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Quem matou Salomas Salinas

 
Antes do ônibus parasse na parada do Anel Viario, eu e Karl já estávamos na porta, esperando a hora que o motora a abrisse. Descemos apressados, quase esbarramos num senhor que nervosamente em companhia de uma senhora esperavam o seu ‘bus’ – A cidade metamorfoseara-se diante dos meus tristes olhos, as pessoas enclausuradas nas faces lúgubres. Caminhávamos a passos largos. Tínhamos que constatar esse sofrível pesar. Era uma tarde de segunda feira, 14 de setembro de 1992 :
“Meu peixe, escreve ai – começou – plantei trezentas e sessentas mudas de sapotis – confirmou, conferindo novamente um retângulo de isopor, o plantagio com as sementes e m cada compartimento minúsculo. Estava sem camisa. Eu passei por acaso na casa dele, era tarde, um grande imóvel na Rua dos Afogados, bem no centro da cidade. Ele preparava concentradamente um enorme ‘baseado’ que batizei de salomônico para degustarmos tranquilamente no seu espaçoso quintal tipicamente urbano – Anota ai – ordenou-me para escrever na capa dura do meu pequeno dicionário de bolso russo-português:
“360 pés de sapotis, acácias, goiabas, jenipapos e pimenta do reino.
30/03/92
Daqui a uns três meses as sementes vingarão e farei a mudança para um sitio em Alcantara” – assim era o grande Salomas Salinas e seus planos para o futuro.

Karl estugou os passos e em alguns minutos alcançamos a Avenida Magalhães de Almeida, acompanhando atentamente o movimento do transito. Mesmo assim meu eu negava-se a acreditar que havia acontecido de maneira tão brusca. Salomas Salinas morto num vacilo? – “Não, não deve haver algum engano”.
Na Praça João Lisboa, os transeuntes indiferentes a minha angustia mental, a duvida que não aceitava aquela dura realidade, acreditaria piamente, somente depois de vê-lo – adotei a filosofia de São Tomé. O portentoso edifício do BEM – Banco do Estado do Maranhão com seus dez andares, uma pequena aglomeração de curiosos no canto da rua dos Afogados com a rua do Egito. Veículos parados e as pessoas cochichando em grupinhos e apontando para rua abaixo. Então trocamos os olhares. Karl imediatamente percebeu a minha certeza e tristeza de concluímos que fora mesmo, o mestre Salomas Salinas. Dobramos a esquina esbaforido e descemos a pequena ladeira. Meu coração sangrou numa profunda dor. Ao entrarmos no campo visual da casa, a dura realidade descortinou-se para nós. A ex-companheira e viúva aos prantos sentada, consolada pelas amigos e colegas. Alguém varria as flores que caiaram das coroas, outros carregavam os castiçais de prata. Outros conversavam entre si. Procurei algum conhecido. Ouvimos por alto que o enterro seria no Cemitério do Gavião no bairro da Madre Deus. Caimos no campo rumo a necrópole.
No sábado anterior, ele passara na oficina e requestara Karl para ajuda-lo no stand do Clube de Paraquedismo Icarus no Expoema. Desse dia adiante não nos vimos mais. Uns dias antes conversara ou melhor esculhambou-me atrozmente, insultando-me. Preferi calar-me e não revidar e então percebera que extrapolara e enganara-se e a culpa não era minha e nem tomei conhecimento do negocio dele com Karl. Nossa relação esfriou, mas naquela manhã rápida que passara apressado para um compromisso inadiável quase apertávamos um ‘baseado’ da paz.
- Meu peixe, depois da Expoema virei aqui para tu fazer um suporte para um fogãozinho que ganhei de dona Encrenca. O nosso amigo fechou o restaurante e agora tenho que me virar nos trintas.
Prontamente assenti que faria e nos despedimos afetuosamente.

Resolvemos cortar o caminho e fomos zigzagueando entres as pessoas na beira da calçada. Nada fazia sentido, apenas a vontade de ve-lo pela ultima vez. Karl emudecido, a minha cabeça estourava de tanto refletir como as coisas acontecem de maneira irreversível, com a morte nos espreitando pacientemente até o bote final.

O pai dele era judeu de Smirna na Turquia e a mãe uma enfermeira brasileira, filha de um velho calafate marítimo da Praia do Desterro, que morava atrás da igreja e todos finais de semana ia fazer-lhe a abarba e aparar o cabelo do avó.
- Orgulho-me de ser judeu-brasileiro. Uso kipá nas sinagogas quando estou no Rio de janeiro e respeito e sigo as leis do Talmud e sou circuncisado.
Uma tarde, depois de ler “O Complexo de Portnoy” de Roth perguntei-lhe o que era um bar-mitzváh. Explicou-me que era uma espécie de rito de passagem entre a adolescência para a maioridade.
Certa vez muitos anos atrás nos encontramos casualmente a noite na escura Rua Jacinto Maia, entre a Rua Afonso Pena e a da Rua da Palma.
- Estou armado com um trinta e oito carregado, pronto para disparar em qualquer safado que vier com saliência comigo.

 
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obstinado
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