Poemas : 

Na vida de Júlia (Cap. 4)

 
O casamento dele.
Não queria continuar. Não dava.
A mulher dele era mais nova uns dez anos. Ativa, cheia de energia. Sempre tinha sido. Ele agora queria mais calma. Já tinham falado, mas a calma dela era barulho para ele. Ruído.

Achava que estava na hora de cada um seguir o seu caminho, separados. E ele até achava que nem tinha a ver com a idade, mas com o feitio dela.
Queria sexo a toda a hora, todos os dias. Não. Não dava. Ele queria descansar também. Não era nenhum adolescente. Tanta coisa que se pode fazer. Nada, por exemplo.
Isto que fazemos, conversar enquanto bebemos um copo e ouvir uma musiquinha.
Olhar a noite da cidade por estes janelões.
Observar, ouvir, ver, olhar, saborear.

Nada disto é possível no meu casamento. Nunca foi. E das coisas que mais lamentei ter perdido quando nos separámos. Senti falta...
[nunca me disseste nada...]


A vela acabou, o difusor não dá nada, não tenho chá e ele acabou a garrafa de tinto. O cinzeiro está cheio não sei como, porque fumar com o lenço é uma palhaçada.

Espera um pouco. Vou trocar isto. Chá, cinzeiro, queres mais vinho ou outra coisa? Chá? Ok. Não, tenho bastante. Fiz hoje à tarde para o fim de semana. Eu trago. Queres comer alguma coisa?

[Quer separar-se... para não ter sexo. Esta está boa. E eu? Que tenho a ver com isso? Ora bem...]
[Estou cansada. Espero que ele não demore muito mais. A dor parece voltar...ele que não me venha plantar esperanças onde elas não crescem]

Júlia voltava com um tabuleiro cheio de bebidas, biscoitos e bolos.
Pôs incenso a queimar.

Sentou-se, olhou a cidade com menos pontos brilhantes.

Pois, olha, não sei. Mas porque vieste falar comigo?


Ele baixa a cabeça de novo.
Levanta-se, bebe um gole de chá e diz: Tens alguma coisa de Nina Simone?

Ao som de Strange Fruit, Luís disse que gostava de voltar para ela.
Sentia-lhe a falta.
Talvez sempre tenha sentido, desde que se separaram.

Mas o quê? Achas que o sexo comigo é canja? Que não te vou querer, nem chatear a esse nível? Que sou fácil? E riu-se. Ai... porra, a gengiva!

Luís não achou piada.
Manteve-se sério. Sentou-se.
Sempre achei que eras muito boa na cama.

[silêncio incómodo]

Luís pigarreou. A razão da minha separação agora não é essa. Disse secamente.
Nunca me devia ter separado de ti, mas agora já está, não interessa.
Interessa o presente e o futuro.
Quero-te agora e para amanhã e depois e depois....

Aceito que tenhas de pensar, e se a resposta for negativa não me surpreendes. Já te conheço bem. Gostava muito, mesmo muito, que pensasses nisto mesmo a sério. Estou absolutamente decidido, e convencido, que tu és a minha mulher.
Se não me aceitares, também não vou querer mais ninguém. E não é chantagem, por favor. É facto.

Júlia bebia o chá e fumava. Pouco dizia. Também nada tinha a dizer. Estava surpreendida, no entanto. Nunca achou que o assunto "cama" fosse assunto, que ela fosse assim boa (boa!!!) e, o mais extraordinário, que Luís a quisesse para hoje e depois e depois...

Sentiu-se lisonjeada num primeiro instante, para logo a seguir ficar irritada, (grande palerma, porque foste embora? Mudar e tal... tangas) e depois pensativa e calada.


Não dizes nada?, Luís perguntou.

Bom, ainda é qualquer coisa para se digerir assim de repente....

Podes ter o tempo que quiseres. Ligas depois. Eu vou tratar da minha separação. Tu apareces quando vires que é o teu tempo.
Mas também não me deixes pendurado, e sorriu nervosamente.
Levantou-se de um rápido, como se já tivesse dado o recado, vou andando, deves estar cansada e assim doente... e eu ainda vim trazer mais confusão.

Nada disso... vou pensar na tua proposta e depois falamos melhor.
Sim, falamos. Depois. Sim, depois.

Levou-o à porta. Ele calçou-se e o movimento de subida fê-la inspirar novamente o cheiro dele. Despediram-se, as melhoras, etc, bateu e fechou a porta.

Cabeça na porta outra vez, tira o lenço da boca. Faz uns movimentos com os maxilares que fazem doer um pouco.
Vira-se, espelho. Ainda vales uns trocos, ao que parece.

Preciso de analgesia rapidamente e forte, de me aquecer mais e de me acalmar. Olhou a sala com a mesinha desarrumada.
Recordou o perfume. Fica para amanhã.

Foi para o seu quarto.
Tirou o lenço da cabeça e os ganchos, tomou os medicamentos de que necessitava. Tirou a roupa toda à exceção das meias. O AC estava ligado, o ar aquecia o corpo.

Olhou-se nua ao espelho e pensou Vou dar-lhe quê? 1 semana? 15 dias?
Até ficar bem! Quando estiver bem. É melhor. Sinto-me mais segura sem paninhos.
Merda. Que merda, Luís.
Estou tão cansada.
Deitou-se na cama e uma sensação de máximo conforto passou por ela dos pés à cabeça.


Na sala de estar, Nina Simone continuava a cantar:
Then what have I got
Why am I alive anyway?
Yeah, what have I got
Nobody can take away


FIM (4/4)






I got that feeling
That bad feeling that you don't know
(Massive Attack)

I lost myself on a cool damp night
I gave myself in that misty light
Was hypnotized by a strange delight
Under a lilac tree
I made wine from the lilac tree
Put my heart in its recipe
Makes me see what I want to see
Be what I want to be
When I think more than I wanna think
Do things I never should do
I drink much more that I ought to drink
Because it brings me back you
Lilac wine
Is sweet and heady
Like my love
Lilac wine
I feel unsteady
Like my love
Listen to me, I cannot see clearly
Isn't that she coming to me?
Nearly here
 
Autor
Beatrix
Autor
 
Texto
Data
Leituras
58
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
2 pontos
0
1
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.