, porque quem pensa, pensa melhor parado”. É isso aí, por isso vou andando. Me arranja um cigarro. Vou postar isso aqui no iutube.

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thiagodebarros
 
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