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Que tempos aqueles!...

 
Eram tempos difíceis. Tão difíceis e miseráveis, que o próprio tempo se encarregou de trancar a sete chaves nos calabouços do esquecimento, para que, dele, não mais se ouvisse falar. Contudo, não havia como calar as memórias dos que dele sabiam. E o que sabiam, não era pouco!
Naquele tempo Lisboa ficava a 18 dias bem contados, palmilhados de tamancos ao ombro. Isto pelas contas de um primo da minha avó Ermelinda que vivia na Panasqueira e que tinha os olhos da mesma cor dos dela que eram azuis claros, da cor do mar em dias de sol.
Duas ou três casas viradas para as Luadas e umas quantas calhadas a verdejarem, era tudo o que ali havia. Trabalho, era o do dia fora do costume. Ou seja, de ancinho na mão a cavar terra o dia todo. Desde antes de o sol nascer até já depois deste se ter posto, enquanto desse para ver alguma coisa. E o ganho, esse, mal dava para as sardinhas e o cigarrito, que, de vez em quando a tirar da algibeira e a enrolar entre os dedos por causa de matar o vício...
Terá sido por isso que ele e o meu avô, igualmente pelos mesmos motivos, terão combinado e resolvido meterem os pés ao caminho até à cidade grande, em busca de um dinheirito melhor.
Dado que os automóveis eram coisa de ricos e o custo do bilhete do comboio ser demasiado para tão poucas posses, não houve outro remédio se não o de ir a pé. Imaginem... Impensável nos dias de hoje!
A tia Albertina também por lá viveu meia dúzia de anos. Ali para os lados da Mouraria, num vão de escada onde lhe cabia a cama e pouco mais. Uma escada por onde passavam de cambulhada os inquilinos do prédio todo e a todas as horas do dia. A trote, escada abaixo escada acima, mas que a não impediam de dormir até ao meio dia... Mas já depois de ter ido buscar dois papos secos e um quarto de litro de leite para misturar no café de cevada do companheiro que consigo partilhava a mesma vida embrulhada em pobrezas.
Do que me lembro de me contarem, os dois primos lá chegaram por fim, desgastados da lonjura do caminho, calçando os tamancos à entrada. Quem andasse pelas ruas da baixa e nalguns bairros, haveria de os encontrar por ali, com o carrego dos cestos ou cabazes da fruta e hortaliças às costas, que, de pregão na garganta, lá iam vendendo aos fregueses de ocasião.

Cleo


*... vivo na renovação dos sentidos, junto da antiguidade das lembranças, em frente das emoções...»

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cleo
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Enviado por Tópico
Rogério Beça
Publicado: 13/03/2023 18:18  Atualizado: 17/03/2023 00:31
Usuário desde: 06/11/2007
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 Re: Que tempos aqueles!...
Obrigado pelo texto.
Acho a linguagem bem apropriada às personagens, um pouco ao estilo do Vagão J de Virgílio Ferreira. Com as devidas distâncias, claro.
O reflexo duma sociedade numa linha temporal assim não tão distante.

Tamancos o teu texto.

abraço


Enviado por Tópico
Sergius Dizioli
Publicado: 13/03/2023 18:32  Atualizado: 13/03/2023 18:32
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 Re: Que tempos aqueles!...
É-me um prazer ler essas tuas histórias, que não as sei se "his" ou "es" 'tórias', se bem que pouco importa, vez que viajo com elas. Tua narrativa é presente e detalhada, nos faz ver o que nos trazes como quem assiste a um filme. E um filme que nos toca a emoção pois é assim que o narras: com emoção. Gosto muito e como já disse, cada um escrito teu é uma viagem mágica que ignora o tempo e a distância, nos colocando dentro dela e nos faz ser aquela figura que assiste a tudo calado, mas bem de perto. Saudações.