Era uma vez uma história que ainda não tinha sido escrita, por isso não começava, não se desenvolvia, nem acabava.
As personagens não eram nem principais nem secundárias, porque ainda não tinham sido criadas.
Passar-se-ia numa folha branca, num dia em que o escritor se sentasse à sua secretária, de frente para a janela de onde se avista uma outra.
Vive lá uma mulher que deseja muito ser amada, mas que a cidade esqueceu. A sua história é tão desconhecida como as razões de uma página branca desafiando quem a olha.
Está ali, à distância de uns dedos que a toquem, de um corpo que a preencha e tome. Mas o escritor não sabe disso na hora de escrever a sua própria solidão, por isso imagina histórias começadas por era uma vez.
E foi o que fez da vez em que viu um rosto belo de mulher abeirar-se da janela que fica de frente para a janela da sua escrita. Cabelos escuros, abaixo de uns ombros delicados. Seios que se adivinhavam redondos, num corpo generoso que merecia o sol naquela tarde cinzenta de inverno.
Logo a tomou como personagem, rodeando-a à distância com suas mãos abertas e seus braços longos. Sentiu-se acompanhado pela tristeza que descobriu nos seus olhos salgados e distantes, profundamente tocado por uma ternura que precisava das palavras para se cumprir. Por isso, como um pintor que pinta um modelo fortuito surgido do nada, começou a escrever a sua história.
Falava de uma mulher esquecida pela cidade, capaz de amar intensamente, mas à espera de uns dedos que a tocassem, a tomassem, despindo-a da angústia dos dias iguais.
De tão embrenhado que estava na construção daquela história que agora existia, se desenvolvia e caminhava para o fim, nem se apercebeu de uma estranha azáfama no rés-do-chão, misturada com gritos e olhos tapados de dor. Sequer de um policia correndo as cortinas da janela que ficava irremediavelmente de frente para a sua escrita.
Terminava bem aquele texto que escreveu em tributo a uma mulher que pressentiu de forma fugaz naquela tarde cinzenta de inverno. Tinha-lhe oferecido o amor, em palavras como agasalho aos dias tristes e sós de uma cidade que se esquece de partilhar afectos na sua volúpia.
Rubra era a calçada, quatro andares abaixo da eternidade.